POESIA CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA
ANTES, A EXPERIÊNCIA.

Marcus Motta (UERJ)

 

Ao saber do convite da Academia Brasileira de Filologia para proferir uma aula-conferência no Seminário Superior de Literatura Portuguesa sobre poesia contemporânea, fiquei na expectativa de um confronto com meus estudos ainda em andamento Vi-me, portanto, na ocasião de pensar com mais insistência do que nunca no que constitui o seu próprio progresso. Em virtude desse contexto, achei válido reconhecer, de antemão, o papel, nada descartável, da Poesia Experimental portuguesa entre todas aquelas realizadas contemporaneamente; sendo tal reconhecimento aprendido pela seguinte expressão: poesia é isto.

As idéias, portanto, que se principiam ou terminam esta aula-conferência aparecem lendo e refletindo sobre a expressão: poesia é isto. O que significa que estou a chamar outros pesquisadores, futuros ou não, para um diálogo um pouco maior, pensando em sensibilidades literárias que ainda não estão submetidas ao desinteresse de enfrentar uma desaprovação – seja aquela que vigora pela tradição; seja aquela dos recém chegados à reflexão crítica.*

Isto quer dizer que a Poesia Experimental pode se tornar, para alguns, causa fóbica. Digo, que tais personalidades não desejam verdadeiramente essa forma de poesia contemporânea em seu cânone. E assim, descrevem uma certa predominância lírica no ato de aceitar a poesia em geral; mesmo entre aqueles que tutelam novas teorizações.

Frente as estes aspectos, proponho a seguinte hipótese argumentativa: para que um ato poético possa ser apreendido como experimento ou não, a forma deve suportar a tarefa do julgamento do que é arte poética. Ou seja: é preciso decidir se o experimento corrobora o estatuto da poesia, garantindo assim a experiência da leitura e escrita; ou se o experimento suspende a tradição poética e questiona a tarefa de ler e escreverpoesia”.

Há de se pensar, primeiramente, que o acima apresentado nutre-se da polêmica que qualquer vanguarda tende a manifestar: saber “o que é poesia” torna-se irrelevante. Isso se dá porque a idéia do que é uma poesia muito se esvaziou de todo o glamour, tornando o acesso à reivindicação de poetizar um espaço não limitado por alguma barreira formal; o que provoca a certeza de que qualquer um pode estar a poetizar se assim o deseja. Contudo, na cultura portuguesa, o princípio possível da indignação quanto ao ato de poetizar, isto não é poesia, permanece como se fosse a relevância natural ao julgamento de gosto, contaminando o que poderia ser uma atitude experimental:poesia” é isto.

Tal fato cultural afeta a própria postura da vanguarda; pois se a relevância faculta ser julgamento de gosto, a naturalização do experimento tende a garantir a experiência como estatuto da poesia, como é o caso da Poesia 61. Reunidos na publicação que leva este nome, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Casimiro de Brito e Gastão Cruz logo tiveram seus poemas envolvidos na querela com a tradição poética portuguesa; confrontados, sobretudo, à visão subjetivista da poesia da Presença e à sociologia dos neo-realistas. Sem jamais conformarem um movimento, esses poetas parecem se aproximar na tentativa de formular o que Eduardo Prado Coelho chama de “concepção topológica do texto”; a construção de uma trama capaz de garantir a natureza polissêmica das palavras e de seus variados contextos de significação. Entretanto, mesmo essa radicalidade formal se ancora, exatamente, na manutenção do estatuto tradicional da poesia, percebido como código comum necessário para o funcionamento de seus jogos de signos e sintagmas.

Embora os experimentos artísticos se sucedam, a importância da ação poética está previamente enunciada pela relevância da categoria gosto na cultura portuguesa – materialização, posso dizer, de que se pode falar de poesia como uma arte poética. O que significa que os experimentos estão envoltos num particularismo capaz de noticiar tudo como se fosse experiência. Melhor: a apreensão do experimento poético constata de algum jeito o estatuto da poesia, quando considera o que é feito, ou a fazer, como evidência objetiva dos compromissos aceitos a priori.

Devo até fazer uma pequena parada de maneira a provocar uma separação estética entre experimento e experiência. Quase sempre tomadas numa sinonímia apressada, as palavras reforçam graus de distinção alarmantes. Se é da experiência um repouso na narração por fazer ou a ser feita, o experimento possui uma margem de indeterminação que se opõe indissoluvelmente à idéia que lhe dá o primeiro passo; significando a não garantia de que o espírito do artista e os seus procedimentos artísticos estejam à altura do fogo fátuo da objetividade imanente à poesia escrita.

Sendo assim, a condição do gosto na cultura portuguesa, ou particularismo dos compromissos estéticos aceitos a priori lembrar a crítica de Machado de Assis a Eça de Queirós), é provavelmente demonstração do predomínio dos fins em relação aos meios; algo que na experimentação não deve estar em separado e nem sequer suposto. Explico: o fim poético consiste na relevância feito natureza do gosto; cujos meios corroboram o código da poesia por alavancar a premissa do que é arte portuguesa. Esse veredicto do gosto, isto é poesia portuguesa, repousa na durabilidade da categoria de experiência nessa cultura; numa prova de experimentos alienáveis àquela madre das coisas. Ou seja: a poesia é a própria experiência de gostar de se distinguir para ler ou escrever arte, o que se possa denominar poesia portuguesa - variando entre isto não é poesia e poesia é isto; porém garantindo a identificação entre uma estética da poesia e uma arte poética.

Essa imposição de uma tautologia do gosto, sempre na terceira pessoa do singular do verbo ser, mede o experimento como se contam as experiências, provando que o trabalho poético, em particular, pesa ao significar o que é gostar de se pôr na vanguarda. Sendo assim, o fato de serpoesia” torna-se verdade a priori da finalidade do gosto; vanguarda ou não.

Claro que nesse aspecto a proposta estética daquela que Melo Castro denomina genericamente de poesia espacial é reconhecimento de que a condição da arte é um estado conceitual - muito em voga nos meados da década de 50 e por toda década de 60. Porém, a tendência em não haver um grupo de poetas concretos em Portugal, como no Brasil - que teve na visita de Décio Pignatari a Lisboa em 56 um primeiro contato frágil -, clama a particularidade de assentimento em se ser vanguarda. O que transforma a qualidade da Poesia Experimental numa experiência que, mais do que qualquer coisa, indica não ter ela perdido entre os portugueses a posição de outsider.

Essa indicação, que aparece num texto de Melo e Castro no catálogo da Bienal de São Paulo de 1977 sobre a representação portuguesa da Poesia Experimental, está diretamente ancorada numa possível apreensão de que o ato experimental busca conceituar a opção estética através daquilo que posso chamar de relevância satisfatória. Ou seja: a força de vanguarda desmistificante que aquela opção traduz, corrobora a crítica como sempre se fez ao longo da história portuguesa. Mesmo que o poeta diga que a Poesia Experimental é pioneira da arte conceitual dos anos 70; os conhecimentos poéticos mantêm em separado o fazer e o julgar arte.

Essa precedência demonstra (pioneirismo é uma repetição cultural na história portuguesa), que o gosto de ser vanguarda postula: isto é poesia portuguesa - mesmo que se saiba que a arte conceitual teve seus maiores representantes nos anos 60. Se assim se diz, o rigor conceitual promulgado por vários movimentos experimentais, fazendo coincidir experiência artística e estética, torna-se na vanguarda portuguesa a revivência da tradicional combinação entre arte e estética. Claro que entre aqueles que participam da Poesia Experimental (Antônio Aragão, Antônio Ramos Rosa, Antônio Barahona, Melo e Castro, Herberto Hélder, Salette Tavares - equipe do número I da Revista Poesia Experimental -, Ana Hatherly e outros) há quem se interesse por teorizar o que se pretende. Apesar disso, a lógica é de atitude pedagógica e de interferência didática.

Fica-me a impressão que a proposta de radicalismo morfológico, palavra objeto, texto matéria, empirismo sensual, visualização, sintaxe combinatória e outra forma de semântica, está a manter em separado experiência artística e estética, cuja proximidade radical era a grande tarefa dos movimentos artísticos da década de 60. E para melhor saber do que isso trata na Poesia Experimental, quero aqui me dedicar a ler uma passagem do texto de Ana Hatherly, publicado em Lisboa no Diário Popular de 25-5-67, com o título de Estrutura, Código, Mensagem.

Evidentemente, o texto tem caráter público, significando atenuações de problemas teóricos; contudo, os compromissos passam por ele, destacando o predomínio do que a escritora defende. Cito:

O poeta define-se pela atividade criadora, a qual se define a si própria como ato lúdico. O poeta joga com o código jogando-se nele. Toda a criação é um jogo cuja utilidade nem sempre é imediatamente apreensível, dadas as limitações do código.

A aceitação do estruturalismo é notória na postura da poeta. Mas o que aqui me interessa é que a autora, apesar do empenho e competência, não se permite pensar que, ao atribuir ao poeta a condição lúdica, num processo de utilidade, dentro das limitações do código da linguagem, aviva um sentido contrário ao que preconiza. Explico: a “poesia não precisa, obrigatoriamente, ser pensada como reação à perda de sua evidência lúdica anterior, através de modificações de jogadas criadoras, feitas pelo sujeito conforme as possibilidades concretas de comportamento e dos procedimentos dados ao seu discurso. Essa promessa, do ato lúdico proveniente de uma atividade criadora, deixa à margem a força que o ato artístico desencadeia contra o seu próprio conceito; ou seja: o de que a poesia seja poesia. E nisso se encontra aquilo que a Poesia Experimental portuguesa deixa escapar: dizer que isto é poesia, experimental ou espacial, é ainda prefigurar uma relevância do gosto que como vanguarda sequer poderia ser enunciada; mesmo no silêncio.

Explico: se a funcionalidade do experimento artístico é pensada a partir de um jogo, cuja utilidade nem sempre é imediatamente apreensível, dadas as limitações do código, é porque aquilo que cerca a Poesia Experimental portuguesa é, ainda, a noção de que há uma função a ser cumprida; dando ao aspecto de vanguarda uma sabotagem à própria funcionalidade do experimento. Pois, se é do experimento artístico uma estética da indeterminação, oposta, indissoluvelmente, à idéia que lhe dá o primeiro passo, a sua inadequação ser estruturada em si e ter ausente uma função não poderia cumprir o uso que se espera dele. E isso acontece na Poesia Experimental, porque o movimento regressa, continuamente, ao literal da experiência, algo que elimina a objetividade do experimento, ou seja: tornar-se simplesmente factum e suprimir-se como poesia.

Se assim é, refiro-me, presentemente, à questão do novo para uma cultura tão afeita à categoria do gosto, quanto perdulária da noção de experiência em querer ser, sem admitir cogitar sobre a longa predominância disso. Ora, o novo - matéria de vanguarda - não constitui qualquer categoria subjetiva. Brota forçosamente do próprio objeto artístico; que de outro modo não expressa a consciência de si, livrando-se da heteronomia. Isto quer dizer que a fetichização do novo exprime o paradoxo de toda arte, desde do início da modernidade; ou seja: não é evidente para si mesma. Melhor: paradoxo de que a poesia realizada deve ser feita por si mesma; como se fosse a extração do nervo vital da subjetividade.

Quando, então, o novo perde aquele caráter de paradoxo, dadas as múltiplas investidas, ainda românticas, da apreensão subjetiva da atividade criadora, como no caso de Hatherly, o neo-arcaico (marca do experimento poético na contemporaneidade) ganha estatuto de gosto de ser atual e capaz de prover uma experiência contemporânea. Tal episódio se encarrega de evitar que a “poesia” esteja apta a apresentar o que não é mais: um assemelhar-se ao desconhecido. Tudo dela se torna banal e, dessa banalidade, retira o rigor que se contrata no ordinário, sem nenhum direito ao melodrama do sujeito e nem apreensão teórica final; senão cínica, cética e breve.

Porém, a Poesia Experimental afirma que o sujeito criador é passível de reverter a perda de seu domínio poético, a partir de um impulso lúdico que se integra no ponto de partida subjetivo para do mundo da informação, que o ameaça, fazer um processo imaginativo de proponente despertador - para usar a expressão de Hatherly. Sem ambigüidade, a categoria de experimento é equilíbrio sobre fio de navalha. Por exemplo, penso aqui nos experimentos de Mallarmé, citado pela própria Hatherly em epígrafe ao texto A Reinvenção da Leitura, 1975.

Mallarmé não consegue decidir se o sujeito da poesia faculta comprovar a sua força estética permanecendo senhor de si, ou se através de semelhante ato, ratifica sua demissão de ser poeta. Nos dois casos e na medida em que os procedimentos experimentais, na acepção mais correntemente contemporânea, se encontram apesar de tudo organizados subjetivamente, é quimérica a crença segundo a qual a poesia se esquivaria através daqueles procedimentos à subjetividade do criador e se tornaria verdadeiramente o em si do sujeito, que ela, a “poesia”, não faz mais que simular como se fosse um blefe experimento poético.

Simulador, o experimento poético dá ares de pertencer, verdadeiramente, à ação lúdica; consolidando a idéia de que ela carece de explicação em outros saberes, como se houvesse alguma possibilidade de evitar o seu saber ou adiar o reconhecimento da herança literária da modernidade: a “poesia” é a sua própria teoria; joga sem jogador. Portanto, quando a Poesia Experimental toma o arcaico tornando-o novo (penso na categoria texto-visual que Hatherly reconhece como tendo longuíssima duração; algo que explora em seus trabalhos; especificamente as cantigas medievais e a poesia barroca) fica a dever a reflexão sobre como aquele conceito declina o declínio da idéia de arte algo como o depois da morte da arte poética.

Declinação esta que é o mote do experimento poético na contemporaneidade, pois o par, efêmero e atual, da arte moderna é impossível de se manifestar; restando ao conceito de permanência tornar-se aguda tradução problemática dos experimentos poéticos sob a tutela de uma estética da indeterminação. Isto é: o experimento poético declina o sentimento da sua impotência latente - onde o arcaico rebaixa a apologética trama do novo, para, enfim, aniquilar o instante numa falsa devoção ao tempo.

É nesse sentido que o uso da categoria de jogo, por Hatherly, peca por atribuir ao texto-imagem aplainamentos antropológicos, enunciando que o objeto funcional, como, por exemplo, a poesia espacial, tem origem no objeto mágico. A soberania da categoria de jogo me permite pensar o poeta, contemporâneo, moderno e nem tanto, como aquele que aniquila o instante nas compulsões da jogada, sem poder sequer se dizer jogador. Quanto mais hermeticamente fechado na jogada, sem a feição de que é ele quem joga, mais o seu experimento poético se reduz à subsistência do sublime ordinário – a barbárie é o literal. E como do sublime ao ridículo apenas um passo comum, o experimento poético na contemporaneidade, entregue ao truanesco, toma o inútil da jogada pela sua pretensão de relevância e, na soberania do jogo, anuncia a simples existência, se batendo contra não ter mais a face de jogador e avaliando o poder e a grandeza poética, tornadas fúteis, dado que a dor vulgar é somente declinação do declínio de cada termo que usei.

Dito isso, passo a comentar a experimentação poética de O Escritor de Hatherly (1967-72), buscando pensar a visualidade que a autora requer, e que de que maneira a reinvenção da leitura é cumprida como pressuposto da Poesia Experimental portuguesa. Percebo, no abrir da obra, que a sua visualidade requer um didatismo que estreita a manobra artística e mantém o sentido tradicional da narração em figurações cabíveis ao fácil reconhecimento (fato que comparece como característica na maioria dos trabalhos dos escritores desse “movimento“). A única motivação para tal, que posso supor, é que ela toma o trabalho poético por um desejo de ver o resultado de sua experiência.

Nisso, há um tipo de racionalismo que positiva o sonho de assistir à vanguarda aparecer como um novo gosto. O experimento que Hatherly faz em O Escritor, numa apreensão que é incapaz de pensar o símbolo gráfico na autonomização da visualidade no plano espacial da página (um problema em quase todos os poetas experimentais portugueses), acaba registrando a submissão do ver à leitura.

Explico: se o silêncio da escrita está nas figuras, num literal silencioso que a própria palavra carrega, a mudança dela por adotados traços faz o simbólico gráfico agir da mesma forma que um parágrafo; e a substituição tornar-se acessível à experiência alfabetizante da leitura. Se a Poesia Experimental lusa quer promulgar a evidência que ler é ver, não parece apta a perceber a inelutável cisão do visível em tautologia e crença, este contributo de Joyce que o minimalismo americano irá desenvolver. E se o ato experimental deseja penetrar no campo da visualidade plástica, retomando o princípio, arcaico, entre poesia e pintura, deveria reconhecer que esta analogia nunca pode ser um a priori, mas um a posteriori; no qual a resultante plástica é uma supra-sensibilidade de termos conjugados, porém autônomos. O contrário ocorre na Poesia Experimental portuguesa, na qual as imagens acabam por garantir a relevância do experimento como uma experiência a mais da categoria gosto.

Bem, O Escritor é ainda ato que amaneira a leitura tecnicista, pensada a partir de câmbios sintagmáticos no interior da linguagem. Que se liga, posso dizer, à temática do ser, por uma experiência estruturante da noção de informação. Cabe, então, citar as últimas frases do texto A Reinvenção da Leitura, para melhor expressar o meu raciocínio.

E se a arte da narrativa, que foi a da poesia, conduz à exploração do espaço e dos efeitos visuais, a desintegração da linguagem define uma luta pela renovação que o texto testemunha e a leitura recria pela interpretação.

A escolha pelas palavras recriação, interpretação, desintegração e renovação, aponta para um sortilégio inegável do peso da narrativa nas idéias de arte poética em Hatherly - comprovável facilmente em O Escritor e em Mapas da Imaginação e da Memória. A linguagem é apreendida como ato comunicativo; mesmo que em poética a premissa da expressão seja o olhar da poesia - como se fossem os olhos dos antropóides que objetivamente parecem ter uma tristeza não atingida pelo homem; e é daí que vem o cinismo, o blefe, o ceticismo contemporâneo. Hatherly, por julgar a linguagem comunicativa, toma o ato interpretativo como cadeia significante de reinvenção da leitura; o que de fato a leva ao endereço do sujeito como criador.

Tal aspecto perde de vista que a linguagem, numa ação mais expressiva do que comunicativa, é o não-subjetivo no sujeito. Ou seja: como expressão cumpre a representação da natureza extra-estética, deixando se figurar concretamente como cópias rasuradas da liberdade e criação. Não é à-toa, portanto, que a referência assinalada no título de uma das obras de Hatherly - Mapas da Imaginação e da Memória - pareça ser a síntese limite de todo o movimento Poesia Experimental; como se fosse um ato-falho do predomínio da categoria gosto.

Explico: a Poesia Experimental me sugere gostar de cartografia - disciplina conservadora dos aparatos possíveis à experiência ter ares abstratos -, pois o mundo de problemas da arte contemporânea é reduzida a um fragmento de território onde o estatuto da poesia recebe suprimentos de viagem. Isso até poderia se endereçar para algo de potência estética; caso houvesse na maioria dos autores alguma tendência para diagramar uma idéia, sem recorrer a fácil empiria, e que não tomassem a tradição como herança de experiências artísticas e sim como tarefa de leitura sem correlata experiência; ou seja: livre experimento.

Se observo os valores artísticos que formam a Poesia Experimental (tradição oral popular e escrita literária, valores fonéticos e filosóficos, “plasticização” e psicologismo da linguagem) devo admitir que eles são uma apropriação que mais compõem a temática cartográfica do gosto para cenas instituintes e interpretativas, do que inauguram, de fato, uma “base gráfica para visualidades, sonoridades, que na superfície de um suporte, qualquer que ele seja, a presença imagética se insinue como mais blefe da linguagem; ver é se perder.

Mas de algum jeito, este mesmo problema, pode agenciar situações poéticas bastante satisfatórias; que sem querer desafiar o estatuto da poesia a ponto de reerguê-lo, absorve os problemas poéticos num contínuo ato de desprender a leitura de sua seriedade, tomando a banalidade, contrata no ordinário, para uma apreensão cínica, cética e breve. Falo de Salette Tavares.

Se leio Telegrafia sem Fim, O Paraíso Perdido, ambos de 1967, aqueles atos poéticos na Exposição Visopoemas em Lisboa, 1965, (iniciada pela palavra algarismo e Partitura do Maquinin), ou O Talher e A Luva de 1975; tenho a nítida impressão do seu valor, cuja medida contemporânea acirra a possibilidade da Salette Tavares se aproximar de um tipo de olhar entrópico; cujas lentes guardam a cor da ternura lusa num radioso escárnio do sorriso. Para tanto, cito os últimos versos de A Luva.

Mas Dada teve a sua reabilitação

E a luva não está morta:

                         escultura dinâmica de agora

é a nova definição pura por fora

                                da estrutura da mão

Ao longo do poema, entre as palavras e os espaços, toda uma linguagem analógica se instala sem recorrer a juízos; onde a metáfora da escrita serve de suporte cartográfico da imagem do uso comum de um apetrecho singular. Os versos com alguns vazios promovem uma “sintaxe” de falhas na escultura da mão que escreve; sendo suficientemente olhar por algum tempo, não importa que palavra, para ver um terreno de particularidades insuficientes que contém a simulação da sobrevida abstrata da escrita.

O olhar entrópico, portanto, está ali a dar ordem de aniquilação, cuja ternura da palavra luva consubstancia a nova definição pura da escrita, que não mais aponta a razão de seu uso e onde adquiri-la. Explico: uma escultura para uso diário, a luva ou a mão que escreve, é uma escultura que exibe a passagem das formas, do contexto; fazendo surgir a diferença na distância cultual no ato de escrever - por fora da estrutura da mão.

Mas para melhor reconhecimento da condição da experiência, trago à página um experimento poético de Melo Castro, Retratos Metamíticos (fig. 01) que o experimento poético de Salete Tavares recusa-se a se alimentar de teorizações fora do ato.

Basta ver: a circunstância declara a razão do porquê deste experimento poético de Melo e Castro se atar no particular de uma herança. Tal esforço, não se separa de uma necessidade que agrade à leitura de relevância do gosto. Num procedimento que muito se adequa à paginação gráfica, as figuras se insinuam como parca ironia ao próprio idealismo absoluto das páginas literárias presentificadas. E sob elas, Melo e Castro compõe expressões matemáticas que antes as denominam do que provocam qualquer enigmática no experimento.

 


 

Retratos Metamíticos

 

Retratos Metamíticos (fig. 01)
 


 

A regra do particular cumpre uma funcionalidade que não requer nenhum problema para o experimento. Toda a visualidade está confortável no reconhecimento sem mesmo ousar no campo das banalidades. Um tipo de necessidade que, ambientada num juízo de gosto, repete simplesmente o mecanismo de determinação de uma experiência grata à empiria; cuja satisfação supõe um assentimento que, sem se confessar, está submetido às convenções do estatuto da poesia que a própria atitude artística gostaria de negar.

Em tal perspectiva, a recreação estética de Melo e Castro - que ao se aproximar do verso postula associações livres sem prescrever uma dúvida radical sobre a sonoridade das palavras, a ponto de facilitar sua natureza de demandar famílias, e que ao se aventurar na visualidade promulga a mesma situação das cadeias conceituais do mundo da propaganda (distorções fotográficas, efeitos de ocupação primária do suporte e comunicação por assiduidade de reconhecimento) – revela uma necessidade de arte poética que é prescrita por uma estética das normas sob a qual se encontra. Ou seja: matéria, forma e estruturação estão ainda a possuir conteúdo a priori aceitos, sem haver caminhado, contemporaneamente, para o oco que delas fez o que são.

Nesse sentido, a Poesia Experimental como um todo - tirando-a, o que resta, portuguesamente, são andamentos do tipo autoficcionamento, cuja escrita poética de Adília Lopes é o maior exemplo -, deixa de viver a miséria estética que aparece no fato dela não mais poder responder as circunstâncias do que se denomina de poesia. A grande controvérsia, portanto, que a experimental poética portuguesa deveria ter enfrentado, para sair de vez do condicionamento da experiência do gosto, é o clichê ingênuo que define o artista como criador ou, segundo o gosto, como um louco maneira calma de dizer isto não é poesia na boca dos líricos de plantão por causa da razão absoluta de seu objeto poético.

Se assim é, tomar consciência desse fato na Poesia Experimental portuguesa, para não dizer de outras como aquelas feitas na América Latina, provoca um certo mal-estar tão singular entre nós. Explico: estabelecer uma crítica que tende a destruir aquilo de que se fala, sempre soará entre nós como algo que nada contribui; digo que é da crítica expor as vísceras de si e do objeto criticado, de forma a impedir um tipo de crítica que ao pretensamente desobedecer, apenas objetiva-se numa obediência a não discutir arte com rigor. E isso tem provocado fáceis aceitações no âmbito da Literatura Portuguesa, cuja definição do espírito de ser português ainda não foi entre nós expurgado a contento.

Ou seja: a insuficiência teórica nos leva a não desconfiar das construções apriorísticas e acauteladas no conforto do gosto. Ora, um experimento artístico é contrário ao sujeito identificado como aquele que melhor o explica, exigindo algo como autonegação do espectador – a sua capacidade de abordar ou de perceber o que os objetos estéticos dizem ou calam por si mesmos. Todos aqueles cuja relação com as “poesias” é dominada pela sua possibilidade de se porem mais ou menos no lugar das personagens ou situações tematizadas se baseiam nos mesmos princípios da indústria cultural, que mais não fazem do que reforçar o compromisso de clientela não sendo à-toa que hoje alguém considerado refinado, toma o seu conhecimento cinematográfico com gancho de sua cultura, elabora sua diferença elogiando o Jaz e, ao pensar no pensar, teatraliza o teatro do seu final de semana; refundando um compromisso sob uma noção tão escamoteada de preconceitos: a denominada cultura popular.

Isso tudo quer dizer que o entusiasmo pela arte é estranho à arte. Então, para começar a dar fim o que até aqui se fala, retomo Melo e Castro, e o movo na forte presença estética de um experimento poético – como se eu quisesse não ficar rotulado de impertinente. E com este texto, permito-me provocar a própria idéia de compreensão. Cito a primeira parte da poesia emprosa Cadeira que faz parte de entre o rigor e o excesso: um osso, de 1994.

Uma cadeira não é esta cadeira. Nesta cadeira não me posso sentar. Se digo sento-me nesta cadeira escrevo um texto e fico de se estava de ou sentado se estava sentado noutra cadeira. No entanto esta cadeira existe com quatro pés assento e costas estando em perfeito estado de conservação pelo que ninguém correrá o risco de cair quando nela se sentar. O desenho é perfeito. Esta cadeira é factualmente uma cadeira embora tenha uma vida para além de si própria. Embora em si própria nem sequer exista. Por isso quem desejar nela se sentar o poderá fazer se possuir idênticas condições de existência. Então a frase que escrevo este homem está sentado nesta cadeira é tão verdadeira como se um homem estivesse sentado numa cadeira. Trata-se isso sim de uma operação abstrata e efetivamente aqui nenhum homem está sentado em nenhuma cadeira apenas provavelmente poderia existir este homem que sentado nesta cadeira estaria lendo um texto desatentamente nem sequer relacionado a sua situação com texto que lia: este homem está sentado nesta cadeira lendo um texto desatentamente e nem se quer relacionado. E ainda provavelmente ficaria por a sua leitura desatenta visto que neste momento se levanta e fica de a meu lado tal como eu sorrindo.

Fica evidenciado que a visualidade neste fragmento é tão mais forte do que os experimentos que o autor faz no campo visual; e isso se dá pela condicionante banal posta no rigor da questão: Cadeira. Se alguém percebe adequadamente o desenvolvimento da ação, em todas as motivações literais que ali estão, nem por isso compreendeu a “prosa”. Se outro alguém compreende a intenção do texto, devo anunciar que uma intenção não é idêntica ao conteúdo ali expresso e nem tampouco ao sentido.

Ou seja: o experimento artístico de Melo e Castro pede a compreensão, desde que esse termo possa suportar, hoje em dia, o limite da incompreensão como seu ideal. Algo que o saber por segurança nada imporá a este fato de experimentação poética; pois a felicidade ou angústia dessa “prosa” é estranha a qualquer compreensão. Como assim? Aqui estive a falar, tal e qual escrevi, numa cadeira – e com alguma certeza vocês ouviram, agora, e outros como vocês lerão depois, numa cadeira.

Se sorrio como se estivesse ao lado alguém em , é porque nem sei se quando me convidaram a dar uma aula-conferência, nesse Seminário, não tive a convicção de que o meu primeiro e último instante seria uma cadeira. E se todo o conforto triste que ela me trouxe até aqui é qual a idéia que chamei à mente, experimento, encontro-me sentado assim como estou. Igual àquele dia tão recentemente passado, quando na cadeira olhei as corriqueiras moralidades do gosto da Poesia Experimental portuguesa, curvando-me para escrever numa linguagem crítica o desconforto da minha cadeira anciã; cuja única possibilidade que restava é que terminaria, sentado numa cadeira, a promover a incompreensão de que, sentado, reagi a manter-me num temor melancólico, ou medo agradável, sentindo este fato como alguma coisa que possa ser facilmente traduzida pela compreensão dessas cadeiras.

 


 

BIBLIOGRAFIA

Hatherly, Ana. O Espaço Crítico – do simbolismo à vanguarda. Lisboa: Editorial Caminho, 1979.

––––––. Mapas da Imaginação e da Memória. Lisboa: Moraes, 1973.

––––––. O Escritor. Lisboa: Moraes, 1975.

Melo e Castro, E. M. antologia efêmera (poemas de 1950-2000). Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000.

–––––– & Hatherly, Ana. PO-EX – textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editores, 1981.

Tamen, Pedro. 20 anos de Poesia Portuguesa. Lisboa: Moraes, 1977.


 


 

*Ressalto aqui a contribuição da nossa mestranda Maria Cristina Vasconcellos de Otoya na feitura desse texto, cuja atitude aberta ao diálogo a permite desenvolver a pesquisa sobre a poesia de Ana Hatherly, contando com a orientação da Professora Nadiá de Paulo Ferreira.

 

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