A TERMINOLOGIA GRAMATICAL
ALGUNS CASOS POLÊMICOS NA DESCRIÇÃO LINGÜÍSTICA

José Pereira da Silva (UERJ)

 

Como tivemos dificuldade de incluir o Professor Bechara na programação deste evento, por causa de sua agenda apertada, aproveitamos a oportunidade de substituir a Professora Maria Emília, cujo nome constava na programação inicialmente divulgada, para apresentar-lhes algumas idéias do nosso Vice-Presidente, extraídas de suas reflexões gramaticais mais recentes.

E, para abrir esta discussão, é bastante oportuna a transcrição de parte do que consta na quarta capa dos volumes da coleção Na Ponta da Língua, nas orelhas da primeira edição de sua Gramática Escolar de Língua Portuguesa e na página 358 de suas Lições de Português, constituindo-se numa insistenteprofissão de ” do Professor, que é a seguinte:

Há duas maneiras de aprender qualquer coisa: uma, leve, suave, com informações corretas mas superficiais, que, pela incompletude da lição, não indo aos assuntos a ela correlatos, acaba sendo insuficiente para permitir a fixação da aprendizagem. É um método que pode agradar, e até divertir o leitor menos exigente; mas não lhe garante o sucesso do conhecimento.

A segunda maneira é aquela que procura dar um passo à frente da resposta breve e imediata: estabelece relações entre a dúvida apresentada e outros assuntos afins, de modo que, aprofundando um pouco mais a lição, amplia o conhecimento e garante sua permanência, porque não se contenta em ficar na superfície dos problemas e das dúvidas.

Falamos em superfície, e a palavra nos sugere agora uma comparação entre as duas maneiras de aprender de que vimos tratando. A primeira ensina a pessoa, no mar de dúvidas, a manter-se à superfície; não afunda, mas não sai do lugar. A segunda, além de permitir à pessoa permanecer à superfície, ensina-lhe dar braçadas, ir mais além. Assim, pela primeira, a pessoa bóia; pela segunda, nadando, avança e chega a seu destino.

O tempo de que dispomos e o espaço para a apresentação deste texto não são suficientes para darmos uma relação, por mais sintética que fosse, de todos os casos polêmicos na descrição lingüística da língua portuguesa. Por isto, trataremos rapidamente de alguns e nos fixaremos mais demoradamente em um ou dois apenas.

Como pretendemos  homenagear, com esta fala, o Professor Bechara, utilizaremos aqui, basicamente, a 16ª edição das Lições de português pela análise sintática, a 37ª edição da Moderna gramática portuguesa, a 1ª edição da Gramática escolar da língua portuguesa e alguns artigos publicados na coleção Na Ponta da Língua, organizada por ele e seus amigos Antônio Basílio Rodrigues, Horácio Rolim de Freitas, Maximiano de Carvalho e Silva e Rosalvo do Vale.

Naturalmente, serão também trazidos à baila alguns autores que comungam desta preocupação sem, contudo, serem valorizados o quanto mereceriam noutras oportunidades.

Parafraseando Gladstone Chaves de Melo, por exemplo, ao se referir à gramática descritiva e à gramática normativa, Carlos Alberto Gonçalves Lopes nos lembra que ambas “cumprem a sua missão, que a gramática normativa pode apresentar um problema, que não está tanto no de ser prescritiva (diga advogado e não adevogado), mas no de basear-se em descrições incoerentes, inadequadas e muitas vezes falsas.” (LOPES, 2003: 25).

Tratando do mesmo assunto Bruno Fregni Bassetto, no VII Congresso Nacional de Lingüística e Filologia em 2003, absolutamente de acordo com o que pensam os reformistas mais incomodados com a descabida inadequação terminológica da lingüística ocidental moderna, opina com segurança:

Em relação à nossa terminologia gramatical, urge não esquecer que, em grande parte, ela remonta a Dionísio Trácio, que escreveu a primeira gramática do Ocidente. Os gramáticos latinos (Varrão, Aulo Gélio, Carísio, Donato, Prisciano) apenas adaptaram, traduziram ou apenas decalcaram os termos gregos. No correr dos séculos, muitos desses termos tiveram seu conteúdo semântico ampliado ou reduzido, empanando a indispensável transparência que uma terminologia científica de qualquer área do conhecimento humano precisa ter. Penso que seria muito útil se voltássemos à etimologia dos termos da nomenclatura gramatical das vertentes grego-latinas, evitando sobretudo ampliações semânticas indevidas. O resultado certamente seria profícuo sobretudo nos diversos níveis de ensino. Memorizam-se os termos gramaticais sem que se perceba a relação significante-significado e esse fato impede a compreensão clara do fato lingüístico estudado. Todos os que se dedicam a esse ramo do conhecimento humano, como Gladstone Chaves de Mello, sentem o problema e com ele se angustiam; uma reforma da nomenclatura gramatical deve levar em conta essas vertentes greco-latinas, cujas contribuições não podem ser ignoradas mas sim expurgadas de aplicações indevidas e obnubiladas, que lhe foram acrescidas ao longo dos séculos. Os avanços atuais nos estudos da linguagem podem e devem ser adicionados, mas mesmo esses partem daquelas bases. (BASSETTO, 2003: 63)

Mas, considerando o objetivo e a temática geral deste “Seminário Superior de Lingüística Aplicada ao Ensino do Português”, é importante registrar que

Muitos lingüistas têm chamado a atenção para o fato de que os modelos teóricos levantados para o estudo e descrição científica das línguas não pretendem, primordialmente, modificar o trabalho do professor de línguas; mas até adiantam, como o fez Chomsky numa de suas comunicações a congresso de especialistas, que não acreditam na plena eficácia desses modelos teóricos, quando aplicados a fins pedagógicos. Está claro – e ninguém põe em dúvida o fato que o aperfeiçoamento científico da teoria lingüística pode ter repercussão benéfica em determinados aspectos do ensino das línguas; mas isto está longe de significar que o lingüista vai assumir o papel de professor de língua, ou que este se vai transformar naquele. (BECHARA, 2002: 26)

É mais ou menos nesta mesma linha que Mattoso Câmara Jr reflete, na página 5 da sua Estrutura da Língua Portuguesa:

A gramática descritiva, tal como a vimos encarando, faz parte da lingüística pura. Ora, como toda ciência pura e desinteressada, a lingüística tem a seu lado uma disciplina normativa, que faz parte do que podemos chamar a lingüística aplicada a um fim de comportamento social. Há assim, por exemplo, os preceitos práticos da higiene, que é independente da biologia. Ao lado da sociologia, há o direito, que prescreve regras de conduta nas relações entre os membros de uma sociedade.

A língua tem de ser ensinada na escola, e, como anota o lingüista francês Ernest Tonnelat (1927: 167), o ensino escolar “tem de assentar necessariamente numa regulamentação imperativa”.

Assim, a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante da gramática descritiva. Mas é um lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações normativas. (CÂMARA JR., 1972: 5)

O Professor Bechara, Na ponta da língua, tratando das divergências entre os gramáticos, ensina que elas ocorrem no “plano da teoria gramatical” e não  “no plano dos fatos da língua” (BECHARA, 2002: 29-30):

começarão as divergências quando, por exemplo, a questão é saber se a prefixação é um processo de derivação ou de composição, ou se o se é sujeito em frase do tipo Vive-se ou É-se feliz, ou se estamos diante de predicado verbal ou verbo-nominal em frases do tipo Encontraram a porta aberta, ou se cercado é adjetivo ou verbo no particípio em frases do tipo A fazenda está cercada, ou ainda, na conceituação de vogal, sílaba, frase, etc., etc.

Mas estas últimas divergências não são de fatos de língua portuguesa, mas de teoria lingüística, de posição ou modelo teórico do especialista. Neste caso, como há diversas correntes e diversos modelos de descrição das línguas concretizadas nos fatos de língua ou nos atos de fala, é perfeitamente válida a existência de diferentes e, portanto, de divergentes soluções e classificações no plano teórico.

O que tem ocorrido, cada vez com mais freqüência, é que onde as pessoas têm de aprender os fatos da língua na sua modalidade culta – na escola de 1° e 2° graus [ensino fundamental e médio] – não o fazem ou o fazem de maneira insuficiente e, quando procuram nos cursos de Letras aprender o que não aprenderam na escola, vêem-se envolvidas com a teoria gramatical. Como não têm conhecimento dos fatos da língua, vão aprender a teorizar o quê? Limitam-se a repetir, sem compreender a essência dos fenômenos, os modelos oferecidos em aula, e saem da Universidade sem o conhecimento suficiente da língua para praticá-la e ensiná-la aos alunos de 1° e 2° graus [de ensino fundamental e médio].

Devemos não enganar nossos alunos com informações inverídicas, mas é preciso dosar adequadamente o ensino ao seu nível.

Eis um alerta aos docentes a que não se arvorem em reformadores da língua, começando a estabelecer um novo ensino para os seus alunos e confundindo os fatos com as teorias lingüísticas. Estas interessam aos docentes e não aos discentes. O que se deve conseguir deles é a compreensão dos fatos da língua: as teorias que servem de suporte para explicá-los interessam a seus professores.

Silva Ramos, citado por Bechara (2002: 31), nos ensina:

Toda nação tem o seu código de bem falar e escrever em que se instruem os naturais até aos quinze ou aos dezasseis anos, e cada qual procura exprimir-se de acordo com ele, abandonando os problemas da língua aos filólogos e aos gramáticos a quem compete destrinçá-los.

Como “o tempo ruge e a Sapucaí é grande”, vai como anexo o interessante capítulo das Lições de Português (p. 12-14), intitulado “Diferenças de conceitos e nomenclatura entre estas Lições de Português e a Moderna Gramática Portuguesa”, escrito como um prefácio de sua 16ª edição. Ali estão algumas observações interessantes sobre tais divergências metodológicas

 

FLEXÃO E DERIVAÇÃO

Em geral, há uma grande dificuldade em distinguir tecnicamente a flexão da derivação, como se pode ver em BECHARA (1999: 341), pois

A flexão consiste fundamentalmente no morfema aditivo sufixal acrescido ao radical, enquanto a derivação consiste no acréscimo ao radical de um sufixo lexical ou derivacional.: casa + s: casas (flexão de plural); casa + inha: casinha (derivação).

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No plano sintagmático, a flexão provoca o fenômeno da concordância: móvel novo móveis novos em oposição a a casa nova → a casinha nova.

Carlos Alberto Gonçalves Lopes, tratando dos morfemas flexionais (ou categóricos), lembra que as desinências se diferem dos afixos principalmente por serem obrigatórias e produzirem os vocábulos flexionáveis (ou vocábulos morfológicos, na terminologia de José Carlos Azeredo).

Por conseguinte, as flexões existem para efetuar concordância e a concordância serve para indicar o binômio determinado / determinante, ou núcleo / periferia, encontrável no enunciadoMaria encontrou, satisfeita, Marcos”. Como se pode constatar, as desinências inserem a palavra na frase mediante o mecanismo da concordância, mecanismo este que se caracteriza por envolver simultaneamente regras morfológicas e sintáticas aplicáveis apenas aos vocábulos flexíveis, que em português são o substantivo, o artigo, o adjetivo, o numeral, o pronome e o verbo. (LOPES, 2003: 39)

Ora, se mal se consegue distinguir flexão de derivação, o que levou a NGB a definir o grau como flexão, e se o conceito de gênero nas línguas românicas tem sido quase sempre confundido com o conceito de sexo, não seria óbvia uma definição adequada para essa categoria.

O Dicionário Houaiss, no verbeteDesinência”, esclarece que “nas línguas flexionais, é o sufixo flexional que aparece no final de vocábulos adicionando ao seu radical significados gramaticais” (HOUAISS, 2001, s.v.), diferentemente do sufixo derivacional, alheio a tais significados.

Na verdade, para esclarecer grande parte do que discutiremos a seguir, é indispensável distinguir flexão de derivação, o que poderemos fazer, levando em consideração também as palavras de José Carlos Azeredo (2000: 82):

A derivação é um processo que origem a novos lexemas ou palavras [...], enquanto a flexão produz variações da forma de um lexema, dando origem ao que chamamos vocábulos morfossintáticos.

O dicionário registra os lexemas, e não os vocábulos morfossintáticos, porque estes são formas flexionadas.[1]

Mais adiante, no parágrafo 219 o Professor José Carlos Azeredo (2000: 110-1) dá as seguintes razões que nos esclarecem sobre a distinção entre flexão e derivação, considerando a marcação de gênero de substantivo como uma derivação:

·        o conceito de flexão é incompatível com a quantidade de “exceções” observada na classe dos substantivos. Para muitos substantivos emo não existe contraparte feminina em uso (mosquito, besouro, papagaio, lagarto (lagarta é um inseto), veado, camundongo); em outros pares de nomes, a fêmea é designada por meio de um lexema que nenhuma regra é capaz de produzir (homem / mulher, carneiro / ovelha, cavalo / égua etc.);

·        a flexão expressa a variação formal da mesma palavra (feio / feia / feios / feias, saber / sei / sabendo / soubesse, leão / leões). Coelho e coelha não são duas formas da mesma palavra, mas palavras lexicais distintas (MATHEWS, 1974; BECHARA, 1999). A atribuição de um gênero diferente a uma unidade lexical substantiva é uma forma de criar um novo substantivo, isto é, um processo de derivação;

·        a criação e o emprego de certos nomes femininos (chefa, sargenta, presidenta), ou mesmo de certos nomes masculinos (borboleto, formigo, pulgo, possíveis nas histórias infantis) são freqüentemente encarados como opções pessoais ou escolhas estilísticas dos falantes, o que não acontece quando estamos diante de uma flexão regular.

Tratando dos aumentativos e diminutivos, Bechara esclarece mais sobre o conceito de flexão (BECHARA, 1999: 140):

A flexão se processa de modo sistemático, coerente e obrigatório em toda uma classe homogênea, fato que não ocorre na derivação, o que levara o gramático e erudito Varrão a considerá-la uma derivatio voluntaria.

Para não buscar outra bibliografia, relacionei os primeiros cem e os últimos cem substantivos abaixo, registrados no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, encontrei um substantivo que tenha uma forma masculina e outra feminina (“abade” / “abadessa”), com exceção daqueles que podem funcionar tanto como substantivos quanto como adjetivos, evidenciando que a o gênero do substantivo não é formado por flexão:

a, aabora, aachense, aacheniano, aal, aaleniano, aaleniense, aalênio, aalense, aaquenense, aaqueniano, aardvark, aardwolf, aariano, aarônida, aaronita, aaru, ãatá, aavora, aba, ababá, ababaia, ababalhos, ababangai, abá-baxé-de-ori, ababone, ababoni, ababuí, abaca, abacá, abaçá, abacaí, abaçaí , abaçanamento, abacatada, abacataia, abacatal, abacate, abacate-do-mato, abacateiral, abacateiro, abacaterana, abacatirana, abacatuaia, abacatuia, abacaxi, abacaxibirra, abacaxi-branco, abacaxicultor, abacaxicultura, abacaxi-de-tingir, abacaxi-silvestre, abacaxizal, abacaxizeiro, abacé, ábace, abaceias, abacebilidade, abacelabilidade, abacelamento, abacenino, abacense, abaci, abácia, abaciado, abaciamento, abácias, abaciato, abácida, abacinamento, abacisco, abacista, ábaco, abacômita, abacomitato, abacômite, abacondado, abaconde, abacote, abactínea, abacto, abactor, abáculo, abacutaia, abada, abadá, aba-de-estrela, abadágio, abadalassa, abadão, abadavina, abade, abadejo, abadengo, abadense, abadema, abadessa, abadessado, abadia e abadianense; zoose, zoosporângio, zoosporangióforo, zoospório, zoósporo, zootaxia, zootaxonomia, zootaxonomista, zootecnia, zootécnico, zootecnista, zooterapêutica, zooterapia, zootomia, zootomista, zootoxina, zootropia, zootrópio, zooxantela, zopeiro, zopo, zoráptero, zorate, zoratealô, zoratelô, zori, zoro, zoró, zorô, zoroastrianismo, zoroastrianista, zoroastrismo, zoroastrista, zorongo, zorra, zorraque, zorreiro, zorrilho, zorro, zorzico, zoster, zóster, zostera, zosterácea, zosteropídeo, zote, zoteca, zotismo, zoura, zuanginza zuarte, zuavo, zuca, zulo, zulu, zum, zumbaia, zumbaiero, zumbi, zumbido, zumbidor, zumbo, zunda, zunga, zunge, zungu, zunhi, zuni, zuniada, zunideira, zunido, zunidor, zunimento, zuninga, zunja, zunzum, zunzunzum, zupador, zura, zuraco, zuranti, zuraque, zureta, zurina, zuriquenho, zuriquense, zurna, zurrada, zurrador, zurrapa, zurraria, zurro, zuruarrã, zurzidela, zurzidura, zuzá, zuzuto, zwieback, zwinglianismo, zwingliano, zwitteríon, z-zero, zzz.

A EXPRESSÃO DO GÊNERO NOS SUBSTANTIVOS

Depois de lembrar que Mattoso Câmara Jr. (1985:88) informa que “na realidade o gênero é uma distribuição em classes mórficas” que “serve freqüentemente para em oposição entre si distinguir os seres por certas qualidades semânticas” e o sexo entre animais e pessoas, José Mário esclarece:

Quanto aos adjetivos, o gênero é propriedade gramatical que tem o objetivo de concordar com o núcleo substantivo a que se refere, constituindo verdadeiramente o fenômeno da flexão de gênero gênero gramatical. (...)

Aliás, os adjetivos não têm gênero propriamente dito; eles se apresentam numa forma genérica de masculino e, no contexto em que são empregados pelos usuários da língua, tomam a forma de feminino, com o morfema de gênero “-a”, sob a regra de congruência, ou mantêm-se invariáveis. Ou seja, todos os adjetivos são, em potencial, flexionáveis em gênero: os biformes apresentam uma forma de feminino com o acréscimo do morfema de gênero “-a” (com a queda ou não da vogal átona final) e os uniformes, uma única forma para os dois gêneros. (...)

Assim, a variação de gênero dos adjetivos e a dos substantivos constituem fenômenos distintos. Naqueles trata-se de um processo gramatical, obrigatório e fechado, enquanto que nestes, um processo lexical, não-obrigatório e aberto. Em outras palavras, o adjetivo não apresenta gênero, mas torna-se masculino ou feminino, concordando com o substantivo a que se refere; o substantivo, não obstante, é ou masculino ou feminino... (BOTELHO, 2004)

E, pouco adiante, no mesmo artigo, acrescenta, na argumentação para distinguir os nomes em substantivos e adjetivos:

Como adjetivos, flexionam-se normalmente de acordo com o gênero do núcleo substantivo a que se referem, por imposição gramatical, que o processo de flexão de gênero é uma característica do adjetivo. Isto é, quando usamos um adjetivo, não podemos escolher seu gênero; será feminino ou masculino, se for biforme, de acordo com o gênero do núcleo substantivo a que se liga, ou ficará invariável, se for uniforme.

....................................................................................................

Nos substantivos, considerando a categoria de gênero, faz-se uma classificação arbitrária e convencional, e há mais de uma maneira de reunir todos os substantivos do português no seu quadro de gêneros: a analogia formal, a analogia conceptual (incluindo algumas metáforas) e a ampliação do gênero num dado contexto, cuja escolha é semanticamente motivada.

Logo, no tratamento do gênero, não se deve partir de uma noção precisa e bem definida, apesar de sua importância, pois nenhuma noção reúne em si condições para uma eficiente descrição gramatical de gênero.

O mesmo gramático (BECHARA, 1999: 131) ainda lembra queTodo substantivo está dotado de gênero, que, no português, se distribui entre o grupo do masculino e o grupo do feminino”. Mas, logo no início da página seguinte dá uma informação nova e revolucionária entre os mais conhecidos gramáticos brasileiros: “ que esta determinação genérica não se manifesta no substantivo da mesma maneira que está representada no adjetivo ou no pronome, por exemplo, isto é, pelo processo de flexão”.[2]

Continuarei transcrevendo a Gramática do Bechara, que, além de ser autoridade respeitada entre os filólogos, lingüistas e gramáticos de todo mundo ocidental, teve a coragem de enfrentar os tradicionalistas para desmascarar essa farsa de flexão de gênero dos substantivos (BECHARA, 1999: 132-134):

Apesar de haver substantivos em que aparentemente se manifeste a distinção genérica pela flexão (menino / menina, mestre / mestra, gato / gata), a verdade é que a inclusão num ou noutro gênero depende direta e essencialmente da classe léxica dos substantivos e, como diz Herculano de Carvalho, “não é o fato de em português existirem duas palavras diferentes homem / mulher, pai / mãe, boi / vaca, e ainda filho / filha, lobo / loba (das quais estas não são formas de uma flexão, mas palavras diferentes tanto como aquelas) – para significar o indivíduo macho e o indivíduo fêmea[3] (duas espécies do mesmogênero”, em sentido lógico) que permite afirmar a existência das classes do masculino e do feminino, mas, sim, o fato de o adjetivo, o artigo, o pronome, etc., se apresentarem sob duas formas diversas exigidas respectivamente por cada um dos termos de aqueles pares opostos –, “este homem velho” / “esta mulher velha”, “o filho mais novo” / “a filha mais nova” –, formas que de fato constituem uma flexão. (CARVALHO, [s/d.]a: v. 9, s.v. gênero)

A aproximação da função cumulativa derivativa de –a como atualizador léxico e morfema categorial se manifesta tanto em barca de barco, saca de saco, fruta de fruto, mata de mato, ribeira de ribeiro, etc., quanto em gata de gato, porque dá “ao tema de que entra a fazer parte a capacidade de significar uma classe distinta de objetos, que em geral constituem uma espécie de gênero designado pelo tema primário” (CARVALHO, [s/d.]b: 536 n. 38; [s/d.]c: 21). É pacífica mesmo entre os que admitem o processo de flexão em barco barca e lobo loba, a informação de que a oposição masculino feminino faz alusão a outros aspectos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve para distinguir os objetos substantivos por certas qualidades semânticas, pelas quais o masculino é uma forma geral, não-marcada semanticamente, enquanto o feminino expressa uma especialização qualquer:

barco / barca (= barco grande)

jarro / jarra (um tipo especial de jarro)

lobo / loba (fêmea do animal chamado lobo) [4]

Esta aplicação semântica faz dos pares barco / barca e restantes da série acima não serem consideradas primariamente formas de uma flexão, mas palavras diferentes marcadas pelo processo de derivação. Esta função semântica está fora do domínio da flexão. A analogia material da flexão de gênero do adjetivo é que levou o gramático a pôr no mesmo plano belo / bela e menino / menina.

Este fato explica por que na manifestação do gênero no substantivo, entre outros processos, existe a indicação por meio de sufixo nominal: conde / condessa, galo / galinha, ator / atriz, embaixador / embaixatriz, etc.

Sem ser função precípua da morfologia do substantivo, a diferença do sexo nos seres animados pode manifestar-se ou não com diferenças formais neles. Esta manifestação se realiza ou pela mudança de sufixo (como em menino / menina, gato / gata) – é a moção –, ou pelo recurso a palavras diferentes que apontam para cada um dos sexos – é a heteronímia (homem / mulher, boi / vaca). Na primeira série de pares, como vimos na lição de Herculano de Carvalho, não temos formas de uma flexão, mas, nelas, como na segunda série de pares, estamos diante de palavras diferentes.

Quando não ocorre nenhum destes dois tipos de manifestação formal, ou o substantivo, com o seu gênero gramatical, se mostra indiferente à designação do sexo (a criança, a pessoa, o cônjuge, a formiga, o tatu) ou, ainda indiferente pela forma, se acompanha de adjuntos (artigos, adjetivos, pronomes ou numerais) com moção de gênero para indicar o sexo (o artista, a artista, bom estudante, boa estudante).

 

Inconsistência do gênero gramatical

A distinção do gênero nos substantivos não tem fundamentos racionais, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma; nada justifica serem, em português, masculinos lápis, papel e tinteiro e femininos caneta, folha e tinta.

A inconsistência do gênero gramatical fica patente quando se compara a distribuição de gênero em duas ou mais línguas, e até no âmbito de uma mesma língua histórica na sua diversidade temporal, regional, social e estilística. Assim é que para nós o sol é masculino e para os alemães é feminino die Sonne, a lua é feminino e para eles masculino das Mond; enquanto o português mulher é feminino, em alemão é neutro das Weib. Sal e leite são masculinos em português e femininos em espanhol: la sal e la leche. Sangue é masculino em português e francês e feminino em espanhol: le sang (fr.) e la sangre (esp.).

Mesmo nos seres animados, as formas de masculino ou do feminino podem não determinar a diversidade de sexo, como ocorre com os substantivos chamados epicenos (aplicados a animais irracionais), cuja função semântica é apontar para a espécie: a cobra, a lebre, a formiga ou o tatu, o colibri, o jacaré, ou os substantivos aplicados a pessoas, denominados comuns de dois, distinguidos pela concordância: o / a estudante, este / esta consorte, reconhecido / reconhecida mártir, ou ainda os substantivos de um gênero denominados sobrecomuns, aplicados a pessoas, cuja referência a homem ou a mulher se depreende pela referência anafórica do contexto: o algoz, o carrasco, o cônjuge.[5]

A mudança de gênero[6]

Aproximações semânticas entre palavras (sinônimos, antônimos), a influência de terminação, o contexto léxico em que a palavra funciona, e a própria fantasia que moldura o universo do falante, tudo isto representa alguns dos fatores que determinam a mudança do gênero gramatical dos substantivos. Na variedade temporal da língua, do português antigo ao contemporâneo, muitos substantivos passaram a ter gêneros diferentes, alguns sem deixar vestígios, outros como mar, hoje masculino, onde o antigo gênero continua presente em preamar (prea = plena, cheia) e baixa-mar.

foram femininos fim, planeta, cometa, mapa, tigre, fantasma, entre muitos outros; foram usados como masculinos: árvore, tribo, catástrofe, hipérbole, linguagem, linhagem (SAID ALI, [1931]: I, 65-70; DOMINGUES, 1932).

Voltando à argumentação contrária a nossa hipótese, transcrevo o tópicoDesinência de gênero ou sufixo?”, do Professor José Lemos Monteiro (2002: 87-87), ao qual farei alguns comentários em notas de de página:

Alguns autores entendem que o morfe [a], marcador do gênero feminino, se alista entre os sufixos derivacionais, quando o vocábulo for um substantivo. Nessa linha, Bechara (1999) parece defender a idéia de que inexiste o processo flexional na distinção entre os gêneros dos substantivos. E Azeredo (2000), acatando a mesma opinião, afirma que a análise do gênero como flexão, embora muito difundida e consolidada, precisa de uma reformulação. A rigor, segundo tais estudiosos, em lobo loba tem-se uma derivação, desde que as formas do masculino e do feminino expressam significações inerentes diversas.

É evidente que, sendo a hipótese difundida por nomes consagrados como os de Bechara e Azeredo, não é para ser desprezada sem uma reflexão mais acurada. A favor dela há, entre outros, o argumento de que o morfe [a] não se aplica sistematicamente a todos os substantivos.[7] Mas esse mesmo argumento poderia valer, por exemplo, para os chamados adjetivos uniformes (doente, simples etc.).[8]

Desse modo, o grande problema para a aceitação da proposta reside no fato de que, morficamente, o adjetivo tem sob esse aspecto o mesmo comportamento do substantivo.[9] Como se pode entender que ambos são nomes, apenas diversificados quanto à função, afirmar que ocorre flexão, quando se trata de adjetivo, e derivação, quando o nome é substantivo, termina descaracterizando a flexão e a derivação como processos morfológicos. Se a coerência e a simplicidade são os princípios que devem nortear uma boa descrição, parece que tais princípios deixam de ser levados em conta, ao se admitir que o [a], embora seja desinência de gênero nos adjetivos, é sufixo derivacional nos substantivos.[10]

Além disso, há outros fatos complicadores. Conforme explica Azeredo (2000: 111), em vocábulos que são potencialmente substantivos e adjetivos (faxineiro, embaixador, sabichão etc.) “existem contrapartes femininas regularmente formadas por flexão”.[11] Ora, a nosso ver, insistimos mais uma vez, substantivos e adjetivos não são classes de palavras, mas funções (Cf. o capítulo finalClasses e funções”), sendo pouco provável encontrar-s um critério capaz de predizer quando um nome funciona exclusivamente como adjetivo ou como substantivo.[12] Os que se caracterizam preferencialmente como substantivos (inteligência, beleza etc.) em geral não admitem oposição de gênero, caso em que o [a] final, se presente, não é desinência nem muito menos sufixo derivacional.

Por outro lado, se entendermos que em pares do tipo coelho e coelha não se tem a mesma palavra, porém duas palavras distintas, o que dizer dos pronomes ou numerais que admitem a oposição de gênero? Os femininos ela, toda, aquela, duas etc. seriam também palavras distintas dos substantivos correspondentes?[13]

Por essas razões, parece prudente manter nesse ponto a tradição gramatical que considera a marca mórfica de gênero como um mecanismo flexional. Mas o assunto continua polêmico e merece novos estudos.[14]

Depois de esclarecer os fundamentos das formas que nos dão a ilusão de flexão de gênero dos nomes que sãopotencialmente substantivos e adjetivos”, o Professor José Carlos Azeredo (2000:111-2):

Em todos os demais casos em que à distinção de gêneros não corresponde uma distinção sistemática de significados, como a oposiçãomacho / fêmea”, os substantivos, embora formados com base no mesmo radical, apresentam relações de significado bastante variáveis ou mesmo de sistematização impossível. Esses pares de substantivos podem ser distribuídos em dois grupos:

Grupo A: nomes que diferem no gênero e na forma: balanço / balança, barco / barca, barraco / barraca, bicho / bicha, bolso / bolsa, braço / braça, caneco / caneca, cerco / cerca, cesto / cesta, cinto / cinta, cunho / cunha, encosto / encosta, espinho / espinha, fosso / fossa, fruto / fruta, grito / grita, horto / horta, jarro / jarra, lenho / lenha, madeiro / madeira, palmo / palma, poço / poça, ramo / rama, saco / saca, veio / veia.

Grupo B: nomes homônimos de gênero diverso: o cabeça / a cabeça, o guarda / a guarda, o caixa / a caixa, o lente / a lente, o moral / a moral, o rádio / a rádio, o capital / a capital, o rosa (cor) / a rosa (flor), o cinza / a cinza, o violeta / a violeta, o guia / a guia.

 

A IMPRODUTIVIDADE DO CONCEITO DE GÊNERO
NA
DESCRIÇÃO LINGÜÍSTICA

Como nos lembra John W. Martin (2000: 65), indo um pouco além do que propomos (SILVA, 1999: 9-27) e do que propõe Bechara, “Se não fosse o fenômeno da concordância, não haveria por que falar em gênero para descrever adequadamente a língua”.[15]

O que torna evidente em seu artigo é que os substantivosmarcantes”, que são os femininos, levam os seus determinantes para uma forma “marcada”. O que ocorre quando estão isolados ou em contextospuros”. Em contextosimpuros não concordância. Ex.: Maria é alta. Maria e Joana são altas. Maria e Pedro são altos.

E conclui o articulista (MARTIN, 2000: 68-69):

O termofeminino”, de significação tão francamente polar, faz sentido somente quando oposto a seu contrário, “masculino”, e este, vimos , não tem justificativa numa gramática da língua portuguesa.

No lugar de “gênero”, então, fica o conceito de adjetivos[16] marcados ou não marcados. Os marcados correspondem aos “femininos” da gramática escolar, e aparecem somente quando o adjetivo está relacionado a um substantivo marcante. Os não marcados aparecem EM TODAS AS OUTRAS CIRCUNSTÂNCIAS, haja ou não um substantivo a eles relacionado. É este último fato que determina que o assunto não seja uma mera questiúncula terminológica, pois as conclusões dele decorrentes transformam dum modo essencial nossa maneira de encarar a categorização dos substantivos e o fenômeno da concordância adjetiva.

Verdades milenarmente estabelecidas também são dignas de revisões, com base nas novas ciências que surgem a cada momento e, agora, com muito mais velocidade do que acontecia antes da globalização virtual dos conhecimentos.

 

CONCLUSÕES MUITO PROVISÓRIAS

Poderíamos concluir esta exposição com as palavras de José Mário Botelho, propondo que

Conceber o gênero imanente e distinguir sexo (gênero nocional) de gênero gramatical constituem o primeiro passo e o mais relevante para se negar a flexão de gênero dos substantivos (como um fenômeno sistemático) ou, pelo menos, para se verificar a complexidade do tema, que não é a correspondência de sexo, e sim o acréscimo da marca de gênero (“casa bela”, “torta gostosa”), imposta pela estrutura frasal, que cria o fenômeno gramatical. (BOTELHO, 2004)

Pretendemos alimentar esta polêmica para colher mais argumentos em busca de resposta a tão antiga incoerência na tradição gramatical a que Mattoso Câmara se refere no seguinte passo, em que reconhece não ser um trabalho científico exatamente por se prender ao pragmatismo didático-pedagógico, afirmado: “A gramática, nestas condições, é uma disciplina descritiva, cuja ascensão a ciência apenas dependeria de desvencilhar-se das considerações de ordem prática e de apurar o rigor de exposição e método,...” (CÂMARA JR., 1978: 7)

Nos Dispersos, quando o fato da inconsistência da descrição de gênero se torna um fato preocupante entre os especialistas, Mattoso Câmara diz quea primeira mudança metodológica, na descrição gramatical do gênero em português em face do que se tem feito até hoje [em 1966], é assim encará-lo, exclusivamente, em sua flexão nominal”. (CÂMARA JR., 2004: 149, grifo nosso).

Pouco mais adiante, apesar de seu pioneirismo na denúncia dessa dificuldade, além da proposta da “primeira mudança metodológica”, adianta, de forma complementar:

Como, por outro lado, todos os substantivos em português têm um gênero determinado, dependente ou independente do contexto, há que concluir que não é a flexão do substantivo, em princípio, a marca básica do seu gênero. Com efeito, quer apareça, que não apareça a flexão, todo nome, em cada contexto, será imperativamente masculino ou feminino. Assim, livro, poeta, dente são exclusivamente masculinos, como são exclusivamente femininos tribo, rosa, ponte, com as mesmas vogais finais, respectivamente. Da mesma sorte, conforme o contexto, são masculinos ou femininos, sem mudança de forma, artista, intérprete ou mártir.

Essa situação gramatical era a da língua latina. A marca do gênero de um substantivo latino não estava nele em princípio, mas no adjetivo que podia funcionar como seu modificador:... (CÂMARA JR., 2004: 151).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BASSETTO, Bruno Fregni. As vertentes greco-latinas de nossa nomenclatura gramatical. Cadernos do CNLF, vol. VII, n° 01. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2003, p. 63.

BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

––––––. Lições de português pela análise sintática. 16 ed. rev. e ampl. com exercícios resolvidos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

––––––. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

–––––– et alii (Org.). Na ponta da língua. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, vol. 4.

BOTELHO, José Mário. O gênero do substantivo em português. In: SILVA, José Pereira da. (Org.). A questão polêmica da flexão de gênero (alguns textos básicos para sua discussão). 2ª ed. Rio de Janeiro: 2004 [no prelo].

CÂMARA JR., J. Mattoso. Contribuição à estilística portuguesa. 3ª ed. rev. ColeçãoLingüística e Filologia”, coordenada por Carlos Eduardo Falcão Uchôa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

––––––. Estrutura da língua portuguesa. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1972.

CARVALHO, J. C. Herculano de. Enciclopédia luso-brasileira de cultura. Lisboa: Verbo, [s/d.]a.

––––––. Teoria da linguagem. II. Coimbra: Coimbra, [s/d.]b.

––––––. Estudos lingüísticos. vol. III. Coimbra: Coimbra, [s/d.]c.

DOMINGUES, Conde Pinheiro. Variação de gênero em português. In Revista de cultura. Petrópolis: Vozes, 1932.

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LOPES, Carlos Alberto Gonçalves. Lições de morfologia da língua portuguesa. Jacobina: Tipó-Carimbos, 2003.

MACEDO, Walmírio. Gramática da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1991.

MARTIN, John W. Gênero? Revista Philologus, ano 6, n° 16. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr. 2000, p. 65-69.

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MONTEIRO, José Lemos. Morfologia portuguesa. 4ª ed. rev. e ampl. Campinas: Pontes, 2002.

RIBEIRO, Manoel P. Nova gramática aplicada da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Metáfora, 2002. [ está na 14ª edição].

SAID ALI, Manuel. Gramática histórica da língua portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d. [1931].

SILVA, José Pereira da. A inexistência da flexão de gênero nos substantivos da língua portuguesa. Letras em foco. Anais da II Semana de Letras e da VI Semana de Lingüística e Filologia. Tomo I: Língua, Lingüística e Filologia. São Gonçalo: DEL(UERJ) / CiFEFiL, 2000, p. 9-27.

––––––. (Org.). A questão polêmica da flexão de gênero (alguns textos básicos para sua discussão). Rio de Janeiro: 2004 [2ª ed. no prelo].


 


 

[1] Veja que os dicionários registram, por exemplo: menino e menina, pato e pata, gato e gata, homem e mulher, mas não, por exemplo: pequena (feminino de pequeno).

[2] Carlos Alberto Gonçalves Lopes, sócio correspondente da ABF pelo Estado da Bahia,  em seu livro Lições de Morfologia de Língua Portuguesa, apresenta-nos, sinteticamente essas diferenças relativas à expressão do gênero nos substantivos e adjetivos, nos seguintes termos (LOPES, 2003: 76-77):

a) Nos substantivos, que são predominantemente uniformes, o gênero é uma categoria implícita (não-marcada) inserida na estrutura profunda do enunciado, enquanto que nos adjetivos, o gênero é normalmente uma categoria inserida na estrutura superficial do enunciado.

b) Nos substantivos o gênero não é dependente, como é o caso de clima, enquanto que nos adjetivos ele é dependente do gênero do substantivo com o qual se relaciona e concorda, como é o caso de clima horroroso e cidade horrorosa, em que o adjetivo horroroso assume o gênero dos substantivos clima (masc.) e cidade (fem.).

c) Nos substantivos biformes, que são a minoria, o gênero vem internamente marcado por derivação (tio / tia) ou heteronímia (bode / cabra), enquanto que nos adjetivos biformes o gênero vem marcado por flexão (feio / feia).

d) No substantivo o gênero tem força semântica suficiente para modificar a referência (professor / professora) e até para criar oposições metassêmicas (o capital = dinheiro x a capital = cidade principal) ou derivações metassêmicas (o calçado = sapatoa calçada = passeio), enquanto que no adjetivo o gênero não tem força semântica nem modifica a referência, pois designa sempre a mesma qualidade sem acrescentar nada, semanticamente falando (menino formoso menina formosa).

e) No substantivo o gênero é um traço lexical, razão pela qual costuma vir explicitado por um determinante flexionado na maioria dos casos (o grama), enquanto que no adjetivo é um traço gramatical.

[3] É importante ressaltar que as palavrasmacho” e “fêmeatanto podem ser invariáveis em gênero, na formação de palavras compostas indicando o sexo do animal cujo nome é substantivo epiceno (podendo-se interpretar tal fato com uma forma de concordância ideológica), quanto podem ser variáveis, concordando gramaticalmente com o substantivo da base, o que não é muito comum.                 Sobre a palavramacho”, diz Antônio Houaiss em seu Dicionário: Por ser masculino na significação, o feminino (macha) do adj. é menos usado do que o substantivo macho, para formar femininos compostos; tal emprego exige, porém, o uso de hífen, por passar a se tratar de palavra composta por dois substantivos: toutinegra-macho, formiga-macho; esse substantivo, colocado após outro substantivo denominador de um ser sexuado é um determinante específico invariável em gênero, mas não em número, e indica que o ser é do sexo masculino (a cobra-macho, as aranhas-machos) ou um ser viril (um cabra-macho) ou um ser masculinizado (mulher-macho)”

                Quanto a “fêmea”, escreveu o mesmo acadêmico, de saudosa memória: “Colocado após substantivo que denomine um ser sexuado, ao qual se une sempre por hífen, é um determinante específico, invariável em gênero, mas não em número, e indica que o ser é do sexo feminino (o javali-fêmea, as cobras-fêmeas).” Fêmeo é adjetivo que aceita as flexões habituais da língua: javali fêmeo, jacaré fêmeo, tatu fêmeo: toutinegra fêmea, formiga fêmea. Todavia, o masculino deste adjetivo, por ser morfologicamente masculino, mas feminino na significação, é menos usado do que o substantivo fêmea para formar femininos compostos; tal emprego exige, porém, o uso de hífen, por se tornar palavra composta de dois substantivos: jacaré-fêmea, tatu-fêmea, beija-flor-fêmea.

[4] Em seu artigo “O gênero do português e suas relações morfo-semânticas”, Mauro José Rocha do Nascimento lembra que “No caso dos substantivos referentes a seres animados não humanos, há algumas exceções em relação à forma não-marcada. Os termos raposo e zangão, por exemplo, são invariavelmente marcados semanticamente, ao contrário de seus pares raposa e abelha, que designam toda a espécie”.

                Amado Alonso (ALONSO, 1957: 63) afirma ainda que “A explicação sexual do gênero gramatical não está justificada historicamente. A dupla forma de alguns poucos nomes de animais (cervo e cerva, galo e galinha) não é muito antiga, pois não existia no latim arcaico de quatro séculos antes de Cristo. Antes, esses nomes eram somente masculinos”.

[5]  De forma um pouco mais detalhada, Carlos Alberto Gonçalves Lopes (2003: 77-78) identifica diversas formas pelas quais esta inconsistência se manifesta em nossas gramáticas, pecando em confundir diversos elementos da língua:

a) Confundir gênero gramatical com gênero biológico ao se dizer que o gênero é a propriedade que tem o nome de representar o sexo real ou convencional dos seres. Tal equívoco se explica por não se ter percebido que o sexo é um conceito biológico e que à gramática interessa apenas o gênero gramatical, que não se define por características semânticas mas formais, razão pela qual as correspondências nem sempre ocorrem, a exemplo de mulherão, um vocábulo no masculino gramaticalmente falando, mas que se refere a um ser do sexo feminino.

b) Confundir flexão com heteronímia ao dizer que nomes de pessoas e animais se submetem à flexão de gênero, de modo que mulher é o feminino de homem, por exemplo. que homem é substantivo masculino e mulher é substantivo feminino, ambos uniformes, com gênero único, sem admitir variação.

c) Confundir flexão com derivação ao apontar diaconisa como feminino de diácono, por faltar a percepção de que, gramaticalmente falando, tanto diácono quanto diaconisa são substantivos uniformes, podendo-se dizer que o mesmo em relação a imperatriz. Portanto, diaconisa é feminino de diácono sob o ponto de vista do gênero biológico mas não gramatical.

d) Confundir a terminação -o e -a dos substantivos com as desinências de gênero masculino e feminino respectivamente. Não é correto dizer que os substantivos em -o estão no masculino e os em -a no feminino, não por não ser consensual que tais terminações sejam de fato desinências como também por haver situações inversas, com muitos nomes terminados em -a no masculino, tais como (o) clima, (o) delta, (o) patriarca, (o) samba, (o) telefonema etc., e alguns nomes terminados em -o no feminino, como é o caso de (a) tribo.

e) Confundir determinação sintática com flexão ao se dizer que o feminino de tatu é tatu fêmea, quando na realidade não cabe para o substantivo dito epiceno, referente a certos animais, se falar numa distinção de gênero gramatical expressa pelos vocábulos macho e fêmea, porque o gênero de tatu não muda, com a indicação do sexo do animal. Portanto, em tatu fêmea, tatu continua no masculino, sem que o adjetivo determinante fêmea altere o gênero gramatical do substantivo determinado (tatu).

f) Confundir a manifestação de gênero no substantivo com a manifestação de gênero no adjetivo ao se afirmar que o substantivo se flexiona em gênero, quando a realidade é que a esmagadora maioria dos substantivos é uniforme, e mesmo em relação aos poucos casos para os quais comumente se admite haver flexão, como é o caso de lobo / loba, quem defenda a tese de ser a vogal -a não propriamente uma desinência de gênero, mas um sufixo derivacional.

[6] O Professor José Mário Botelho, em seu artigo “O gênero dos substantivos no Português”, cita o filólogo Amado Alonso, lembrando que a explicação sexual do gênero gramatical não está justificada historicamente. Segundo aquele filólogo, a dupla forma de alguns poucos nomes de animais (cervo e cerva, galo e galinha) é muito pouco antiga, pois não existia no latim arcaico de quatro séculos antes de Cristo, visto que, até então, esses nomes eram sempre masculinos. (Cf. ALONSO, 1957: 63, apud BOTELHO, 2004)

[7] Faço questão de lembrar ao Prezado Colega que (exceto os que são potencialmente substantivos e adjetivos) praticamente não se aplica o morfema de gênero ao substantivo. Cf. mais abaixo a lista extraída de HOUAISS (2001).

[8] É claro que o argumento não vale para os adjetivos uniformes, pois estes não mudam de significado como mudam os substantivos dos pares (masculinos / femininos) apresentados como sendo formas flexionadas da mesma palavra. Alguém pode achar que o substantivo menino indica o mesmo ser que o substantivo menina, aos quais se indentifique uma acomodação gramatical?

[9] Engana novamente o Prezado Colega, pois o adjetivo se modifica para concordar com o substantivo a que se refere. E é nisto que consiste a principal diferença entre flexão e derivação, conforme informou o Prof. Bechara, no tópico acima transcrito. Substantivo algum se modifica para concordar com outro, como também ficou mostrado.

[10] Engana-se novamente o Prezado Colega, pois é muito mais incoerência ter de justificar a inexistência de flexão de gênero para mais de noventa por cento dos substantivos de qualquer lista não selecionada, recolhida em qualquer dicionário.

[11] Eis a íntegra do tópico 220, de Azeredo (2000: 111):

220.          “Devemos, entretanto, reconhecer que, para nomes derivados como sabichão, beberrão, trapalhão, francês, português, italiano, americano, cantor, professor, embaixador, verdureiro, faxineiro, existem contrapartes femininas regularmente formadas por flexão (sabichona, francesa, italiana, cantora, faxineira). Explica-se esse fato, seja porque tais nomes são potencialmente substantivos e adjetivos, seja porque contêm ‘sufixos que se flexionam’. Com efeito, os sufixos de grau –(z)ão e –(z)inho variam em gênero. O sufixo –ão apresenta no feminino o alomorfe –on(a). Isso explica a existência de formas tipicamente populares e coloquiais como mulherona, bolsona, cinturona, volona, portona, criados para recuperar o valor de ‘aumentativo’ de certo modo perdido pelas formas em –ão: mulherão, bolsão, cinturão, bolão, portão.

                O sufixo –(z)inho / -(z)inha também se comporta como unidade autônoma em relação ao gênero. É ele, e não o substantivo como um todo, que se flexiona em nomes como pontezinha e pelezinha, que os nomes ponte e pele são de tema em –e. O –a dos diminutivos portinha, ruazinha, pontezinha e pelezinha é desinência de gênero própria do sufixo. A regularidade da presença do –a nos substantivos femininos derivados por meio do sufixo aumentativo ão, e dos sufixos –ês, -or e –eiro também é uma prova de que esse –a é uma desinência de gênero anexa ao próprio sufixo (sabichona, solteirona (subst. ou adj.), francesa (subst. ou adj.), burguesa (subst. ou adj.), escritora, perdedora, lavadora, leiteira, laranjeira, sapateira, banheira).”

[12] É claro que, para dissolver funcionalmente essa dúvida, basta considerar que o nome ambivalente é substantivo quando é o termo determinado e é adjetivo quando é determinante.

[13] É óbvio, caros colegas, que os artigos, pronomes, numerais e adjetivos flexionam em gênero para concordarem com os termos determinados por eles, não carregando nenhuma diferença semântica, mas apenas a alteração de gênero gramatical.

[14] Como está evidente, concordamos com o Ilustre Lingüista e Sócio Correspondente da Academia Brasileira de Filologia quanto a sua última frase, mas, para o bem da ciência lingüística, lutaremos pelo reconhecimento de que os substantivos não flexionam em gênero, enfrentando essa tradição que não quis ver nem deixar que fosse vista uma realidade tão perfeitamente coberta que poucos se deram conta de tamanha inadequação.

[15] Talvez fosse melhor partir da teoria do Prof. John W. Martin (2000) para evitar o que o Prof. José Lemos Monteiro disse sobre a coerência e a simplicidade comoprincípios que devem nortear uma boa descrição”.

[16] O autor exemplifica e argumenta com adjetivos para defender sua tese, proposta para qualquer determinante nominal.

 

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