DILEMAS DO ROMANTISMO PORTUGUÊS
NA
OBRA DE ALMEIDA GARRETT

Sérgio Nazar David (UERJ)

 

Em “Le Romantisme et Camoëns”, Eduardo Lourenço inicia sua leitura do mito Camões na literatura portuguesa oitocentista, apontando que o Romantismo  mudou radicalmente o sentido da Literatura, que a partir de então deixaria de ser, em suas linhas dominantes, mera atividade ornamental: “O autor se transforma no deus de sua obra, assim como seu sujeito e seu objeto” (LOURENÇO, 1994, p. 103.)

que se discordar desta posição. Foi o romantismo que inventou esta idéia de que a literatura precedente estaria reduzida a atividade ornamental, salvando deste lugar a Idade Média ou a Renascença (conforme a conveniência do momento), e deitando sempre à vala comum da ignorância e do obscurantismo, por exemplo, o Barroco Talvez seja exatamente para reforçar este equívoco que Camões e sua obra tão bem sirvam ao Romantismo.

A historiografia literária costuma admitir que o poema Camões (1825), de Garrett, marca o início do romantismo português. O que Lourenço veio fazer, em 1994, no artigo citado, foi retomar um tema abordado anteriormente por especialistas da época, nomeadamente Ofélia Paiva Monteiro (1971), R. Lawton (1966) e José-Augusto França (1974), o da identificação de Camões à imagem de Portugal, e buscar aferir o alcance e a particularidade da assertiva no que diz respeito às obras dos protagonistas da cena literária portuguesa do século XIX. Às razões sabidas — nacionalismo, desapego às convenções literárias, reafirmado no prefácio à primeira edição de 1825, da obra supracitada, de Garrett — Lourenço acrescenta o que ele chama de promoção da obra de Camões ao estatuto de mito literário de configuração romântica. A estes dados eu ainda acrescentaria que é conveniente aos românticos comparar Portugal àquele Camões sofredor. Mais: é conveniente, no caso de Garrett, comparar-se também àquele Camões guerreiro, no leito de morte.

Vale retomar em breves traços este tumulto que será a vida portuguesa e a do próprio introdutor do romantismo em Portugal, neste período que vai do primeiro exílio de Garrett (1823) até o seu retorno definitivo a Portugal em 1833 (com o desembarque das tropas liberais no Porto em 10 de julho de 1832, e a tomada de Lisboa em 1833). Em seguida, o período subseqüente de 1834 (início efetivo da vida constitucional em Portugal) até 1851 (Regeneração).

O primeiro exílio de Garrett inicia-se em 9 de junho de 1823, quando embarca para Londres, após a suspensão da constituição liberal por D. João VI e a revolta de Vila Franca qual D. Miguel fora se juntar). Garrett não consegue viver em Londres. Seu amigo António Joaquim Freire Marreco consegue-lhe então um emprego no banco Laffite, no Havre (Paris). Em março de 1824, Garrett e Luísa Midosi chegam a Paris, onde Camões (1825) e Dona Branca (1826) foram escritos.

Em 1826, morre D. João VI, D. Pedro IV abdica à coroa em favor de sua filha D. Maria II e promulga a Carta Constitucional de 1826. Garrett volta para Portugal neste ano. Mas, após o retorno de D. Miguel, é obrigado a exilar-se novamente em 1828 em Londres. Em 1832, vamos encontrá-lo em Paris, aguardando a organização da expedição liberal que partirá da ilha Terceira (Açores) para desembarcar no Porto.  Destaco, deste período, na produção de Garrett, além das obras supracitadas: Adozinda (1828), Lírica de João Mínimo (1829), Da Educação (1829), Portugal na Balança da Europa (1830). Nesta obra inaugural no gênero do ensaio historiográfico de maior fôlego em Portugal — Garrett reúne em livro os artigos que publicara em O Popular, de Londres, analisa as relações políticas entre as nações européias e busca inquirir qual deveria ser a posição de Portugal neste jogo de forças. E a resposta é: Portugal deve acompanhar o que Garrett considera o rumo da história dos povos civilizados em direção ao Cristianismo e ao Liberalismo.

Os dezessete anos que se seguirão (1834-1851) também serão também de pouca estabilidade política. É o tempo dos Cabrais e do duque de Saldanha. Durante o primeiro governo de Costa Cabral, a casa de Garrett é invadida. Garrett reage no discurso parlamentar de 19 de outubro de 1844: “faço de conta que escapei a bandoleiros na estrada”.  No prefácio à primeira edição d’ O Arco de Sant’Ana (1845) atacará o que chama de “lodo de utilitários e de agiotas em que patinha e chafurda o corpo da sociedade”, que “atrasam a civilização, comprometem a causa da religião e a da humanidade” (GARRETT, 1963a: I, 217-221).  É com as armas da religião e da civilização que Garrett se contrapõe aos cabralistas. Não nos esqueçamos de que em 1843 Viagens na minha terra teve os seus seis primeiros capítulos publicados na Revista Universal Lisbonense. Aceitar o convite para visitar, em Santarém, Passos Manuel (líder setembrista e opositor de Costa Cabral) no auge da ditadura cabralista e decidir publicar esta viagem isto foi sem dúvida um ato político.  E não tomem isso como algo de pouca importância. Lembro a lição de Bulhão Pato, em suas Memórias, ao recordar o Marrare, centro da mocidade e dos homens feitos, em 1848:

Passos Manuel — com Oliveira Marreca, Almeida Garrett, José Estevão e Alexandre Herculano, este às segundas e quintas-feiras, na volta para a Ajuda —, era certo no Marrare.

(...)

A revolução de 1848 havia rebentado. Nós, os patuleias, estávamos alertas, e o Partido Cabralista de olho atento sobre nós. Fazia bem, como partido adverso, porque nós conspirávamos. (PATO, [s./d]: I, 76-78)

No inverno, sublinha Bulhão Pato, o Marrare era “o gabinete predilecto de Manuel Passos e dos seus camaradas políticos”, entre os quais destaca: Herculano, Marreca e José Estêvão,  estes dois últimos notórios líderes setembristas, contumazes colaboradores d’ A Revolução de Setembro”. Vejamos o arremate de Bulhão Pato, escrito em 1894, passadas portanto algumas décadas:

Seja qual for o ponto de vista por onde o historiador encare a revolução liberal, a verdade é que nenhum espírito despreocupado e justo lhe pode negar a grandeza. Não eram retórica as palavras masmorra, exílio, patíbulo, campo de batalha! Uns tinham gemido nos ergástulos, outros experimentado as penúrias da emigração. Este perdera um parente ou um amigo na forca, aquele tinha assinalado no corpo, por uma cicatriz, um dia de refrega! (Idem, p. 79.)

E segue dando o destino dos setembristas: alguns tiveram que homiziar-se (José Estêvão e Oliveira Marreca), Herculano encerra-se na Ajuda, Passos Manuel em Santarém, alguns patriotas vão parar no Limoeiro (Idem, p. 81). Em 1849, virá a Lei das Rolhas, contra a liberdade de imprensa, o que suscitou o Protesto sobre a Lei de Imprensa, também conhecido como protesto dos sessenta, redigido por Garrett e Herculano e subscrito por sessenta homens de letras, autores e jornalistas.

Deste período, destaco da obra de Garrett: Frei Luís de Sousa (1844), O Arco de Sant’Ana (dois volumes, 1845 –1850) , Viagens na Minha Terra (1843, seis primeiros capítulos; 1845-6, o restante da obra e a publicação em livro), Flores sem fruto (1845) e Folhas Caídas (1853). O que fica patente nestas obras é o vivo descontentamento do autor com o reviramento por que vai passando o mundo, e com o reinado de Quixote que não chega nunca, como a constituição do rei da Prússia, que está prometida, assim como o reinado dos filhos de Deus...  que o contrato, como o assinala no capítulo II de Viagens na Minha Terra, não tem dia. Está prometido, mas não se disse para quando (GARRETT, 1963b: 16-21). Portanto, parece-me evidente que, ao obtemperar, no capítulo III de Viagens, contra a geração de vapor e de de pedra, perguntando quantas almas é preciso dar ao Diabo, e quantos corpos se têm de entregar ao cemitério para fazer um rico neste mundo, não uma conclamação à luta de classes, mas sim ao bom senso do público a quem se dirige (burguesia urbana e letrada) para que aja de acordo com as leis do Evangelho, que desabonam a ganância (Idem, p. 22-27). Há em Garrett um desconforto com o próprio movimento político que abraçara na  juventude:

Desde pequeno que fui jacobino; se : e de pequeno me custou caro. Levei bons puxões de orelha de meu pai por comprar na feira de São Lázaro, no Porto (...), um retrato de Bonaparte.

(...)

Quem me diria quando, por esse primeiro pecado político da minha infância, por esse primeiro tratamento duro, (...) eu havia de ser perseguido por elas toda a vida! que apenas saído da puberdade havia de ir a essa mesma França, à pátria desses homens e dessas idéias com que a minha natureza simpatizava sem saber  porquê, buscar asilo e guarida? (Idem, p. 67)

Quando vai ao campo de Waterloo, sabe muito bem que vítimas ali se imolaram. Mas não sabe — ou diz não saber, ou prefere e não suporta saber em nome de quê. Talvez prefira fazer um apelo à fraternidade, em vez de dar continuidade, seguir em frente, e talvez concluir que em nome destes ideais de Liberdade, sob a bandeira do amor ao próximo e do bem comum, se faz a violência (FREUD, 1988: 105-112). É a própria meta, a própria visada que promove mais violência. Espera-se que venha algum dia o reino de Quixote. Mas não vem nunca. Então sempre alguém terá que pagar para que a esperança e o ideal — do qual não se quer abrir mão — sejam sustentados. 

Também na lírica amorosa, em Flores sem fruto e Folhas Caídas, Garrett depara-se com algo que não pode ser reconhecido pelo sujeito, o desejo sexual (apresentado como desejo indigno). E é isto que vem alimentar o sentimento de culpa, e fortalecer o ideal de amor sob o qual o sujeito se mortifica. O que temos no poemaNão te amo” é uma contraposição entre amor e desejo. Garrett, porque deseja, não suporta amar (FREUD, 1997: 82-84).  Não suporta amar e repudia o desejo sexual. Condenando-o, usa o “não te amo como álibi. O que parece ser insuportável é exatamente amar e desejar sexualmente. As cartas que escreve à Viscondessa da Luz (Rosa Montufar Barreiros, esposa do Visconde de Nossa Senhora da Luz), supostamente a inspiradora das Folhas Caídas, mostram-nos um Garrett que, incapaz de renunciar ao desejo sexual, precisa então chamar-lhe de “esposa”. Mas depois, quando do rompimento, sabe muito bem como fazê-la retornar ao lugar de mulher indigna, dizendo-lhe: “Não, tu não me amas, R., não te iludas (...) Queres-me (...)”(GARRETT, 1954: 96)  Isto estava em Flores sem fruto, no poema “As minhas asas” e na epígrafe de Lamartine que escolhe para abrir o poemaEla”: “Oui, mon âme se plait à secouer ses chaînes: / Déposant le fardeau des misères humaines, / Laissant errer mes sens dans ce monde des corps, / Au monde des esprits je monte sans efforts” (GARRETT, 1963a:. II, 129). O sexual está emNão te amo”, “Coquette dos prados”, “Víbora”, “Seus olhos”. Mas está como efeito colateral, como sintoma (indignidade), uma formação substitutiva da qual se retira um gozo, proveniente este por sua vez do sofrimento. Garrett se auto-repugna e assim temos diante de nós um drama moral.

Carlos, em Viagens na Minha Terra, escreve a Joaninha: “Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, a mulher que se ama” (GARRETT, 1963b: 310). Mas também três caminhos para o homem: “cortar como Bonaparte”, “comprar como Rothschild”, “sofrer e ter paciência com Sílvio Pélico”. Carlos escolheu a segunda hipótese: o baronato (Rothschild).  Por isso mesmo se interdita para o amor (Joaninha). Mas ao fazer isso, dá ao Mundo uma potência que o desimplica subjetivamente (FERREIRA, 1999: 85-101), ou seja, não se reconhece naquilo que diz e faz. É indigno, escolhe o mundo de Sancho Pança. Mas se o Mundo não fosse o que é... Talvez ele (Carlos) pudesse ser aquele Adão natural do capítulo XXIV das Viagens. Carlos se culpa pela escolha que faz, mas não se implica subjetivamente.

um apelo constante ao Cristianismo na obra de Garrett (MONTEIRO, 2001, p. 35-36). Mas a pergunta que não cessa é: se o amor ao próximo, se a fraternidade, se a liberdade, são capazes de promover o Bem comum, então por que Carlos e o próprio Garrett escolhem o Mal? Ou será que não escolhem?

Invocar Camões, dar-lhe a feição do poeta mendigo, e associar isso à imagem de Portugal, não seria uma forma de dizer que sofre o homem, sofre a pátria, mas devem permanecer os ideais? Ou seja: o poeta paga, a pátria paga. Mas pagam porque expiam uma culpa. Há uma indignidade no ar, que, abolida, trará finalmente a constituição prometida pelo rei da Prússia... É isso?... Então estava certo Rodrigo da Fonseca Magalhães quando disse de Garrett: “Morreu abraçado à Cruz, com os olhos na Luz.”[1] Não se abre mão do sofrimento mortal que impõe renúncia em nome de um Ideal! Repito: sofre o poeta, sofre a pátria, permanecem o pecado e a corrupção... E a crença de que o romantismo teria mudado uma idéia de literatura não viria reforçar este equívoco subjetivo?


 

BIBLIOGRAFIA

AMORIM, Francisco Gomes de. Memórias biographicas. Lisboa: Imprensa Nacional. 3 v. 1881-1884.

FERREIRA, Nadiá Paulo. Eu te amo. Tu me amas. Nós sofremos e assim morremos de e por amor. In: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Vol. 19. No 25, jul. /dez. 1999, pp. 85-101.

FRANÇA, José-Augusto. O Romantismo em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1974. 6 v.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

FREUD, Sigmund. Cinco Lições de psicanálise / Contribuições à psicologia do amor. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

GARRETT, Almeida. Obras Completas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1963a. 2 v.

GARRETT, Almeida. Viagens na Minha terra. Lisboa: Portugália Editora, 1963b. Introdução e notas de Augusto da Costa Dias.

GARRETT, Almeida. Cartas de Amor à Viscondessa da Luz. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1954. Introdução, organização de notas de José Bruno Carreiro.

LAWTON, R. A. L’Intime Contrainte. Paris: Didier, 1966.

LOURENÇO, Eduardo. Le Romantisme et Camöens. In: Nós e a Europa. 4 ed. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1994.

MONTEIRO, Ofélia Paiva. A Formação de Almeida Garrett. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971. 2 v.

MONTEIRO, Ofélia Paiva. O essencial sobre Almeida Garrett. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 2001.

PATO, Bulhão. Memórias. Lisboa: Perspectivas & Realidades, s./ d. 3 v.


 


 

[1] A anedota está narrada em AMORIM, 1881-4, vol. III, p. 687. Bulhão Pato também se refere ao chiste de Rodrigo da Fonseca Magalhães quando narra o discurso proferido por Rebelo da Silva no sepultamento do corpo de Garrett (PATO, s./d. vol 2, p. 15).

 

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