ILUMINISMO E CONTRA-ILUMINISMO

Marina Machado Rodrigues
(UERJ, CPII, UFF e ABF)

A Europa do séc. XVIII é marcada por profundas transformações econômicas e sociais. A invenção de novas máquinas e a introdução de novas técnicas, permitindo a produção industrial em alta escala, respondia às exigências de um consumo crescente. No rastro da Revolução Industrial, revolucionava-se a cultura de uma época.

A nova ordem econômica é indissociável da crescente valorização e compreensão do conceito de liberdade. À luz do progresso das ciências e de um saber experimental, afirmava-se uma cultura laica, onde Deus era substituído pelo poder da Ciência e a nova deusa-Razão era entendida como caminho para a felicidade e bem-estar humanos.

Sob a égide da nova filosofia iluminista e empirista, cunhou-se a utopia da felicidade terrena; e a Razão compreendida como Natureza iluminava a conduta do homem mais do que a graça divina. Nesse sentido, as contribuições de Pascal, Newton, Leibniz ou John Locke foram fundamentais para a configuração da fisionomia dos novos tempos. No domínio da filosofia política, destacaram-se pensadores como Montesquieu, Voltaire e Rousseau aos quais se devem conceitos como a autonomia dos poderes, a garantia das liberdades individuais, a soberania popular e o pacto social - idéias que constituíam o germe da Revolução Francesa. Também decisivas foram as influências da Enciclopédia e de pensadores como D’ Alembert e Diderot.

Desde as duas últimas décadas do séc. XVII, a reação contra os excessos da estética barroca se fazia sentir progressivamente nas literaturas européias, integrando um amplo movimento que se caracterizou pela irrupção de um racionalismo exacerbado; pelo repúdio aos princípios tradicionais que regiam a vida e a cultura européias - tanto no campo filosófico como nos domínios político e religioso - pela afirmação de um exigente espírito crítico e pela crença no progresso humano.

Fatores como a consolidação da monarquia absoluta, a centralização da administração e a fragilidade de países como a Espanha e a Inglaterra propiciaram à França hegemonia na Europa ainda no séc. XVII. Disso resultou a supremacia da cultura, da língua e da literatura francesas que se manteve quase sem contestação até o fim do séc. XVIII. O pensamento filosófico sofreu uma radical transformação operada por Descartes; o saber cartesiano intentava englobar não só as ciências, mas todos os aspectos da cultura, expandindo-se por áreas como a literatura, a moral, a política, a teoria do Estado e a sociedade. Como as ciências, a lógica, as matemáticas, a física e a psicologia, a arte é doravante submetida à mesma exigência estrita. Ela deve ser aferida pela “razão” e ser testada de acordo com as regras racionais. A natureza está submetida a leis universais e invioláveis, portanto devem existir para a imitação da arte leis da mesma espécie e de igual dignidade. Como observa Cassirer:

Aqui domina igualmente o grande exemplo de Newton: da ordem que ele tinha estabelecido no universo físico, devia derivar a ordem do universo intelectual, ético e estético. À maneira de Kant que via em Rousseau o Newton do mundo moral, a estética do séc. XVIII procura e exige um Newton da arte. (CASSIRER, 1997, p.373)

Para o séc. XVIII a razão deixou de ser a soma de “idéias inatas”, anteriores a toda a experiência, definindo-se muito menos como uma forma de “possessão” do que como uma forma de “aquisição”. A razão propiciará o afastamento do espírito de todos os fatos simples, de todas as crenças baseadas no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade, desmistificando a crença e a verdade instituídas, em nome da observação e da análise racional dos fenômenos naturais. A razão e a crítica são os dois vetores que norteiam o pensamento iluminista. Sapere aude! Eis a divisa da Ilustração, que, segundo Kant, se propunha criticar todas as tutelas que inibem o uso da razão com o uso da própria razão.

E é sob o signo da razão que os grandes autores do classicismo francês (Corneille, Molière, Racine, La Fontaine) impõem-se como modelos indiscutíveis e a Art Poétique de Boileau, que elevara a estética ao nível de uma ciência exata, transforma-se no paradigma das literaturas neoclássicas européias. Boileau estava para as letras como Newton para as ciências.

Em Portugal, o Barroco prolongou-se até meados do séc. XVIII, mas desde a primeira metade do século já era evidente o esforço de racionalização e de contenção dos excessos barrocos. Contudo, o espírito da Ilustração chega ao país em meados do séc. XVIII, sob a forma de um terremoto. Nas palavras de Oliveira Martins, “o terramoto fez-se, pois, homem e encarnou em Pombal, seu filho.”.

A destruição e a reedificação de Lisboa em 1755 simbolizam as profundas transformações por que passaram as instituições portuguesas. Sob a tutela do Marquês, medidas como a submissão da Inquisição e da censura ao Trono; a supressão à discriminação contra os cristãos novos; a expulsão dos jesuítas em 1759; o rompimento entre a Cúria Romana e o Estado; além das reformas administrativa, policial e fiscal que se afinavam em larga medida com os interesses da alta burguesia afetaram profundamente a face do país. Considera-se como uma das mais significativas inovações criadas na esteira das reformas pombalinas a Academia das Ciências, cuja fundação objetivava coordenar e estimular os estudos em conformidade com os progressos científicos e literários do mundo culto. Mas tais mudanças se deveram - além da ação dos estrangeirados que serviram de veículo entre a pátria e as novas idéias que grassavam nos meios culturais mais prestigiados da Europa - à influência de Verney, cuja obra desencadeia a polêmica decisiva entre a Escolástica e o Iluminismo. No domínio da estética, condenava o uso do Latim como língua escolar única; a concepção barroca de Retórica; o uso da mitologia, o obscuro, o inverossímel. Em relação à filosofia, preocupava-se com a garantia de liberdade das ciências mecânicas, procurando eliminar os obstáculos interpostos pela Escolástica e extirpar os preconceitos que se arraigavam à cultura portuguesa. Denunciando a influência de O verdadeiro método de estudar, a obra de Cândido Lusitano - a Arte Poética, ou regras da verdadeira poesia - publicada em 1748, foi considerada por alguns críticos como o manifesto do Arcadismo, oitos anos antes da fundação da Arcádia Lusitana. Também abrindo caminho ao Neoclassicismo, situa-se O serão político, abuso emendado, de Frei Lucas de Santa Catarina, escrito antes de 1695. A obra condena o desregramento da metáfora, o exagero das hipérboles, as antíteses absurdas, o abuso dos equívocos e da mitologia e, sobretudo, a repetição de recursos clicherizados à exaustão.

O Neoclassicismo foi um movimento literário derivado do espírito crítico da Ilustração que visava ao resgate e restauração dos gêneros, das formas, das técnicas, e da expressão clássicas que vigeram em Portugal no séc.XVI. Como ensina Jacinto do Prado Coelho, “essa renovação fez-se acompanhar de uma severa disciplina estética e de um purismo estreme, que procura libertar a língua de termos espúrios, restituindo-lhe uma sobriedade castiça e o rigor de sentido”.

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, em estudo clássico, anota como princípios fundamentais da estética os seguintes aspectos:

a) a verossimilhança: “o objetivo da poesia não é o real concreto, o verdadeiro, aquilo que de fato aconteceu, mas sim o verossímil, o que pode ser considerado na sua universalidade”;

b) a imitação da natureza. Mas a Natureza não se identifica com o mundo exterior, com a paisagem, identifica-se com a natureza humana, com o estudo do homem, dos seus sentimentos e das suas paixões, da sua alma e coração. A imitação da natureza não se limita a uma cópia servil, reprodução realista e exata. Ao contrário, o artista escolhe e acentua os traços característicos e essenciais ao modelo, eliminando os acidentais e transitórios no domínio literário. Seleciona cuidadosamente a natureza a ser imitada, excluindo o que é grosseiro, hediondo, vil e monstruoso;

c) o intelectualismo. Todos os princípios do neoclassicismo estão profundamente impregnados do intelectualismo. O fenômeno poético não se separa da reflexão e da cultura intelectual. A razão é concebida como uma entidade imutável e universal, alheia a quaisquer variações cronológicas ou espaciais. A imitação dos autores antigos e a defesa das regras encontravam plena justificação dentro do conceito de uma razão e de uma beleza imutáveis e universais. Como observa Aguiar e Silva, “este culto pela razão teve conseqüências nefastas, pois originou a atrofia da imaginação e abriu caminho para a rigidez, a árida secura e o prosaísmo que caracterizam parte do neoclassicismo europeu”;

d) o respeito às regras, que corresponde à natural “atitude intelectualista e à concepção do ato criador como esforço lúcido, como vigília reflexiva e disciplinadora dos arroubos da imaginação e dos impulsos do sentimento”. Cada gênero, cada forma literária possuía regras específicas, relativas ao conteúdo, à disposição dos elementos estruturais, aos aspectos estilísticos, etc. Dentre as regras da estética, sobressaem, por sua importância intrínseca e extrínseca, as regras das três unidades: unidade de ação, de tempo e de lugar;

e) a rima deve ser abolida por se constituir num entrave ao pensamento e ao verso;

f) o princípio da imitação dos autores greco-latinos representa também uma fecunda herança renascentista. Mas o que nos humanistas da Renascença era admiração deslumbrada e sentimento espontâneo transformou-se no Neoclassicismo em atitude reflexiva e racionalmente justificada. Os grandes escritores gregos e latinos apresentam nas suas obras uma natureza ideal e perfeita, logo, a imitação de suas obras se identifica­ com a própria imitação da natureza. Figuravam como modelos teóricos antigos, Aristóteles, Horácio e Quintiliano; entre os modernos, contavam-se Boileau, Luzán e Muratori. Os paradigmas da inspiração literária eram: Homero, 10,5

g) a função didática. Os poetas neoclássicos acreditavam que toda a literatura devia obedecer a um fim ético e moral e que a forma deveria manter a harmonia de valores verbais e o equilíbrio entre a razão e o sentimento.

Sob a influência do classicismo francês, Cruz e Silva, Teotônio Gomes de Carvalho e Manuel Esteves Negrão fundam a Arcádia Lusitana ou Ulissiponense em 1757. A instituição desenvolveu intensa atividade até 1760, extinguindo-se em 1774. A ela agregaram-se poetas como Correia Garção, Reis Quita e outros de menor expressão.

A Arcádia foi o mais poderoso agente institucional da formação e fixação do gosto neoclássico. Seus estatutos, institucionalizando um ideal horaciano, consideravam a crítica e a autocrítica como indispensáveis à reforma literária. Tanto assim que submetia a produção artística do grupo à crítica coletiva.

O Arcadismo é a face visível e disciplinada da doutrinação neoclássica. O combate “ao mau gosto e à fatal corrupção do Barroco”, restaurando o deteriorado gosto literário e reacendendo o interesse por uma literatura renovada e harmônica - expressa num estilo equilibrado e sublime - presentificava-se no emblema da instituição: “um podão com a frase ‘Inutilia truncat’ (‘Corta as inutilidades’)”. Tais objetivos seriam alcançados seguindo-se determinados ideais culturais e estéticos e propiciando-se “a instrução e o verdadeiro gosto da poesia”, através da imitação dos modelos greco-latinos e quinhentistas, bem como de uma temática e tópica tradicionais.

Todavia, nem todos os pressupostos da doutrinação estética foram seguidos à risca, principalmente no que tange à mitologia, condenada por Verney e Cândido Lusitano. Correia Garção é parcimonioso no uso de figuras mitológicas, preferindo os termos eruditos, já Cruz e Silva recorre com freqüência a elas.

Uma das mais fortes heranças do Arcadismo setecentista é a poesia pastoril, de tradição bucólica, tal como fora cultivada nos idílios e éclogas por Anacreonte, Píndaro, Teócrito e Virgílio, e pelos poetas quinhentistas. Como os pastores da Arcádia grega, os poetas árcades deviam adotar um pseudônimo pastoril, pelo qual seriam conhecidos e tratados nas sessões acadêmicas. Assim se acentuavam as idéias de fingimento poético e de igualdade entre os membros da academia. A esse propósito, como observa Antônio José Saraiva,

O drama mais profundo da Arcádia consistirá no conflito interno que rasga as suas principais personagens, sob a ação de duas forças opostas: a força que leva ao apagamento das origens e relações burguesas, atrás da imitação dos Antigos, atrás do convencionalismo pastoril da decadência greco-romana; e a força que conduz`a afirmação dos gostos e idéias quotidianas, ao realismo burguês, à imitação da realidade imediata.

Dentre a produção arcádica, era recorrente o tema do elogio à vida campestre, em detrimento da falsidade da existência citadina e cortesã. A apologia a uma vida simples transcorre em cenários rurais, onde a Natureza amena e colorida é recriada a partir de uma tópica muito desenvolvida pelos poetas árcades (locus amoenus, fugere urbem e áurea mediocritas), que, em termos de convencionalismo literário, intentam resgatar o mito da Idade do Ouro.

O membro mais influente e prestigioso da Arcádia Lusitana foi, com Cruz e Silva, Pedro António Correia Garção (1724-1772). Acumulando as funções de doutrinador e de poeta, contribuiu também para a tentativa arcádica de criação de um repertório dramático nacional. Como doutrinador, destaca-se sua particular insistência pela função pública e social da literatura. Sob o pseudônimo arcádico de Coridon Erimanteu, cultivou gêneros greco-latinos tais como odes pindáricas, sáficas e alcaicas, em poesia de circunstância ou no elogio à virtude estóica ou da Arcádia. A obra-prima de Garção, a Cantata de Dido, é considerada por muitos um dos textos exemplares da poesia neoclássica em Portugal. Também digna de nota na obra desse poeta é a combinação do horacianismo (áurea mediania horaciana) com a poesia do quotidiano, que pode ser encontrada em alguns sonetos e nas epístolas. Naqueles, nota-se já uma apreciável tendência para a captação de cenas prosaicas do quotidiano, onde surgem queixas pelos os incômodos causados por credores ou pelos filhos mal vestidos, temas que deixam transparecer já o realismo burguês.

Dentre os inúmeros sonetos de Garção, transcrevemos dois, que exemplificam a afirmação da áurea mediania horaciana - o resgate do clássico ideal de vida simples, fruída ociosamente nos cenários naturais do campo, em companhia da família e de amigos mais chegados, longe das aparências e da inquietação da vida citadina:

Ao som da Fonte Santa que corria,

N'alva borda do tanque debruçado,

De cansados desejos já cansado,

O triste Corydon adormecia:

Em doce sonho imaginando via

De Belisa gentil o rosto amado,

Que na trêmula veia retratado

Dos olhos cobiçosos lhe fugia.

Os torpes braços sem cessar movendo,

Em vão aperta a límpida corrente,

Em vão lhe está com lágrimas dizendo:

- Se folgas de que morra um inocente,

Porque foges de mim, Ninfa, sabendo

Que Amor me mata quando estás presente?

A Fonte Santa é uma referência literal - é o nome da propriedade que a família de Garção possuá e que passou a habitar após o terremoto de Lisboa - transformada em refúgio idílico.

Entre o sonho e a vigília, o sujeito lírico vê projetada na água da fonte a imagem da amada Belisa, anagrama de Isabel, esposa de Garção. O desejo de captar a beleza do rosto amado via-se frustrado, já que a água corrente não o permitia. Trata-se de metáfora recorrente no tema da passagem do tempo, para expressar também a transitoriedade da vida. A água da fonte em constante movimento, conotada como veia, sugere ao mesmo tempo a eclosão do desejo e a interdição da relação. Como não se desconhece e bem mostrou Leodegário A. de Azevedo Filho, o símbolo da fonte ligado ao erotismo está presente na lírica portuguesa desde os cancioneiros medievais.

Nos tercetos, o poeta expressa o desejo de reter a imagem fugidia: a água corrente é espelho fluido e inconstante da mulher amada. Porém, o esforço é em vão, como se percebe na sugestiva construção anafórica dos dois versos seguintes. Em face da frustração, dirige-se em forma de pergunta à imagem da ninfa (apóstrofe), confessando-lhe que ela é a causa de sua morte numa dupla situação: morre se ela foge ou está apartada dele (ausência ou não correspondência amorosa) e morre se ela está presente. Imagética e tematicamente, as queixas amorosas expressas em forma de devaneio onírico ocorrem num cenário campestre, onde o sujeito poético vai usufruindo, placidamente, do doce sossego da vida rural, ou seja, da horaciana áurea mediania. Observe-se o entrecruzamento de elementos da realidade quotidiana e das imagens oníricas, transfiguradas pela linguagem lírica.

Passemos a um segundo soneto, mudando ligeiramente a temática, mas não a mundividência:

O louro chá no bule fumegando

De Mandarins e Brâmanes cercado;

Brilhante açúcar em torrões cortado;

O leite na caneca branquejando;

Vermelhas brasas alvo pão tostando;

Ruiva manteiga em prato mui lavado;

O gado feminino rebanhado,

E o pisco Ganimedes apalpando.

 

A ponto a mesa está de enxaropar-nos.

Só falta que tu queiras, meu Sarmento.

Com teus discretos ditos alegra-nos

Se vens, ou caia chuva, ou brame o vento,

Não pode a longa noite enfastiar-nos,

Antes tudo será contentamento.

Estamos diante de uma reunião familiar, em que o poeta e os amigos desfrutam do ócio e da tranqüilidade do ambiente doméstico. A alusão a mandarins e brâmanes é metáfora da porcelana chinesa, cujos desenhos se imprimiam no bule que estava sobre a mesa de chá na Fonte Santa. O poema enumera elementos como o chá, o açúcar, o leite e o pão tostando, que, despertando principalmente os sentidos da visão e do olfato, nos permitem apreender a atmosfera familiar e burguesa em que a reunião se dá. A expressão “gado feminino” não tem valor depreciativo, relaciona-se ao “rebanho feminino”, ou seja, as mulheres da casa. O termo foi usado antes por poetas clássicos, designando o homem como pastor desta comunidade familiar. Ganimedes é o nome que a mitologia dá ao belo jovem descendente de Dárdano, raptado pela águia de Zeus (Júpiter) para o Olimpo, e que servia aos deuses o néctar. Por antonomásia, o nome mitológico é aqui usado para designar o velho criado, já um pouco míope (apalpando, tateando), que servia o chá e o leite do lanche.O verbo enxaropar tem aqui o sentido que R. Bluteau lhe descreve: “Fazer-lhe tomar um, ou muitos xaropes”. Neste caso, refere-se à ingestão do chá e do leite, alimentos líquidos. Noutros textos poéticos em que se descreve este tipo de reunião, menciona-se também o ponche como bebida habitual. O convidado esperado era Frei Francisco de Jesus Sarmento, a quem o poeta dirige a Epístola II, e que aqui é apresentado como modelo de homem discreto, isto é, de pessoa refinada, indispensável ao alegre convívio intelectual e cortesão neste retiro campestre. Como se vê, os dois sonetos retratam a atmosfera familiar e burguesa adaptada ao ideal da áurea mediania horaciana.

A Arcádia Lusitana se desagrega ao sabor das dissidências internas em 1774. Mas as regras e convenções preconizadas pelos árcades sobreviveriam por um breve tempo ainda no espírito da Nova Arcádia, fundada em 1890 e extinta em 1894.

Ao lado das correntes arcádicas, o séc.XVIII fez conviveram correntes barrocas retardatárias, o chamado estilo rococó e o pré-romantismo. Época de crise, de desagregação e de renovação dos valores, as duas últimas décadas do século principalmente inscrevem tendências e manifestações de sensibilidade que se afastam dos cânones neoclássicos, anunciando já o Romantismo. Ao conjunto de tendências que denunciam a crise da razão e a valorização do subjetivismo, chamaremos de Contra-iluminismo. Ao contrário do Neoclassicismo, as novas tendências literárias inscrevem a mudança de sensibilidade, mas não representam, conscientemente, uma escola literária nem apresentam um corpo sistemático de doutrinas, até porque carecem de homogeneidade.

Em Portugal, o Contra-iluminismo afirma-se através da Marquesa de Alorna, de Filinto Elísio, de Xavier de Matos, de Tomás Antônio Gonzaga, de José Anastácio da Cunha e principalmente de Bocage. A característica fundamental dos pré-românticos consiste na valorização do sentimento. O sentimento que se contrapõe ao racionalismo neoclássico e iluminista, transformando-se na fonte por excelência dos valores humanos. A sensibilidade aparece como o mais legítimo título de nobreza das almas e a bondade e a virtude são consideradas como atributos naturais das almas sensíveis. A vida moral passa deste modo a ser regida pelo sentimento, sobrepondo-se os direitos do coração às exigências da lei, das convenções e dos preconceitos sociais, em suma, às exigências das normas jurídicas ou éticas impostas do exterior. A literatura expõe os recantos mais íntimos da alma e do corpo.

A sensibilidade pré-romântica expressa a funda melancolia, o desespero e a angústia, a tristeza irremediável e a agitação sombria que perpassam a alma, comprazendo-se o poeta nas visões lúgubres, nas paisagens noturnas, agrestes e solitárias, nas tintas negras do locus horrendus, como se verifica neste soneto de Bocage:

E vós, ó Cortesãos da Escuridade,

Fantasmas vagos, Mochos piadores,

Inimigos, como eu, da claridade:

Em bandos acudi aos meus clamores:

Quero a vossa medonha sociedade,

Quero fartar meu coração de horrores.

Os dolorosos presságios, os sonhos ruins, a morte constituem outros aspectos desta sensibilidade atormentada.

A poesia da noite e dos túmulos, os sepulcros e a morte inserem-se na temática pessimista atrás indicada e traduzem a nostalgia do infinito e a funda insatisfação espiritual que já angustiam os poetas do período e que se hão-de revelar mais exacerbadamente nos românticos.

O sentimento da natureza inaugura uma nova visão da paisagem: entre a natureza e o eu estabelecem-se re1ações afetivas; os lagos, as árvores, as montanhas, etc., associam-se intimamente aos estados de alma; o poeta submete todas as visões do universo às suas emoções e aos seus sonhos. À literatura pré-romântica se deve a revelação da beleza melancólica do Outono, como tempo de folhas caídas, do sol pálido dos crepúsculos magoados, das paisagens montanhosas e selvagens.

A literatura pré-romântica traduz um forte declínio das influências greco- latinas e um acentuado distanciamento dos cânones estéticos do classicismo, embora algumas vezes os escritores pré-românticos se vejam obrigados a externar uma sensibilidade nova dentro das formas poéticas e estilísticas da tradição clássica. Este é o caso de Bocage que surge na fase crítica das Arcádias. Sua arte se voltava para a pequena burguesia urbana, despindo-se de rigores aristocráticos.

A leitura de seus versos nos permite concluir que há dois poetas distintos. O primeiro, cujas idéias anti-religiosas, revolucionárias e subversivas colocaram-no na cadeia; e o segundo, depois da prisão, reconciliado com os princípios religiosos e com vários companheiros da Nova Arcádia com os quais tivera verdadeiros duelos literários.

O primeiro Bocage foi o maior e o que ficou popularizado. Satírico, boêmio e erótico, subverteu a linguagem institucionalizada pela estética neoclássica, embora dela tenha se valido para afirmar novos princípios estéticos.

Romântico por temperamento expôs a luta entre a razão e a emoção, em que a segunda se sobrepôs à primeira, como se percebe nos seguintes versos,

Importuna Razão, não me persigas,

Cesse a ríspida voz que em vão murmura,

Se a lei de amor, se a força da ternura

Nem domas, nem contrastas, nem mitigas

ou questionando a validade da razão em assuntos do coração, em recorte nitidamente camoniano, interpela:

Razão, de que me serve o teu socorro?

Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;

Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro

Entre os temas cantados, privilegiou a amor, a morte e a glória fugidia. A amada distante ou esquiva é motivo de funda angústia existencial e do desalento do sujeito lírico. Desalento que gerava angústia, temor e ciúmes, além da dúvida que caracteriza a crise:

Vê-se a arder, fumegar sulfúreo lume

Que estrondo! Que pavor! Que abismo infando!

Mortais, não é Inferno, é o ciúme!

Sob o tema da morte, os poemas bocageanos já antecipam claramente a mundividência romântica, para quem a morte é cessação de sofrimento e encontro com o Absoluto:

Oh! Só deve agradar-lhe a sepultura

Que a vida para os tristes é desgraça

A morte para os tristes é ventura!

O elemento racional entrava em doloroso conflito com a subjetividade do Poeta. Nele, “o diálogo com a razão privilegia a loucura”, como ensina Leodegário Azevedo Filho. Construindo sua poética sobre as ruínas das normas arcádicas, em nome de uma verdade interior, o Poeta antecipa a complexidade emocional característica da sensibilidade romântica.

Para o Poeta toda moral de aparências é obscena e deve ser destruída. E é pela ironia que a poesia satírica de Bocage inaugura uma nova via, em que as palavras serão como arma de combate. Este procedimento é continuamente observado quando do embate entre Elmano (pseudônimo arcádico do Poeta) e os confrades da Nova Arcádia:

Preside o neto da rainha Ginga

À corja vil, aduladora, insana.

Através do cômico, Bocage procede à corrosão da aura do “ambiente áulico das academias”, onde seus membros viviam de fazer o elogio mútuo:

Vós, ó, Franças, Semedos, Quintanilhas,

Macedos e outras pestes condenadas;

Vós de cujas buzinas penduradas

Tremem de Jove as melindrosas filhas;

Ou usando de “fúria insana” investe contra o Despotismo, em franco combate às idéias políticas e religiosas da época:

Sanhudo, inexorável Despotismo,

Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,

Que em mil quadros horríficos te enlevas,

Obra da Iniqüidade e do Ateísmo:

Já exibindo um franco viés romântico, o Poeta assume as aspirações liberais, inspiradas pelos ideais da Revolução Francesa e denuncia a falta de liberdade, que interpela:

Liberdade, onde estás? Quem te demora?

Quem faz que o teu influxo em nós não cais?

Porque (triste de mim), porque não raia

Já na esfera da Lísia a tua aurora?

Mas as chamas do revolucionarismo acabam por se mitigar na cadeia escura. Próximo da morte e já desiludido, afirma a confiança na glória e na virtude. O tom de arrependimento e de contrição é evidente:

Já Bocage não sou!... À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...

Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

Concluindo, a estética do primeiro Bocage afirma-se como inovadora porque transpondo o código instituído, reafirma através do desvio, novos valores, que antecipa.

 

 

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