O DIÁLOGO ELETRÔNICO
NO TEATRO DE ABELAIRA

Iremar Maciel de Brito (UERJ)

Introdução

Desde o início do século XX, o teatro não é visto não apenas como a arte determinada pelo texto, seguindo uma tradição que vem da Antigüidade. Assim, texto, cenário, encenação e interpretação são a base de criação da arte do teatro, como a entendemos hoje, seguindo a consagrada visão de Gordon Craig que, no início do século XX, definia o teatro como a arte do espetáculo:

A arte do teatro não é nem a representação dos atores, nem a peça, nem a encenação, nem a dança; é constituída pelos elementos que a compõem: pelo gesto, que é a alma da representação; pelas palavras, que são o corpo da peça; pelas linhas e pelas cores que são a própria existência do cenário; pelo ritmo, que é a essência da dança. (CRAIG, 1972; p.10)

Nesse mesmo trabalho, Gordon Craig ressalta ainda, na criação da arte do teatro, a importância do “gesto”, palavra com que designa a ação dramática. Assim, afirma que o gesto, para a arte do teatro, tem o mesmo significado que a melodia tem para a música ou o desenho tem para a pintura. Isso, segundo ele, era absolutamente claro para os escritores teatrais da Antigüidade, pois sabiam que o público desejava mais “ver” do que “ouvir” o que tinham a dizer. Por isso, esses dramaturgos, no seu entender, “sabiam, sem risco de desmentido, que a vista é o sentido mais pronto e mais agudo do homem.” Portanto, a arte do teatro surge no ponto de encontro de um feixe de várias artes, que se materializa no momento do espetáculo, no instante exato em que este entra em contato com o público. No entanto, como não podemos comparar a arte do teatro, entre Plauto e Abelaira, trabalharemos a comparação da arte dos textos teatrais desses dois autores, enfocando o mito do surgimento de Hércules.

O texto de Augusto Abelaira, Anfitrião, outra vez, escrito para teledramaturgia segue uma longa tradição teatral, que tem sua origem na comédia paliata, criada pelos romanos, no século III a.C. Esse gênero de comédia, que usava como vestimenta o pálio grego, mantinha estreitas ligações em sua origem com a comédia nova helênica, do século IV a.C. A comédia paliata buscava seus temas e histórias nos mitos gregos da Antigüidade. Assim aconteceu com o Amphitruo que, antes de ser um texto de Plauto, pertenceu à cultura helênica. É o primeiro de uma série de “Anfitriões”, cerca de 50, que serão escritos ao longo dos séculos. Também no teatro português a peça de Plauto teve seus seguidores, que trabalharam, à sua maneira, a seqüência dramática do texto romano. Camões escreveu o Auto dos Enfatriões para os salões do século XVI; Antônio José da Silva escreveu Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, para o teatro de bonecos do século XVII, os bonifrates. Augusto Abelaira escreveu no século XX Anfitrião, outra vez para o teleteatro. Todos criam uma narrativa teatral para contar o mesmo mito, o nascimento de Hércules. Nos interessa examinar nesse trabalho as relações entre o Anfitrião da Antigüidade e o da Atualidade, buscando identidades e diferenças, pretendendo entender a recriação dessa comédia nos parâmetros do teatro do século XX.

O mito que dá origem ao Amphitruo conta: Zeus, querendo gerar um filho que reunisse em si o divino e o humano e, portanto, tivesse mais possibilidade de proteger os deuses e os homens contra terríveis monstros que se espalhavam pela terra, escolheu Alcmena para ajudá-lo nessa tarefa. Assim, assumiu a aparência física de Anfitrião, seu marido que estava na guerra. Alcmena, sem desconfiar de nada, entregou-se ao deus que julgava ser o marido. Assim foi gerado Hércules. No entanto, pouco depois, o verdadeiro Anfitrião voltou da guerra e, contando a vitória a Alcmena, estranhou o comportamento da esposa, que lhe dizia já saber de tudo. Quando Anfitrião descobriu que a mulher esteve com um homem que afirmava ser ele, ficou cheio de ciúmes e ódio. Sentindo-se desorientado com aquela história toda, foi em busca da ajuda do adivinho Tirésias que lhe contou a verdade. Anfitrião, entendendo que foi traído por um deus em nome de uma causa justa, perdoou a esposa.

A estruturação dramática dada por Plauto, enfocando, principalmente o relacionamento amoroso entre Júpiter e Alcmena, é também a base dramática na qual se apoiam todos aqueles autores que recriaram o mito, tendo como paradigma o texto romano. Além disso sempre o enfoque é sempre cômico, baseando-se nos mesmos qüiproquós, como a troca de identidades entre Júpiter e Anfitrião, Sósia e Mercúrio. A troca de identidades e o escravo esperto e covarde são tipo nascidos na comédia nova que emigraram para a comédia paliata e se estenderam pelos tempos até os nossos dias. Também o personagem de Alcmena sempre é cercado de seriedade, criando uma oposição lógica que alimenta o humor dos equívocos que nos revela uma situação absurda. Nela podemos ver um homem dialogando com o seu duplo, uma réplica perfeita de si mesmo, tão perfeita que Sósia chega a desconfiar que o outro Sósia, Mercúrio quer assumiu sua aparência física, é o verdadeiro escrevo de Anfitrião. Mas, se o outro é verdadeiro, quem é ele, afinal, será que já morreu e não sabe? Esse humor de personagem, fortemente baseado nas características do tipo, também será muito trabalhado nos “Anfitriões”, desde o Renascimento, que buscava, entre outras coisas, a recriação desse humor plautino, até os nossos dias.

Identidades e diferenças nos “Anfitriões” de Plauto e Abelaira

O título do texto de Abelaira, Anfitrião, outra vez, já é pleno de significados. Esse “outra vez” associado ao título da versão original da peça Amphitruo de Plauto nos leva a concluir duas coisas. A primeira delas diz respeito à grande quantidade de “Anfitriões” no teatro, cerca de 50 peças, criadas a partir do texto de Plauto. Então, nesse sentido, o texto de Abelaira seria apenas mais uma “Anfitrião”. No entanto, numa segunda conclusão sobre o título, também percebemos uma certa ironia nesse “outra vez”, como se essa repetição fosse uma coisa exagerada. De uma certa forma, podemos ver que título dado por Abelaira à sua obra contém uma certa ironia com a própria obra, numa espécie de distanciamento da obra, como se a visse de fora e não desse a ela grande importância, o que é típico de um autor da atualidade.

Tanto Plauto como Abelaira, criaram suas versões do mito, profundamente relacionados ao momento teatral de suas épocas. A comédia dos enganos entre deuses e homens, na época de Plauto era representada nos teatros romanos, feitos de madeira, antes portanto dos grandes anfiteatros de pedra. Assim os atores estavam mais perto do público, como o palhaço de um circo no picadeiro. Também nessa época a comédia paliata ainda não usava máscaras, mas pintava o rosto dos atores com uma base branca. Isso dava ao público a possibilidade de perceber as expressões faciais que criavam para os personagens. O espetáculo, rico em sons, movimentos dos atores, danças, e brincadeiras de apelo popular, era quase circense.

O espetáculo proposto por Anfitrião, outra vez acontece no grande teatro eletrônico do século XX, a televisão, Nele o público também está perto dos atores para perceber seus movimentos e suas expressões faciais. As coincidências acabam aí, porque a diferença de veículo implica necessariamente numa outra linguagem, que não é o propósito desse trabalho. Queremos discutir apenas as diferenças textuais na abordagem do mito de Hércules.

Uma das grandes diferenças do texto de Abelaira para Amphitruo está no fim da crença nos deuses. Agora a tecnologia ocupou seu lugar, por isso os deuses já não têm espaço para viver no mundo moderno. A crença nos deuses é uma coisa do passado e, mais do que isso, é colocada na clandestinidade, como se fosse um grande problema para a humanidade moderna. Se os deuses dão um sentido e fundamentam o texto plautino, agora eles já não têm valor algum, como podemos ver no primeiro encontro entre Júpiter e Mercúrio:

JUPITER - Júpiter - Por acaso não és Mercúrio?

(Vê Mercúrio sob a sua forma mitológica, as asas nos pés)

MERCÚRIO (preocupado) - Qual Mercúrio?

JÚPITER - O deus, quem havia de ser?

MERCÚRIO - Bem sabes que não há deuses...

JÚPITER - Não me reconheces?

(Imagem de Júpiter sob a forma mitológica, um raio na mão)

MERCÚRIO - Júpiter! (Preocupado) Se te reconhecem, matam-te, os deuses foram proibidos de existir, pelo menos depois do século XIX. Condenados à morte. Passaram de moda e eu próprio pensei que tivesses morrido ou que te tivessem fuzilado nalguma revolução. Já não te vejo há...

(Aproxima-se de Júpiter um mensageiro)

MENSAGEIRO - Juno continua no quarto a descansar.

JÚPITER - Ninguém lhe disse que vim à terra?

MENSAGEIRO - Não sabe nada.

MERCÚRIO (apreensivo) - Se te descobrem, matam-te. Mas eu, não, sou Mercúrio, deus da eloquência, deus industrioso, já te esqueceste? Deus do comércio e da indústria... Adaptei-me, fiz-me industrial, continuo igualmente a ser deus, mas eles tem a ilusão de que sou apenas homem. Associei-me a Anfitrião, administramos a IBH, o grande monopólio mundial de dialogadores... (ABELAIRA, 1980; p. 13)

A comunicação humana não está mais associada às palavras improvisada, mas às palavras criadas por outros e colocadas nos dialogadores. A tecnologia supre a comunicação verbal entre os homens, por isso se faz necessária a presença de uma máquina entre eles para que a comunicação aconteça. O supermercado, por isso faz sua propaganda, em anúncios luminosos, onde afirma “com IBH dialogadores conquistarás o amor”. É, portanto, num supermercado que Júpiter v pela primeira vez um dialogador, como podemos perceber no seguinte diálogo:

JÚPITER (intrigado) - Que objetos são esses, que toda a gente anda com eles na mão?

DIALOGADOR DE MERCÚRIO (que se mantém em silêncio) - Não percebo a pergunta... Nunca viste um dialogador eletrônico?

JÚPITER - Não sabes falar? Vocês não sabem falar?

MERCÚRIO (desistindo de usar o dialogador) - Não sabes o que é um dialogador? Onde vives tu? Caíste do céu?

MERCÚRIO - Compreendes, conversar é difícil, extremamente difícil... implica cultura, brilho, facilidade de palavra, paciência, atenção... Nem todas as pessoas têm essas qualidades, mas a vida obriga-as a conversar mesmo quando nada precisam dizer.

(Outras pessoas conversam com o auxílio de dialogadores; um par de apaixonados; uma mulher foi apanhada a roubar. Discussão entre dialogadores)

MERCÚRIO - Imagina dois amigos que se conhecem há muito anos, um casal que vive junto há muito tempo.

(Imagem de um casal em casa, ao serão, em silêncio, ele com jornal, ela a fazer tricot)

MERCÚRIO - Disseram tudo o que pensam, o que sentem, o que sabem, o que desejam...

(O mesmo casal, mas agora conversando entusiasticamente graças aos dialogadores)

MERCÚRIO - O dialogador é isso, permite sempre a conversa, inventa-a...

(Dão uma volta pelo supermercado, procurando compreender as conversas, todas elas entre dialogadores)

MERCÚRIO - O que importa é suprimir o silêncio e não que se perceba o que se diz.

MERCÚRIO - A sociedade de consumo provocou um grande gasto de palavras. Tão grande que os métodos artesanais já não bastam. Daí a necessidade de as produzir industrialmente. E as palavras são as coisas. As palavras são o mundo, que aliás começou por ser palavra. No princípio era o verbo. (ABELAIRA, 1980; p. 8)

A vida doméstica, quase ausente no texto romano, surge com grande força em Anfitrião, outra vez, onde a modernidade se instala no ambiente, nos móveis e no relacionamento dos personagens. Da mesma maneira que Anfitrião, através de suas ações, critica a vida moderna, agindo como empresário e político inescrupuloso, Alcmena, em suas tarefas de dona de casa também serve de base para discutir os erros da modernidade. É, exatamente isso, o que podemos apontar no texto que se segue:

(Mobília muito funcional, tão funcional como incômoda. Todos os móveis são de matéria plástica transparente (o que levará, numa cena posterior, Júpiter a tropeçar constantemente neles por não os ver). Um biombo transparente perto da porta. Bebidas. E revistas: Elle, Vogue, Burda, Marie Claire. Alcmena com a criada Brómia que entretanto vai limpando o pó. Alcmena ao telefone).

ALCMENA - Tiveste muito trabalho, Anfitrião? Três comícios seguidos? Diz. Sim. Saudades? Certo. Pois. Não. - (Põe o dialogador a funcionar, liga-o ao telefone e pega numa Elle).

DIALOGADOR DE ALCMENA (ligado ao telefone) - Muitas, muitas saudades, Anfitrião. Às vezes pego numa revista, começo a ler, mas não posso continuar, penso em ti....

(Entretanto Alcmena aproxima-se de Brómia, enquanto o dialogador continua a falar (ouvem-se aqui e ali palavras como “sim”, “não”, “hei de ver”, “amanhã”...). Conversa com Brómia e ao mesmo tempo desembrulha um candeeiro).

BRÓMIA (sempre a limpar o pó) - Se a senhora me subisse ordenado...

ALCMENA - Para que queres ganhar mais? - (Estuda o sítio onde coloca o candeeiro) - Tens casa, cama, roupa lavada...

BRÓMIA - Gostava de casar, minha senhora.

DIALOGADOR DE ALCMENA (ao telefone) - Sim, sim, penso em ti... Estes dias parece que nunca mais passam.

ALCMENA (para Brómia) - Para que precisas de casar? Casas, depois os filhos, as preocupações... - (Sobre uma cômoda, uma fotografia do casamento de Alcmena com Anfitrião) - És uma ingrata, é o que és, já te esqueceste da barraca aonde te fui buscar. (ABELAIRA, 1980; p. 16)

A estrutura dramática de Anfitrião,
outra vez

A idéia básica, desenvolvida a partir da história de Anfitrião é o desgaste da linguagem no relacionamento humano. Esse aprisionamento da linguagem pela tecnologia funciona como o elemento crítico mais forte do texto de Abelaira. A grande distância entre o mundo antigo e o moderno é estabelecida desde o momento em que Júpiter chega à terra. Ele descobre, espantado, que as pessoas já não se falam diretamente. Para se comunicar usam agora uma maneira indireta, isto é, já não precisam falar, pois os aparelhos chamados dialogadores se encarregam dessa tarefa. São pequenos artefatos tecnológico, semelhantes a um gravador ou calculadora, que passaram a dominar as comunicações verbais entre os homens.

A função da política no mundo contemporâneo no texto de Abelaira, como em muitos aspectos da realidade, é promover o uso da tecnologia. Mesmo que, ao invés de aproximar, ela distancie os homens, será vista como uma maneira de facilitar sua vida e liberar seu pensamento. É exatamente o que Anfitrião defende em seus comícios, como podemos ver no texto:

ANFITRIÃO (com outro fato) - Temos uma tradição a defender, uma tradição milenária que não pode ser posta em causa com vãs promessas. As palavras dos nossos adversários políticos ignoram a realidade, mas eu dei-vos a palavra. Através dos dialogadores semeio palavras e palavras... (Vozes, vivas). (ABELAIRA, 1980; p. 16)

Anfitrião fala como um político demagogo que faz uma espécie de comércio com o voto dos eleitores. Promete em troca do seu voto dar alguma coisa que vá melhorar a sua vida. A grande ironia dessa promessa está nela mesma, ou seja, no propósito de dar “palavras” às pessoas, pensamentos prontos e pontos de vista que seguem uma lógica absolutamente codificadas numa máquina, longe portanto da liberdade de pensamento das pessoas. Isto é, a chamada liberdade das palavras, revela-se, na verdade, como uma autêntica prisão.

A ação dramática
e os personagens de Anfitrião, outra vez

A ação dramática do texto português é pautada em inúmeras diferenças em relação ao original latino. Porém, porém a base da fábula teatral, mesmo deslocada no tempo e no contexto, permanece a mesma. Júpiter assume a aparência física de Anfitrião para passar uma noite de amor com Alcmena, por quem está apaixonado. No texto de Pauto, Júpiter já é amante de Alcmena, que encontra-se grávida desde o início da peça. Na telecomédia de Abelaira, Júpiter se apaixona pela mulher de Anfitrião, casualmente, atraído por sua beleza, no primeiro momento que a vê na rua. Tenta conquistá-la, dizendo-lhe galanteios, mas Alcmena, acompanhada da criada, Brómia, não dá a menor atenção a ele. Já não há uma predestinação divina no mundo e a vida se impõem por suas relações no presente. No seguinte diálogo com Mercúrio, Júpiter descobre que o mensageiro dos deuses tornou-se sócio de Anfitrião e vem a saber também quem é aquela mulher tão bonita por quem se apaixonara:

(Novo comício. Anfitrião com outro fato)

ANFITRIÃO: Prometi-vos palavras, dei-vos palavras. Mas palavras que completam as vossas vidas. Palavras cada vez mais capazes de novas combinações, combinações cada vez mais ricas. - (Vozes repetidas: “Com o IBH Dialogador não há segredos, temos a palavra na ponta dos dedos.”)

JÚPITER - É ele teu sócio?

MERCÚRIO - Por sinal, casou com aquela mulher que tu achaste muito bela, lembras-te? Aquela com quem estive a falar...

JÚPITER - Poderia lá esquecer-me! (ABELAIRA, 1980; p. 16)

Os personagens de Abelaira são basicamente os mesmo de Plauto, mas sua identidade sofre grandes transformações. Júpiter, o deus todo poderoso de Amphitruo, surgem em Anfitrião, outra vez, como um deus destronado, obrigado a viver sua divindade na clandestinidade, pois agora isso é proibido. Na peça portuguesa também Mercúrio abre mão de sua divindade para se transformar em empresário bem sucedido, preocupado apenas em ganhar dinheiro. Anfitrião, antes, um sério general tebano, agora, um político e um empresário, criador dos dialogadores, que inventa um outro perfil para as comunicações humanas.

Na atualidade do texto, esse tipo de relacionamento entre os homens já não é mais direto como antigamente, mas indireto, isto é, através das novas máquinas. Todas as conversas agora são codificadas, como se as pessoas já não precisassem pensar para falar, pois a tecnologia facilita essa tarefa. No entanto, o que acontece na verdade é uma eliminação das diferenças entre os seres humanos que passam a ter uma comunicação absolutamente falsa e fora das improvisações da vida. É como se o homem moderno reduzisse a sua capacidade de pensar, pois agora a tecnologia supre até mesmo o pensamento. Em outras palavras, no universo do texto, a tecnologia passa a ser tudo, isto é, o princípio e o fim de todas as coisas.

Alcmena, esposa de Anfitrião, é uma burguesa típica da atualidade que, mesmo tendo alguns móveis invisíveis, insiste em mudá-los de lugar, causando confusão para seu marido que vive tropeçando neles. No entanto é uma mulher séria como podemos ver nesse diálogo entre Júpiter e Mercúrio:

JÙPITER : Quero aquela mulher...

MERCÚRIO: Penso que Josefina é mais fácil...

JÙPITER: Alcmena está em crise, por que há de ser difícil?

MERCÚRIO (preparando o dialogador): É uma mulher séria.

JÙPITER: Que é uma mulher séria?

DIALOGADOR DE MERCÚRIO: Uma mulher que preza mais o que se pensa dela do que o pensa de si própria.

JÙPITER (violento): Proíbo-te... - (Afasta o dialogador de Mercúrio) - Queres dizer que se ela pudesse amar outro sem que ninguém soubesse?...

MERCÚRIO: De qualquer forma nunca é possível amar outro homem sem que ninguém saiba. Sabe pelo menos o outro. (...) Uma mulher séria só se daria a outro se ele não pudesse saber. E portanto só tens uma saída: disfarça-te de marido, disfarça-te de Anfitrião. Para ti, um deus, é fácil. (ABELAIRA, 1980; p. 23)

Juno, a deusa, morre de ciúmes de Júpiter e vive tentando seguir seus passos e destruir suas conquistas, como costuma aparecer nos mitos gregos. No texto de Abelaira ela é vista muito mais como uma mulher do que como uma deusa, embora use esses poderes constantemente. Sozinha, abre o seu álbum de fotografias e sofre com as conquistas amorosas de seu marido, como vemos no texto a seguir:

JUNO (Vai folheando o álbum. Mostrar o álbum, mostrar as fotografias) - E agora? Gostaria de ter sido todas as mulheres por quem te apaixonaste, de ser todas as mulheres de quem gostas... E dizer-lhes sempre as mesmas coisas que te ouvi nos começos, ou és outro, como são outras as mulheres? Gostaria de ter sido todas as mulheres por quem te apaixonaste, exceto eu. Mas continuo a tua espera, eu sei que já não me esperas, que nada esperas de mim. (ABELAIRA, 1980; 26)

No entanto, no texto de Abelaira, Juno passa a ter uma participação diferente, repetindo o mesmo jogo que Júpiter costumava usar, a metamorfose em amante. Da mesma maneira que Júpiter transforma-se em Anfitrião para ser aceito como amante por Alcmena, Juno transforma-se em Alcmena para alcançar os amores de Anfitrião. Podemos ver no seguinte trecho como Juno conta com a ajuda de Cupido para realizar essa tarefa:

JUNO: Disfarçar-me-ei de Alcmena - (Imagem de Alcmena) - Ou de Josefina? - (Imagem de Josefina).

CUPIDO: Anfitrião cansou-se de ambas. Se queres conhecer o amor, devo já dizer-te, o que é belo é o começo. Não te aconselho a que te disfarces num amor já cansado. Olha para mim que continuo criança.

JUNO: Eu sei. Mas não está aí a beleza? Rejuvenescer um amor já cansado?

CUPIDO: Então mascara-te de Alcmena. E foi por ela que Júpiter se interessou...

JUNO: Ajuda-me a ser Alcmena... (ABELAIRA, 1980; p. 33)

O próprio Cupido já não vê utilidade alguma em suas setas, pois os tempos mudaram e já não se dá importância alguma aos deuses. É ssa a lamentação de Cupido contra os tempos modernos:

CUPIDO: O mundo foi de tal modo feito que sobrevivem os velhos costumes, mesmo quando já não têm razão de ser. Hoje ninguém espera pelas minhas setas. Compreendes, estamos numa sociedade permissiva... Mas se eu não fingisse que sou necessário que seria de mim? O desemoprego... Nunca ouviste dizer que morreram os deuses? Eles não morreram, mas os homens julgam que são desnecessários. Pior: são os próprios deuses que se julgam desnecessários, que se demitiram de suas responsabilidades, têm medo quando vêem uma assembléia geral dos homens, não se atrevem a mantê-los na ordem. As votações de braço levantado apavoram-nos. (ABELAIRA, 1980; p. 44)

Brómia e Sósia são empregados comuns, representando a classe social mais baixa e sem esperança da peça. Josefina é apenas uma amante de Anfitrião. Completa o elenco de personagens um grande número de figurantes que preenchem os mais diversos espaços do texto.

O espaço e o tempo em Anfitrião, outra vez

Em Amphitruo, o espaço dramático é apenas a casa de Alcmena e o tempo era inferior a 24 hora, como era comum no teatro da Antigüidade. Na vida moderna de Anfitrião, outra vez, o tempo e o espaço multiplicam-se, dando uma dimensão mais humana à história e aprofundando o relacionamento humano dos personagens. Assim surgem vários espaço, entrecortados por curtos tempos narrativos, próprios do veículo a que se destina, o teleteatro. Um dos espaços mais importantes dessa seqüência dramática de Abelaira é o supermercado, um dos templos de consumo da sociedade moderna. Segundo afirma Mercúrio, a sociedade de consumo provocou o desgaste das palavras que já não podem ser apreendidas sem a presença dos dialogadores. Na rubrica inicial do texto Abelaira já mostra como trabalhará com o espaço, cortando de um para outro, como é comum na linguagem cinematográfica:

Rua. Pessoas que conversam, como é natural. O que já será menos natural é a forma como conversam: indiretamente, servindo-se de dialogadores (aparelhos de aspecto semelhante às calculadoras de bolso ou a gravadores) que cada um empunha, previamente pressionando as teclas. Quem fala não são as pessoas, mas os dialogadores, isto é, as pessoas falam com auxílio de dialogadores, que pergunta e respondem.

Transição para um supermercado cheio de gente, homens e mulheres empunhando sempre seus dialogadores. (ABELAIRA, 1980; p. 6)

Outros espaços importantes que surgem no texto de Abelaisra são o hotel, onde Anfitrião encontra sua amante, Josefina, e a casa, onde está Alcmena. No seguinte diálogo podemos ver o relacionamento desses dois espaços, mediados pelos dialogadores, presentes em inúmeros momentos do texto:

DIALOGADOR DE ANFITRIÃO - Pois é, Alcmena, tenho muitas saudades tuas. É penas não estares aqui comigo, não podes imaginar o que foi o último comício. Um êxito, saída aos ombros. Sim, sim... Mas não queriam que eu acabasse, exigiam mais...

ANFITRIÃO - Amor... (Abraça Josefina, desaperta-lhe o vestido).

(Alcmena entretanto folheia a Vogue. Deixa-se de ouvir o dialogador de Alcmena para se ouvir o monólogo dela)

ALCMENA - Por que não ficas aí mais uma semana? Por que não me deixas em paz? (ABELAIRA, 1980; p. 19)

Além dos espaços fechados de casas, lojas e quartos, também temos cenas que acontecem nas ruas e em praças públicas, onde destacam-se os comícios políticos em prol da candidatura de Anfitrião. São três comícios em que Anfitrião faz as mesmas velhas promessas dos políticos tradicionais, o que podemos atestar no seguinte momento:

ANFITRIÃO (tribunício) - Naturalmente os nossos adversários fazem promessas que não tencionam cumprir, pretendem votos unicamente... - (Palmas, vozes: “Viva Anfitrião!”)

(ABELAIRA, s.d.; p. 15)

Num outro comício, também na rua, Anfitrião explica que, graças aos dialogadores, as pessoas podem encontrar todas as palavras que dão sentido à vida, sem precisar pensar nelas, o que podemos atestar na cena seguinte:

ANFITRIÃO (com outro fato) - Prometi-vos palavras, dei-vos palavras. Mas palavras que completam as vossas vidas, que dão outro sentido às vossas vidas. Palavras cada vez mais capazes de novas combinações, combinações cada vez mais ricas. - (vozes repetidas: “Com o IBH Dialogador não há mais segredos, temos a palavra na ponta dos dedos.”) (ABELAIRA, s.d.; p. 16)

Conclusão

A parte final do teleteatro de Abelaira volta a encontrar o texto de Plauto, repetindo os quiproquós da comédia latina, sem no entanto separar deuses e homens, como se agora passassem a viver uma só vida. Ao invés da troca de identidade ser esclarecida, ela é enfatizada por Abelaira, esquecendo a ética que coloca deuses e homens em partidos separados, como podemos atestar no seguinte texto:

Entram Alcmena, Brómia e Sósia.

ALCMENA: Que vejo eu? Dois Anfitriões?

BRÓMIA: Impossível!

SÓSIA: Que é isto?

ANFITRIÃO: Este homem faz-se passar por mim, diz que eu já não sou eu, quer roubar-me o eu.

JÚPITER (para Alcmena): Aqui tens este colar de pérolas. - (Para Anfitrião) - Podes dar-lhe um igual?

ALCMENA (para Júpiter): Por que se mascarou ele?

JÚPITER: Porque é um impostor.

ANFITRIÃO: Alcmena! Não te deixes enganar! - Tu que foste visitar-me ontem...

ALCMENA: Mentira... - (Para Mercúrio) - Explica-me, Mercúrio... Qual deles é Anfitrião?

MERCÚRIO: Consulta-lhes a carteira.

ALCMENA : A carteira nunca mente?

MERCÚRIO: Como queres que minta? A carteira nunca mente, é a voz da verdade... - (Para Sósia) - Vai chamar a polícia, que este homem é um impostor, está em casa alheia.... (ABELAIRA, 1980; p. 79)

Fica evidente assim o que comanda a vida moderna: a carteira. O deus dinheiro tomou o espaço de todos os outros deuses na vida moderna. Nessa vida tudo se transforma em jogo, pois o amor e a moral são totalmente enganadas no teleteatro de Abelaira, fazendo com que as esposas, tanto a humana como a divina, acabam na verdade, trocando de parceiro, como percebemos no seguinte texto:

Forma-se então uma espécie de “happy end” pouco convencional como percebemos no final do texto português:

Anfitrião algemado conduzido por dois policiais numa rua vazia (...) Então juno (Juno ex-maquina) desce dos ares, sempre disfarçada de Alcmena. Com um gesto põe os guardas em fuga e quebra as algemas de Anfitrião. Caem nos braços um do outro.

Surgem também Júpiter disfarçado de Anfitrião, e Alcmena, mas os dois pares não se vêem.

Ouve-se uma valsa e os dois pares começam a dançar. (ABELAIRA, 1980; p. 80)

Forma-se então uma espécie de “happy end” pouco convencional, ironicamente comentado por Cupido, que acaba matando Mercúrio, quando pretendia apenas fazê-lo apaixonar-se. No mundo moderno, a flecha do amor também pode transformar-se na flecha da morte, sem que isso cause grande espanto ou admiração, como percebemos na última cena do teleteatro:

CUPIDO: Bem, eis aqui um epílogo que não me parece respeitar as regras da moral e da justiça, pois acaba de premiar com amor quem merecia castigo. Mas haverá moral e justiça nesse mundo? - Descobre Mercúrio) - Ah, sem armadura... - (Pega uma seta, dispara-a, Mercúrio cai morto) - Ora esta... Não era uma seta de amor... Embora involuntariamente fez-se um pouco de justiça, afinal... A suficiente... (ABELAIRA, 1980; p. 80)

Finalmente, desmascara-se o jogo, pois o teleteatro, que escondia o teatro e este que escondia os atores é absolutamente revelado, quando os atores despem seus personagens diante das câmeras, como diz a rubrica final:

Longa Pausa

Ouve-se então (começa a aparecer a platéia de um teatro) algumas palmas tímidas, logo seguida de uma valente pateada e de tomates arremessados contra os atores. Mercúrio levanta-se, os outros param de dançar e, hesitantes, Vêem à boca de cena agradecer os tomates que continuam a cair sobre eles.

Entretanto vão tirando os disfarces e ficam o que são: simples atores de uma comédia sem sentido. (ABELAIRA, 1980; p. 80)

Qual a comédia sem sentido de que fala Abelaria? Seria a comédia representada pela fábula teatral, repetindo o mito do nascimento de Hércules? Ou seria a comédia humana, sempre confusa em seus relacionamentos? De qualquer forma, a recriação de Abelaira para a velha comédia plautina, mesmo tendo como pano de fundo a vida moderna, expõe de uma maneira tão aguda quanto no texto antigo, os problemas causados pelo relacionamento amoroso dos seres humanos. Um problema antigo, exaustivamente discutido pelo teatro, mas longe de chegar a uma solução definitiva.

Bibliografia

ABELAIRA, Augusto. Anfitrião, outra vez. Lisboa: Moraes Editores, 1980.

ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Cultrix, 1978.

BOGATYREV, P., KOWZAN, T., INGARDEN, R., VELTRUSKI, J., e GUINSBURG, Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988.

CRAIG, Gordon. A arte do teatro. Lisboa: Arcádia, [s.d.].

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 1996.

PLAUTO. Anfitrião. Rio de Janeiro: Ed. Ouro, 1969.

PEACOCK, Ronald. Formas de literatura dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

 

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