A SISTEMATIZAÇÃO
DA
LINGÜÍSTICA MODERNA NO BRASIL

Leodegário Amarante de Azevedo Filho
(UERJ, UFRJ e ABF)

 

Sem dúvida alguma, aqui está o livro que deu origem à sistematização da lingüística moderna no Brasil: Os Princípios de Lingüística Geral, do professor J. Mattoso Câmara Jr., obra publicada pela Livraria Acadêmica (Rio de Janeiro, 1942). É verdade que, posteriormente, o professor Sílvio Elia lançou as suas Orientações da Lingüística Moderna, em 1955, excelente livro em que o seu autor focaliza vários temas do maior interesse lingüístico. Mas não se trata de um curso estruturado de Lingüística Geral, como é o caso do volume do professor J. Mattoso Câmara Jr., o pioneiro da matéria entre nós. Aliás em Paris, quando estivemos em gozo de bolsa de estudos, ouvimos do professor André Martinet que pretendia mandar traduzir para o francês a obra do professor J. Mattoso Câmara Jr., a fim de indicá-la a seus alunos na Sorbonne. Mais tarde, publicando aquele mestre francês os seus Éléments de Linguistique Générale (obra traduzida para o português por Jorge de Morais Barbosa), naturalmente deixou de lado a idéia. Mas o fato é significativo para a cultura brasileira, pois o professor André Martinet foi um dos maiores nomes do estruturalismo lingüístico francês, sendo a Sorbonne um dos grandes centros de cultura universitária européia. É significativo no sentido da valorização estrangeira da obra de um mestre brasileiro.

A sexta edição desse livro, portanto, foi recebida com prazer em nossos meios lingüísticos. Na orelha do volume, o editor incluiu vários trechos de recensões críticas nacionais e estrangeiras, todos altamente favoráveis ao volume. Entre eles, mencionamos os que foram assinados por Roman Jakobson, da Universidade de Harvard; por Vicente Garcia de Diego, da Real Academia Espanhola; por E. Alarcos Lhorach, da Universidade de Oviedo; por Herculano de Carvalho, da Universidade de Coimbra; por Júlio Garcia Morejón, da Universidade de São Paulo; e por Sílvio Elia, da Pontifícia Univers­dade Católica do Rio de Janeiro. Todos foram unânimes em reconhecer o valor didático da obra e a segurança científica de sua exposição doutrinária.

No primeiro capítulo, o professor J. Mattoso Câmara Jr., caracteriza a Lingüística como disciplina científica, indicando o seu objeto de estudo, que é a linguagem humana. Assim, a Lingüística é o estudo científico da linguagem humana, e apenas dessa, pois a chamada linguagem dos animais não é representativa nem articulada. Por outro lado, a interpretação da natureza, onde nãointenção comunicativa, também não se enquadra nos domínios da linguagem, pois esta, com efeito, tem na comunicação articulada a sua finalidade essencial. Outras funções, entretanto, são apontadas dentro mesmo dessa função comunicativa básica, como a informação, a manifestação psíquica e o apelo, segundo a doutrina de Buhler, citada pelo professor J. Mattoso Câmara Jr. A nosso ver, entretanto, o fenômeno de comunicação lingüística é complexo, abrangendo um sem número de funções e aspectos que nem sempre se enquadram, rigorosamente, na classificação de Buhler. Por isso, nem todos os lingüistas a adotam, embora nos pareça perfeitamente válida e pioneira na época em que for formulada. A função estética da linguagem, por exemplo, não se vincula apenas à manifestação psíquica, pois o fenômeno literário apresenta implicações não apenas com a Psicologia. Nesse sentido é que a chamada Nova Crítica, em suas múltiplas correntes de análise estilística, encara a literatura como fato autônomo, embora se possa recorrer, subsidiariamente, na interpretação do fenômeno estético, a uma multiplicidade de elementos extraliterários, como indicamos no livro Introdução ao Estudo da Nova Crítica no Brasil (Rio de Janeiro, Livraria Acadêmica, 1965). Outras funções secundárias podem ser ainda apontadas dentro da função básica da linguagem humana, que é a comunicação. Além da função estética, com efeito, há uma função lógica, caracterizando a linguagem científica, em oposição, à linguagem poética, que não se subordina aos rigores do raciocínio lógico.

O fato é que a linguagem é um fenômeno social condicionado pelos indivíduos, gradativamente, desde a infância. Nesse sentido, a dicotomia proposta por Saussure, entre “langue” e “parole”, traçou novos rumos aos estudos lingüísticos atuais. A língua é um fenômeno coletivo, um sistema de sinais, um código, através do qual se realiza a “parole”, – termo que corresponde, em português, à fala ou discurso. A chamada Lingüística da Língua, porém, limita-se ao estudo do sistema ou código representativo da linguagem. Por outro lado, a Lingüística do Discurso é queorigem à Estilística, ciência que se desenvolveu e desdobrou em várias correntes doutrinárias, entre as quais o esteticismo croceano, que é a base do idealismo lingüístico de Vossler e Leo Spitzer; a estilologia espanhola; a explicação de textos francesa; o formalismo russo; e o new criticism anglo-americano, entre outras

também várias modalidades de estudos lingüísticos, em particular a partir do século XIX, examinados pelo professor J. Mattoso Câmara Jr. no segundo capítulo de seu livro. Entre essas modalidades, cumpre mencionar a gramática comparativa, a partir de Bopp; a gramática histórica, que nasceu da anterior, ambas constituindo a base do chamado método histórico-comparativo; e a Lingüística Descritiva, sobretudo depois da obra de Saussure, com base na chamada Lingüística Sincrônica e na chamada Lingüística Diacrônica. Na realidade, porém, a Lingüística é sempre pancrônica, isto é, os seus estudos devem ser realizados, tanto quanto possível, levando-se em conta a combinação do ponto de vista sincrônico com o ponto de vista diacrônico. Se o primeiro descreve e analisa o funcionamento das línguas num eixo de simultaneidades, necessariamente horizontal, o segundo se desenvolve num eixo vertical de sucessividades, segundo a doutrina de Saussure. Assim, diacronia é uma sucessão de sincronias.

Como fenômeno representativo, por outro lado, a linguagem apresenta duas articulações básicas, segundo afirma o professor André Martinet. A primeira articulação se exprime em termos de uma relação entre o significante e o significado, daí surgindo o conceito de monema (nomenclatura de André Martinet), que é a forma mínima das unidades significativas. A segunda articulação é a do significante, estrutura fônica que o professor J. Mattoso Câmara Jr. analisa em grupos de força, vocábulos fonéticos, sílabas e fonemas. O fonema é, assim, a unidade mínima da fonação, ou seja, da segunda articulação da linguagem humana.

O professor J. Mattoso Câmara Jr. dedicou à análise do significante o terceiro capítulo do livro, caracterizando o fonema segundo o método estruturalista de oposições significativas. Nesse sentido, valorizou a contribuição extraordinária do Círculo Lingüístico de Praga, com Trubetzkoy e Jakobson à frente. O quarto capítulo é reservado ao exame da sílaba e do vocábulo fonético, assunto que examina com rigor e minúcia. A nosso ver, na análise da estrutura fonológica da frase, talvez fosse interessante considerar, como fazem Navarro Tomás e Gili Gaya, a existência do grupo acentual ou de intensidade, entre o grupo de força e o vocábulo fonético. Assim, a distinção entre o grupo de força (ou fônico) estaria na maior ou menor demora da pausa que os delimita. O vocábulo fonético, por sua vez, é caracterizado por uma juntura externa aberta, constituindo-se de sílabas, que são as unidades espontâneas da fonação. Por fim, as sílabas se constituem de um ou mais fonemas. Tratamos do assunto no livro As Unidades Melódicas da Frase (Rio de Janeiro, Editora do Professor, 1964).

O quinto capítulo da obra aqui examinada se reserva ao estudo das unidades significativas, que formam a primeira articulação da linguagem humana. Assim como o fonema é a unidade mínima da fonação (segunda articulação da linguagem humana) a forma mínima (monema, segundo André Martinet) é a unidade mínima da significação. A Lingüística Norte-Americana usa o termo morfema para designar a forma lingüística mínima, quer se refira ela a uma idéia do mundo extralingüístico, quer se refira a uma idéia puramente gramatical. A Lingüística Européia, em particular após Vendryès, distingue duas modalidades de forma lingüística mínima: o semantema (referência extralingüística, porque ao mundo dos objetos) e morfema (referência lingüística ou interna, indicando as diferentes categorias gramaticais da língua). O professor André Martinet, como vimos, dá o nome de monema à forma lingüística mínima, nele distinguindo o lexema (igual a semantema) do morfema (forma referente às categorias gramaticais). O professor J. Mattoso Câmara Jr. usa as denominações consagradas de semantema e morfema. Em seguida, mostra que não é a frase, nem o vocábulo formal, a base das unidades significativas numa língua. A frase, a despeito dos padrões frasais, que pertencem ao sistema, é sempre uma realização do discurso, ou seja, uma realização individual. Por outro lado, o vocábulo formal, – que alguns lingüistas consideram pura convenção, – ainda não é a menor unidade significativa. As considerações que desenvolve, a propósito, sobre a depreensão dos vocábulos formais, são de primeira ordem pelo método e rigor da exposição. Em seguida, indica a forma mínima como a menor unidade da significação, entendendo-se por forma mínima uma relação entre o significante e o significado lingüístico. O vocábulo formal, por sua vez, pode apresentar os seguintes tipos: vocábulo pleno, que é sempre um sintagma simples ou complexo, no conceito de Mikus; e vocábulo-semantema, que é um tipo indivisível, o mesmo ocorrendo com o chamado vocábulo-morfema. Particularmente cremos que o professor J. Mattoso Câmara Jr. poderia ter incluído, nos exemplos que dá de vocábulo-semantema, os advérbios em geral, como ontem, na seguinte frase: “Ontem fui ao teatro”. No caso, como se , o advérbio ontem é um vocábulo-semantema, porque indivisível. Quanto ao método para a depreensão das formas mínimas, a nosso ver, é o que de melhor temos lido sobre o assunto, pela clareza e precisão didática.

O sexto capítulo desenvolve considerações em torno dos tipos de morfema, partindo do exame das incongruências entre forma e função. Em seguida, estuda os afixos, mencionando então a teoria de Eugênio Nida, autor que indica os seguintes tipos de morfema: aditivo, subtrativo, reduplicativo, alternativo e morfema zero. O morfema de posição também se examina, bem assim os conceitos de acumulação e redundância. E passa, no sétimo capítulo, ao estudo da Semântica, esse ramo da Ciência Lingüística em que não se atingiu o progresso quenos estudos de Fonologia. Nesse particular, o grande perigo que se depara ao lingüista é a sedução da Psicologia e da Antropologia Cultural, em abandono de métodos lingüísticos autênticos. Quanto a isso, o professor J. Mattoso Câmara Jr. se mostra mais cauteloso que o professor Sílvio Elia, pois se previne bem dos perigos do caminho, jamais se afastando do critério rigorosamente estruturalista. o professor Sílvio Elia, como se pode ver no artigo intitulado “O Sinal Lingüístico”, publicado na Miscelânea Filológica em honra à memória do professor Clóvis Monteiro (Rio de Janeiro, Editora do Professor, 1965), partindo de Hjelmslev, fala-nos em forma do conteúdo e substância do conteúdo, insistindo em que a substância do conteúdo deve ser estudada pela Lingüística. Como se , o autor pretende uma associação, que nos parece difícil, entre o estruturalismo e o idealismo lingüístico de Vossler e Leo Spitzer, valorizando sempre o espírito humano, dentro de sua formação marcadamente neotomista. O professor J. Mattoso Câmara Jr., porém, não se afasta nunca do critério estruturalista, observando que a substância do conteúdo é matéria que está fora do campo da Lingüística, por isso pertencendo ao âmbito da Psicologia e da Antropologia Cultural. Num ponto, entretanto, temos a impressão de que o professor Sílvio Elia tem razão. Trata-se de um problema terminológico em que o referido autor estabelece diferença entre símbolo e signo, baseando-se em Saussure:

On s’est servi du mot symbole pour designer le signe linguistique, ou plus exactement ce que nous appelons le signifiant. Il y a des incon­vénients à l’admettre, justement a cause de notre premier principe. Le symbole a pour caractère de n’être jamais tout à fait arbitraire; il n’est pas vide, il y a un rudiment de lien naturel entre le signifiant et le signi­fié. Le symbole de la justice, la balance, ne pourrait pas être remplacé par n’importe quoi, un char, par exemple.[1] (Cours de Linguistique Générale, 3ª ed., p. 101)

O professor J. Mattoso Câmara Jr., entretanto, afastando-se do conceito de Saussure, traduz signe por signo ou símbolo, indiferentemente, anulando a distinção do mestre genebrino, segundo a qual o símbolo tem caráter evocativo, sendo arbitrário o signo. Para isso, naturalmente, deve ter razões inclusive de ordem filosófica, sendo um direito seu discordar de Saussure num ou noutro ponto. A nosso ver, prende-se a esse assunto complexo o problema da motivação e o da imotivação do signo lingüístico. Sendo arbitrário o signo lingüístico, ou seja, imotivado e convencional, também nos parece que a ele não se ajusta bem a denominação de símbolo. Ou não terá o termo símbolo qualquer sentido de motivação?

Voltando à Semântica, baseia-se ela, fundamentalmente, na análise do semantema ou lexema. O estudo dos morfemas, que apresentam significação interna, pertence à gramática, levantando-se o quadro das categorias gramaticais da língua. Essas categorias gramaticais variam de um sistema lingüístico para outro, mas é sempre possível depreendê-las dentro de uma determinada língua. Quanto aos semantemas, apresentam eles uma significação externa, pois a palavra é uma forma livre provida de semantema. Nesse sentido, o professor J. Mattoso Câmara Jr., além da forma livre e da forma presa, fala-nos na forma dependente ou relacional, dele discordando o professor Sol Saporta. Mas a discordância, a nosso ver, não procede, pois a forma dependente, também reconhecida por Trnka, é aceita igualmente pelo professor André Martinet, quando trata de morfemas relacionais. No caso, importa o estudo do semantema nas formas livres, isto é, o estudo das significações léxicas. Daí nasceu a Semântica, apresentando um caráter inicialmente histórico, com a obra de Michel Bréal, na França. Aliás, aqui poderíamos fazer menção ao livrinho de Pacheco da Silva Júnior, autor que, segundo o professor Antenor Nascentes, descobriu a Semântica ao mesmo tempo que Bréal. A propósito, o professor Hampl, em artigo publicado em nossa imprensa sobre os filólogos brasileiros, lamenta que Pacheco da Silva Júnior não tivesse publicado o seu livro como o redigiu inicialmente, isto é, sem alterá-lo por influência das idéias de Bréal. O que importa aqui, entretanto, é a observação de que os estudos semânticos nasceram com base histórica. modernamente, com efeito, é que tais estudos se desenvolvem em plano sincrônico, através da Semântica Descritiva, e não apenas em plano diacrônico. Bloomfield e seus discípulos, entretanto, excluem a Semântica dos estudos lingüísticos, para situá-la nos domínios da Filosofia. Mas a chamada Lingüística Mentalista procura intuir, diretamente, a significação de cada forma, advogando a existência de uma análise semântica autônoma ao lado da análise formal. Essa análise semântica, ao contrário do ponto de vista defendido pelo professor Sílvio Elia, não cuida da substância do significado, como o próprio Hjelmslev assinala em relatório apresentado ao IX Congresso Internacional de Lingüística. No caso, não importa o estudo da realidade objetiva que nos cerca, nem mesmo importam os fenômenos psicológicos baseados na introspecção, como André Martinet assinala nos seus Éléments de Linguistique Générale. O significado da forma lingüística contém apenas uma representação mental, que não se confunde com a substância do objeto. Aliás, Ogden e Richards, como assinalam os professores J. Mattoso Câmara Jr. e Silvio Elia, mostraram muito bem que não há uma relação direta entre o signo lingüístico e o objeto. A relação é convencional e arbitrária, embora o pensamento tanto se ligue diretamente ao objeto como ao signo lingüístico. Assim, o que importa é que o signo e objeto não se ligam diretamente. E isso, aliás, explica a discordância léxica existente entre as línguas.

Mas a grande dificuldade dos estudos semânticos, em face do método estruturalista, reside no fato de que os semantemas, ao contrário dos morfemas, não se encerram num quadro limitado e fechado, constituindo-se em conjunto aberto e ilimitado, facilmente ampliando-se ou restringindo-se, segundo as mudanças da vida social. Os debates provocados pelo citado relatório de Hjelmslev, no IX Congresso Internacional de Lingüística, demonstram cabalmente o fato. Esse relatório, aliás, foi bastante fecundo, pois motivou a publicação de vários estudos posteriores, entre os quais os de Tatiana Cazaku, Bernard Pottier e Eugênio Coseriu. O que tudo nos indica, como observa o professor J. Mattoso Câmara Jr., é que a evolução dos estudos semânticos encontra o seu caminho certo no exame do chamado campo semântico, onde se enquadram os diferentes semantemas de uma língua, permitindo-nos o estudo de suas diferentes conexões e oposições.

Mas o recorte do mundo objetivo na língua, como observa ainda o professor J. Mattoso Câmara Jr., não se faz apenas pelo estudo dos semantemas. Há os morfemas que ampliam a significação dos semantemas. Importante, no caso, são também as relações da Semântica, não propriamente com a Psicologia Individual, mas com a Psicologia Coletiva, assunto estudado em Psicolingüística. A matéria, entretanto, continua em fase de investigações e pesquisas nem sempre concordantes, e muito ainda se espera da Lingüística nesse sentido.

Nos capítulos oitavo e nono, o professor J. Mattoso Câmara Jr. tece considerações em torno das categorias gramaticais do gênero e aspecto verbal. Quanto ao gênero, inicialmente mostra a falibilidade da associação do masculino e do feminino aos conceitos de macho e fêmea, como único critério, pois nem sempre é aceitável a explicação do gênero lingüístico por associações de ordem sexual. Os critérios são variáveis e complexos, indicando claramente que as categorias gramaticais não se ajustam às categorias lógicas, como se admitiu, e isso desde os Gregos. Na realidade, depois de longa discussão sobre a matéria, o professor J. Mattoso Câmara Jr. chega à conclusão de que a categoria de gênero é convencional e arbitrária. Quanto ao aspecto verbal, assinala que estamos normalmente habituados com a categoria de tempo (passado, presente e futuro). Aliás, o futuro se realizou tardiamente, como elaboração da língua culta, e isso a língua coloquial ainda hoje nos mostra, estabelecendo apenas a dicotomia: passado-presente. Por isso é que se perdeu o futuro em romanços, não sendo mesmo empregado em latim vulgar, salvo o futuro volitivo. (Ex.: cantare habeo, de início equivalente ao nosso hei de catar. Dessa construção é que surgiu o nosso futuro: cantarei, cantarás, etc.).

Mas aspecto verbal é a categoria que exprime duração. Assim, em nossa língua: aspecto cursivo (estou cantando, estava cantando, estive cantando, estarei cantando, etc.); aspecto cessativo, que se acha no cerne das formas compostas com o auxiliar ter ou haver e um particípio passado, e oposição entre o aspecto inconcluso do pretérito imperfeito e o aspecto concluso do pretérito perfeito e do pretérito mais que perfeito. Encontramos boa exposição sobre as teorias em torno do aspecto verbal no livro El Problema del Aspecto Verbal, de L. Jenaro Maclennan (Madrid, Editorial Gredos, 1962).

O décimo capítulo trata das espécies de vocábulos. Para classificá-los, convém desde logo distingui-los em vocábulos-semantema e vocábulos-morfema. Esses últimos são morfemas categóricos ou morfemas relacionais, que se enquadram nas formas dependentes, segundo a nomenclatura proposta pelo professor J. Mattoso Câmara Jr. Ao contrário, os vocábulos-semantema, ou vocábulos de significação externa em geral, são formas livres. Eis a classificação que apresenta: nomes e verbos, distinguindo-se pelo valor estático ou dinâmico do respectivo semantema; pronomes, que diferem dos nomes por serem essencialmente dêiticos; e instrumentos gramaticais. Do ponto de vista funcional, num sintagma, aponta: o substantivo, o adjetivo e o advérbio.

Os capítulos XI e XII são dedicados à sintaxe. De início, define frase como unidade do discurso (parole). Mas a frase é uma unidade heteroclítica, pois se realiza dentro de padrões que pertencem à língua, encarada como sistema. E podem ser resumidos em três itens os traços característicos de um padrão frasal: a) A ordem dos vocábulos de acordo com a sua função; b) A associação dos vocábulos de acordo com a sua categoria; e c) A concordância de categorias entre os vocábulos de acordo com um princípio dado. A diferença de padrão estrutural, dentro desses itens, pode ser ressaltada entre duas línguas culturalmente próximas, como o português e o inglês. Realmente, o adjetivo, em referência ao substantivo, se caracteriza, na frase inglesa, pelo item a e, na portuguesa, pelo item b. Naquela não funciona a concordância e nesta não funciona a ordem. Passa, em seguida, ao exame da frase na língua escrita, desenvolvendo importantes considerações sobre a hipotaxe. Como se , o professor J. Mattoso Câmara Jr. seguindo a lição de Sapir, inclui a língua literária no domínio das preocupações lingüísticas, ao contrário de Bloomfield e seus discípulos que aplicavam o método mecanicista da escola ao estudo da língua falada. Mas a frase, – quer na linguagem oral, quer na escrita, – como unidade do discurso, é uma criação individual. Daí as inevitáveis implicações que o estudo da frase apresenta em relação à Estilística.

Quanto à estrutura, a frase pode ser nominal (estática) ou verbal (dinâmica), em correspondência com a classificação de nomes e verbos. De uma forma ou de outra, pode sempre ser reduzida a um sintagma em que o sujeito é o determinado e o predicado o determinante. Na nomenclatura de André Martinet, trata-se de um sintagma predicativo, comportando expansões. Em seguida, o professor J. Mattoso Câmara Jr. distingue o sujeito gramatical do sujeito psicológico, – nada tendo a ver ambos com a lógica, – passando ao exame das frases impessoais, – (pensamos por meio de predicados) – e da gênese da frase, segundo o psicólogo alemão Pick. Na frase pessoal, são variadas as relações significativas entre o sujeito e o predicado que se incluem na categoria gramatical da voz, devidamente estudada. E termina o capítulo examinando a frase ergativa, que se encontra freqüentemente fora do âmbito indo-europeu.

No capítulo XIII, conceituando a evolução lingüística, entra no eixo diacrônico. Nenhuma língua é homogênea num território em que é falada, nem se mantém estática através dos tempos. Ao contrário, está em mudança constante na transmissão de uma geração a outra. E dentro dessa mudança, a evolução fonética goza de evidente primazia. Em suma, há uma predisposição coletiva para a mudança, impulsionada por três fatores:

a) Adaptação da língua à evolução da cultura; b) Adaptação da língua, como sistema intelectivo, à expressão estética; e c) O reajustamento contínuo do sistema, que não é cabal, coeso e suficiente e se acha permanentemente num equilíbrio instável. A evolução fonética é queem regra o impulso inicial e é mais fácil de ser formulada e interpretada cientificamente. (p. 200).

Daí passa o professor J. Mattoso Câmara Jr. a estudar, no capítulo XIV, as causas da evolução fonética, observando que elas são determinadas pelo equilíbrio instável de qualquer sistema lingüístico (causa interna) ao lado de impulsos estilísticos. Mas, a princípio, a Lingüística buscou a explicação do fenômeno em causas externas ou extralingüísticas, como a ação do clima e a expansão de uma língua em população aloglota, que fará uso da nova língua com hábitos articulatórios da língua abandonada, como quer a teoria dos substratos. Ocorre, porém, que a ação do meio é vaga, mostrando-nos a Geografia Lingüística que muitas diversidades regionais são de caráter temporal. Quanto à teoria dos substratos, o professor J. Mattoso Câmara Jr. a inclui no caso de empréstimo e difusão lingüística. A evolução, por fim, se processa na transmissão da língua entre as gerações, o que depende da estrutura social e das condições culturais do meio em que essas gerações nascem e crescem.

No capítulo XV, baseado em Jakobson, estuda os diferentes aspectos da evolução fonética. O primeiro deles se relaciona com a instabilidade do jogo articulatório, que pode transformar os fonemas de uma língua, quando essa transformação é seguida coletivamente. Assim, os segmentos fônicos latinoslia-, -lie, -lio – passaram a –lha-, -lhe-, -lhoem português, com aparecimento de novo fonema. Outras vezes, ocorre desvalorização fônica, como é o caso de /v/, em espanhol, que hoje se pronuncia como /b/, sem qualquer oposição distintiva, embora em espanhol americano ressurja a oposição fonética. Por fim, há casos de revalorização de um fonema. Quanto às mudanças combinatórias, segundo Grammont, podem ser: a) Entre fonemas contíguos num contexto fônico (assimilação, diferenciação, interversão); b) Entre fonemas distantes (dilação, dissimilação, metátese). Nas segundas, entre o fenômeno psíquico da atenção concentrada em certo fonema com prejuízo do que no momento é articulado. Nas primeiras, a articulação de um fonema interfere mecanicamente na articulação do contíguo. As mutações são determinadas, – observa ainda, – “diretamente pelo impulso para um reajustamento do sistema ou condicionadas neste sentido por elementos fônicos, como a velocidade da elocução, a intensidade, a altura, a firmeza ou frouxidão do ataque articulatório”. (p. 240). Por fim, assinala que, ao lado da mudança fonética estrita, há a mudança analógica em que o plano mórfico interfere no plano fônico, modificando-se ou criando-se uma estrutura fonética na base do reajustamento formal.

No capítulo XVI, analisa a questão das chamadas leis fonéticas, caracterizando-as em função de um contraste de fonemas entre as séries léxicas de uma língua, num momento dado, e as séries correspondentes num momento anterior. Assim, em português, podemos indicar algumas leis típicas: a) A simplificação das consoantes geminadas; b) A sonorização das consoantes surdas intervocálicas; c) O desaparecimento (síncope) de consoantes sonoras intervocálicas; d) A evolução de grupos consonantais crescentes /kl/, /pl/ a consoantes palatalizadas. O estabelecimento de uma lei fonética é feito empiricamente, isto é, através do confronto do vocabulário de dois estados lingüísticos sucessivos. A sua base é indutiva, pois se fundamenta na freqüência dos casos examinados. A rigor, portanto, a lei fonética é uma fórmula de correspondência, segundo a expressão de Meillet, revestindo-se de caráter empírico. Melhor é, portanto, falar-se em tendência fonética ou correspondência fonética, em face das exceções. De qualquer forma, a lei fonética é útil para a reconstituição de formas hipotéticas, naturalmente dentro da deriva da língua. Mas ela é sempre relativa, como instrumento útil de trabalho, que nem sempre leva a conclusões definitivas, senão a conclusões não raro provisórias. Termos eruditos, por exemplo, escapam à formulação das leis, como pleno, clave, etc. Por outro lado, o léxico de uma língua comum reúne vocábulos provenientes de vários falares. O exagero dos neogramáticos, no caso, consistia no fato de que, muitas vezes, abandonavam formas documentadas, que não se ajustavam às leis, dando preferência às formas hipotéticas, recorrendo ainda, e abusivamente, ao fenômeno da analogia para a explicação dos casos difíceis. Em tais circunstâncias, porém, a verdade é outra. É que tais formas, não raro, são oriundas de empréstimos lingüísticos, escapando assim à ação da lei fonética, como o método da Geografia Lingüística hoje nos demonstra. Não se pode, portanto, equiparar o conceito de lei fonética ao conceito de lei nas ciências físicas. Com efeito, o caráter de previsão que tem uma lei científica não existe na chamada lei fonética. A evolução lingüística é, assim, imprevisível. E a lei fonética apenas formula uma ocorrência pretérita, que se verificou numa região limitada e em condições complexas que não se repetem do mesmo modo. Trata-se, apenas, de um instrumento de trabalho a ser empregado com muita cautela.

O empréstimo lingüístico e sua amplitude é o assunto do capítulo XVII. Todo empréstimo estabelece traços lingüísticos novos, dentro de uma língua, respondendo sobretudo pela renovação do vocabulário, cuja continuidade é constantemente interrompida através dos tempos. Cumpre saber, entretanto, se há também empréstimo de morfemas e fonemas, além dos empréstimos vocabulares. Nesse sentido os lingüistas nem sempre estão de acordo, havendo duas correntes opostas. A mais certa, entretanto, é a que nega a existência de empréstimo de morfemas e fonemas. Haja vista o caso do romeno, que mantém o seu caráter de língua neolatina apesar do abundante acervo eu recebeu de palavras eslavas. Daí se conclui que a tendência geral dos empréstimos vocabulares é a adoção da fisionomia mórfica da língua importadora. Sirva como exemplo o empréstimo, no português do Brasil, de palavras de origem africana ou indígena. Assim, o empréstimo não explica os caracteres gramaticais novos que aparecem numa língua, como muitos supõem. Nem mesmo os falares crioulos podem ser tidos como línguas mistas ou heterogêneas, pois não passam de língua culta imperfeitamente falada, em virtude de simplificações mórficas. Na realidade, como se , a morfologia de uma língua é sempre um sistema fechado, repelindo a noção de empréstimo. Por isso, Darmesteter afirmava que um povo pode inclusive mudar a sua sintaxe e o seu vocabulário. Mas, se as formas gramaticais não mudam, a língua é a mesma. Em relação à Fonologia, os fonemas de uma língua se estruturam num quadro fechado, pois não permitem empréstimos de natureza fônica. Não obstante, assinala o professor J. Mattoso Câmara Jr. que a Lingüística contemporânea não se mostra assim tão radical em relação aos empréstimos de formas gramaticais, e exemplifica o fato com a adoção de sufixos de derivação de uma língua para outra; com a adoção de vocábulos-morfema ou instrumentos gramaticais; e com o caso mais raro de empréstimo de morfemas segmentais, como a desinênciao – do vocativo romeno de nomes femininos. Cumpre observar, porém, que o empréstimo mórfico, – sempre mais raro que o empréstimo léxico, – pressupõe certa identidade de estrutura entre duas línguas, daí se concluindo que uma estrutura lingüística pode alterar-se com o tempo. Quanto ao empréstimo de fonemas, difícil também é a sua ocorrência, pois sempre a língua adapta o vocábulo importado ao seu esquema fonemático. No caso, o bilingüismo, – que não se confunde com diglotismo, – pode facilitar por difusão o empréstimo mórfico, ressalvando-se as desinências. Por fim, há o empréstimo de tipos frasais, a que Vendryès dá o nome de decalque, fenômeno comum em traduções mal feitas.     E cremos que se poderia ainda acrescentar o empréstimo de estruturas métricas, como é o caso dos metros pares que o português medieval importou da lírica occitânica. São ímpares, como é sabido, os metros nativos da versificação galego-portuguesa.

Ainda sobre o empréstimo, foram escritas as páginas do capítulo XVIII, em particular dedicadas aos aspectos lingüísticos e sociais do fenômeno. Nesse sentido, Bloomfield classifica os empréstimos em dois tipos: culturais e íntimos. Os primeiros decorrem de relações culturais amplas com outros povos, pois as nações não vivem insuladas. Os segundos são determinados pela coexistência de dois idiomas num meio social. Nesse último caso, a língua que exprime maior desenvolvimento cultural tende a abolir a outra, fornecendo-lhe empréstimos mais ou menos abundantes. De início, há uma fase de bilingüismo, mais ou menos prolongada, até que uma língua suplante a outra. Assim, apesar dos empréstimos, os fonemas e morfemas da língua superada desaparecem. A língua, portanto, se extingue na consciência coletiva. Além disso, deve-se levar em conta a radicação da língua de povos invasores, em conseqüência do desaparecimento final de línguas nativas, sempre por motivos de ordem cultural. No Brasil, por exemplo, a chamadalíngua geral’, na realidade, foi superstrato inicial do português, língua usada pelos catequistas e bandeirantes até o século XVII. Isso permitiu a penetração de empréstimos das línguas indígenas no português do Brasil, que afinal se impôs como língua padrão, também por motivos culturais. O problema é complexo, e são vários os casos de empréstimos íntimos que o professor J. Mattoso Câmara Jr. examina. Mas há, além disso, os empréstimos entre falares, criando sérias dificuldades aos princípios rígidos das chamadas leis fonéticas. Daí a teoria das áreas lingüísticas, classificadas em cinco tipos, segundo Bertoni e Bartoli.  São as seguintes: áreas isoladas ou menos expostas;  áreas lateraisáreas mais tardias;  área da  fase desaparecida ou moribunda; e a  área maior. A língua comum, afinal, resulta do predomínio de um dos falares, – o de maior expressão cultural ou política, – sobre os demais, como ocorreu na Itália, em relação ao toscano, ou, na França, em relação ao falar da ilha de França. Observe-se ainda que a língua comum não se apresenta homogênea numa extensão territorial politicamente delimitada, pois varia segundo o grau de cultura das camadas sociais que a falam, dando origem à oposição entre língua culta e língua popular (linguajar). Por outro lado, as profissões tendem a criar línguas especiais. E há, por fim, a gíria, o calão e a língua literária. Essa última é uma artistificação da língua comum, mas não se confunde com esta. Ninguém dirá, por exemplo, que a língua literária de Guimarães Rosa seja falada. Trata-se de uma língua escrita ou de uma modalidade de língua escrita apresentando finalidade estética. Aliás, distinguimos a língua padrão (escrita ou falada) da língua literária propriamente dita. A primeira se ajusta às normas gramaticais, difundidas pelo ensino sistemático nas escolas. A segunda, por motivos estilísticos, apresenta numerosos desvios em relação à norma estabelecida. Nesse sentido é que Mário de Andrade afirmava que, se alguém erra por desconhecer a gramática, erra por ignorância. Mas, se erra conhecendo a gramática, e com finalidade estética, erra criando. E a língua comum, não raro, recebe empréstimo da língua literária. Nesse sentido, escreve o professor J. Mattoso Câmara Jr.:

A existência do empréstimo literário na língua comum subverte profundamente o jogo das mudanças fonéticas. Determina até, muitas vezes, o que se chama regressão erudita: regridem para o aspecto antigo, considerado o “corretoem virtude do prestígio literário, formas que haviam sofrido a evolução, consentânea com o seu ambiente fonético: em português, digno e congênere readquiriram o /g/ implosivo, aspecto substituiu aspeito, etc. (p. 287).

Por tudo isso se que a Lingüística deve estudar as línguas em todos os seus aspectos, pois todos são objetos de ciência.

No último capítulo, que é o XIX, preocupa-se o professor J. Mattoso Câmara Jr. com o problema da classificação das línguas. De início, fixa o caráter abstrato da linguagem humana, observando que as línguas é que são os sistemas definidos da linguagem. Assim, a Lingüística estuda as leis e os processos da linguagem através da análise das línguas de todos os tipos e faladas no presente ou no passado, em busca do que há de comum entre elas. Nesse sentido, é importante o estudo dos diferentes sistemas lingüísticos, considerados em conjunto e entre si, daí surgindo vários critérios de classificação. Assim o método histórico-comparativo criou a classificação genética ou genealógica, naturalmente apresentando base diacrônica. Por esse método, chegou-se a uma classificação das línguas indo-européias bastante elaborada, daí partindo-se para a classificação de outros blocos lingüísticos. Mas a classificação genealógica não conseguiu ainda abranger todas as línguas do mundo, e nos blocos estabelecidos há problemas de toda espécie, como é o caso do aparecimento do hitita, por exemplo. Em oposição ao método diacrônico, há classificações de caráter sincrônico e base extralingüística, entre elas a geográfica, que agrupa as línguas em áreas, e a tipológica, baseada na estrutura das línguas. A primeira classificação tipológica foi a de Schleicher, apesar de suas preocupações diacrônicas . Modernamente, Sapir e Greenberg procuraram apresentar classificações baseadas em critério inteiramente descritivo. Mas a questão continua de , apesar dos bons estudos existentes sobre a matéria. Cremos, inclusive, que os resultados obtidos com o método histórico-comparativo, em plano diacrônico, são mais satisfatórios que os resultados obtidos com as classificações tipológicas e descritivas, em plano sincrônico. De qualquer forma, ambos os critérios são de interesse para os estudos lingüísticos.

Concluindo, vê-se que a positiva valoração crítica do livro, segundo o julgamento unânime e abalizado de autores nacionais e estrangeiros, não se exprime em termos ocos. Trata-se de uma obra pioneira, porque introduziu a Lingüística moderna nos meios universitários brasileiros. O seu autor, além disso, escreveu vários outros volumes em que volta aos temas de Lingüística, revelando sempre a segurança de sua formação científica, em contribuições inestimáveis à cultura brasileira. Conhecendo bem a obra de Saussure, que traçou novos rumos aos estudos de Lingüística Moderna, filia-se o professor J. Mattoso Câmara Jr. à orientação geral da escola Lingüística Norte-Americana, em particular à corrente de Sapir. Nem por isso, entretanto, deixa de recorrer à doutrina de Bloomfield, nos pontos em que o mecanicismo lingüístico não interfere em sua posição mentalista. Além disso, segue as normas da renovação lingüística difundidas pelo chamado Círculo Lingüístico de Praga, com Trubetzkoy e Jakobson à frente, revelando ainda profundo conhecimento da Lingüística Européia, em particular através das obras de Meillet, Vendryès, Martinet e tantos outros. Dominando várias línguas estrangeiras, a sua bibliografia é ampla e valiosa, incluindo autores alemães de primeira ordem, como Porzig. Vale-se ainda de revistas especializadas em vários idiomas com perfeita atualização bibliográfica, estando ainda a par dos estudos diacrônicos, desenvolvendo considerações sobre o problema do empréstimo lingüístico com rara erudição. Todas as correntes da Lingüística Moderna, por conseguinte, lhe foram familiares, quase diríamos íntimas. A ele se deve o primeiro estudo de Fonêmica em relação ao português do Brasil, desenvolvido em tese de concurso, mais tarde publicada em livro. Dominou, assim, inteiramente, os problemas relacionados com a moderna Fonologia, ramo dos estudos lingüísticos que maior grau de desenvolvimento atingiu, em relação aos demais. Quanto à morfologia, em particular partindo da doutrina de Eugênio Nida, apresenta-nos uma análise da matéria que é o que de melhor se escreveu no Brasil sobre o assunto, chegando aos estudos de Semântica com base no método estruturalista, o que vale dizer que se previne bem das seduções e dos perigos da Psicologia e da Antropologia Cultural. A sintaxe, igualmente, é estruturada dentro de critérios renovados, fugindo às normas da tradição gramatical. Por fim, os problemas diacrônicos da Lingüística Moderna são desenvolvidos com absoluta segurança, terminando o volume com excelente capítulo sobre a classificação das línguas. Todas essas razões fazem do livro do professor J. Mattoso Câmara Jr. uma obra única no gênero, exercendo a sua doutrina grande influência na formação científica dos jovens universitários brasileiros. E não apenas em relação a esses, pois a nossa cultura lingüística, no que tem de melhor, se filia à sua orientação, como se pode examinar em sua bibliografia especializada, toda ela revelando sensível influência no seu pensamento. O papel que desempenhou, portanto, nos quadros de nossa Universidade, ainda em fase de crescimento, pode comparar-se apenas à ação de Bloomfield e Sapir nos Estados Unidos da América. Ou então à ação de Martinet na França ou de um Walter Belardi na Itália. E tudo isso se comprova com as várias edições revistas e aumentadas dos Princípios de Lingüística Geral, obra que não é simples divulgação científica, mas de pura ciência.

Por tudo isso, o seu falecimento, ocorrido no dia 4 de fevereiro de 1970, representou enorme perda para a Cultura Brasileira. E a Academia Brasileira de Filologia, de que ele foi um dos fundadores, agora lhe presta, num Congresso Internacional de Língua Portuguesa, a justa homenagem que ele bem merece no ano do centenário de seu nascimento.


 


 

[1] “Utilizou-se a palavra símbolo para designar o signo lingüístico ou, mais exatamente, o que chamamos de significante. Há inconvenientes em admiti-lo, justamente por causa do nosso primeiro princípio. O símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado. O símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um carro, por exemplo. [Tradução do Editor].

 

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