O ENSINO DA SEMÂNTICA

Luiz Martins Monteiro de Barros (UFF)
Terezinha da Fonseca Passos Bittencourt
(ABF e UFF)

Este trabalho, fruto de pesquisas por nós desenvolvidas na Universidade Federal Fluminense, tem por objetivo apresentar e discutir algumas idéias que podem contribuir para um ensino produtivo da nossa língua. Tais idéias encontram respaldo em princípios e pressupostos de uma teoria semântica elaborada pelo lingüista romeno Eugenio Coseriu.

No âmbito dos estudos tradicionais da linguagem, é fato notório e corriqueiro a divisão da Gramática em três disciplinas principais: Fonética (lato sensu), Morfologia e Sintaxe. A Fonética focaliza os componentes sonoros das línguas (vogais, consoantes, sílabas, etc). A Morfologia toma por objeto de análise a palavra. A Sintaxe, por sua vez, trata das relações que se estabelecem entre os termos da frase. Nesta tripartição, o exame das significações é feito de modo parcial e acidental. Trata-se, portanto, de divisão que não deixa espaço próprio e apropriado para a Semântica, o que constitui verdadeiro absurdo, uma vez que a linguagem é na sua essência uma atividade semiológica, um modus faciendi em que significado e significante mutuamente se reclamam, sendo que este tão-somente existe para a materialização e manifestação daquele.

Por seus equívocos lógicos e impropriedades lingüísticas, a divisão tradicional da Gramática tem recebido numerosas críticas e diversos reparos. Entre as modificações sugeridas, sobressai a que funde a Morfologia e a Sintaxe em uma só disciplina, denominada Morfossintaxe. Tal fusão, todavia, não resolve o problema preexistente, pois continua a considerar de modo inadequado a questão crucial das significações

Em capítulo do Curso de Lingüística Geral, em que discorre sobre os problemas resultantes da separação entre Morfologia e Sintaxe e do abandono a que foi relegada a Lexicologia, Saussure já aponta um princípio indispensável para a solução de tais problemas, espelhado nas seguintes palavras.

Somente a distinção estabelecida mais acima entre as relações sintagmáticas e as relações associativas sugere um modo de classificação que se impõe por si mesmo, o único que se pode pôr como base do sistema gramatical. (1973:158)

Na verdade, pensamos que a melhor maneira de dividir a Gramática, inserindo adequadamente em seu domínio o estudo da significação, é tomar como ponto de partida duas características essenciais do sistema lingüístico: a dupla articulação e a dupla estruturação.

Por ser duplamente articulado, todo sistema lingüístico é constituído por uma série hierárquica de unidades sígnicas (unidades providas de forma e conteúdo) e unidades fônicas (unidades que resultam da análise do significante enquanto simples componente sonoro da linguagem). As unidades fônicas são objeto de estudo da Fonética em sentido lato. As unidades sígnicas, independentemente da sua extensão e grau de complexidade, são estudadas pela Semântica e pela Morfologia. Esta focaliza o significante enquanto sinal; aquela focaliza a face inteligível do signo e as suas relações com as coisas designadas. Na análise morfológica, depreendem-se significantes que representam este ou aquele conteúdo, tomado como simples ponto de apoio. Na análise semântica, invertem-se os papéis: considera-se o conteúdo de cada signo, tomando a sua face material como ponto de referência. Assim, do ponto de vista morfológico, a expressão gatas é segmentável em três sucessivos significantes ( gat-a-s), que, do ponto de vista semântico, respectivamente representam os valores felino, gênero feminino e número plural.

As unidades sígnicas e fônicas se apresentam inter-relacionadas ou estruturadas em dois diferentes planos: o paradigmático e o sintagmático. O paradigma corresponde a um conjunto de unidades do mesmo tipo que se encontram em oposição imediata. O sintagma corresponde a uma combinação de unidades, sujeita a princípios gerais e a regras particulares de inter-relacão. Para Saussure, o sintagma é constituído por unidades coocorrentes que contraem entre si relações de dependência e a que se aplicam o princípio da linearidade temporal, decorrente da natureza acústica do significante lingüístico. Releva notar que ao plano sintagmático pertencem os fenômenos lingüísticos costumeiramente situados no domínio da Sintaxe.

Tendo em vista o que acima se expôs, é possível traçar o seguinte quadro resumitivo:

DIVISÕES FUNDAMENTAIS DA GRAMÁTICA

Fonética lato sensu Paradigmática Sintagmática
Morfologia  
Semântica  

Cumpre reiterar que no quadro acima proposto a distinção entre Fonética, Morfologia e Semântica toma por critério o princípio da dupla articulação e a natureza bifacial do signo lingüístico. Estas três disciplinas, por seu turno, igualmente possuem uma dimensão paradigmática e outra sintagmática, tendo em vista o principio da dupla estruturação. Isto que dizer que as entidades fônicas, morfológicas e semânticas devem ser vistas e analisadas nos dois diferentes planos de inter-relacionamento, sem quaisquer reservas ou restrições.

Ao contrário do que sucede nas descrições tradicionais da nossa língua, é preciso que qualquer divisão da da Gramática, independentemente daquela que sugerimos, abra um espaço claro e preciso para a Semântica, uma vez que esta trata daquilo que faz parte da essência da linguagem: a significação.

É bem verdade que os estudos semânticos não constituem tarefa simples e fácil, devido, em primeiro lugar, à própria natureza imaterial do significado. Por este motivo é que Bloomfield e seus seguidores, baseados numa concepção de linguagem essencialmente positivista, desconsideram a investigação do meaning, ainda que fazendo uso dele para a depreensão dos fonemas e morfemas nas descrições das línguas. Ademais, a falta de uma terminologia bem sedimentada e o emprego de uma conceituação ainda pouco desenvolvida criam sérios obstáculos para os estudos da significação. Mesmo assim, desde a publicação do Essai de sémantique de Michel Bréal, em 1897, alguns lingüistas, como S. Ullmann, L. Hjelmslev, L. Weisgerber, Trier, B. Pottier, A. J. Greimas, Katz e Fodor, E. Coseriu, procuraram enfrentar tais obstáculos, propondo diferentes teorias e métodos para lidar com as significações lingüísticas.

Entre as diversa teorias semânticas até hoje propostas, uma que, a nosso ver, apresenta sólida e coerente fundamentação, além de nos permitir vislumbrar uma possível aplicação no campo pedagógico, é a que foi estabelecida pelo lingüista romeno Eugenio Coseriu. Justamente com a intenção de tratar das relações significativas, Coseriu estabeleceu algumas distinções básicas, que constituem conditio sine qua non para a investigação do signo em sua face imaterial. As distinções que se devem previamente fazer são as seguintes:

Coisas e linguagem

Tal distinção, como o próprio Cosesriu reconhece, não é fácil de ser feita, em virtude da própria natureza do significado, cujo propósito se encontra, precisamente, na apreensão do mundo extralingüístico, isto é, no universo das coisas objetivas, que não se confunde com o universo essencialmente lingüístico. É este e não aquele que constitui o objeto de investigação da Semântica.

Para se distinguir o conhecimento das coisas do conhecimento das palavras, Coseriu estabelece dois conceitos fundamentais: o de zona e âmbito. A zona é o espaço em que se conhece e se emprega uma palavra como signo lingüístico. O âmbito é o espaço em que se conhece um objeto como elemento de um domínio da experiência ou da cultura.

Esses dois conceitos nos permitem compreender a chamada função evocativa da linguagem. Assim, por exemplo, uma palavra estrangeira ou um termo técnico empregados fora de seu âmbito, evocam esse mesmo âmbito. Vejamos um caso concreto: quando, na atividade lingüística, o falante de português opta por empregar hot-dog em vez de cachorro-quente, ranking em vez de classificação, paper em vez de resumo de comunicação, ele tem a intenção de evocar o contexto social, econômico, cultural, político da comunidade de fala à qual tais expressões pertencem.

Linguagem primária e metalinguagem

Essa distinção, feita já por estudiosos da Antigüidade, diz respeito ao próprio objeto de referência do signo, ou seja, a linguagem primária tem por objeto a realidade extralingüística e a metalinguagem, a realidade lingüística. A Semântica só se ocupa da primeira. Tratar, por exemplo, a vogal temática dos verbos como morfema, atribuindo-lhe um valor significativo, revela a confusão entre plano lingüístico e plano metalingüístico.

Sincronia e diacronia

Aqui se trata apenas de fazer a distinção, habitualmente estabelecida nos domínios da Fonética e da Morfologia, entre funcionamento da língua em dado momento e a sua transformação ao longo do tempo, a fim de não se confundirem os valores significativos concernentes a distintos estados lingüísticos. Assim, por exemplo, a palavra úvula já teve significado equivalente ao de uvinha; entretanto, na atual sincronia, não mais se lhe pode atribuir tal valor significativo.

Técnica do discurso e discurso repetido

As línguas, como ressalta Coseriu, são antes de tudo técnicas históricas do discurso. Todavia, as tradições lingüísticas não são apenas técnicas para falar, pois contêm também linguagem já falada, fragmentos de discursos já enunciados e que se podem outra vez utilizar, como provérbios, frases feitas, expressões idiomáticas etc., que não se podem comutar, pois aparecem sempre numa ordem fixa e invariável. Por isso, só as unidades do discurso livre podem ser estudadas pela Semântica. De fato, se tomarmos uma frase como Gato escaldado tem medo da água fria e tentarmos substituir gato por rato, por exemplo, o sentido desfaz-se inteiramente.

Arquitetura e estrutura

As línguas não são homogêneas e uniformes e, por isso, a técnica que lhes corresponde não pode ser unitária. Dizendo de outro modo, as línguas apresentam variedades determinadas pelos fatores geográfico (variedades diatópicas), sócio-cultural (variedades diastráticas) e circunstanciais (variedades diafásicas) , configurando-se o que Coseriu chama de arquitetura (a expressão foi criada pelo lingüista L. Flydal) . Os valores significativos das unidades só podem ser depreendidos na estrutura do sistema que, por seu turno, se manifesta nas diferentes línguas funcionais. Uma língua funcional é uma modalidade idiomática basicamente homogênea, correspondente a uma unidade na variedade. Trata-se de uma língua não apenas sincrônica (de determinada época), mas também sintópica (de determinado lugar), sinstrática (de determinado estrato sócio-cultural) e sinfásica (típica de determinada situação comunicativa). Vale lembrar que entre os diferentes significados que estruturam uma língua funcional há sempre oposição, ao passo que entre os diferentes significados concernentes à arquitetura idiomática há sempre diversidade. Assim, por exemplo, ébrio e cachaceiro, dinheiro e grana, rapariga e moça não estão em oposição, pois pertencem a distintas línguas funcionais e, por conseguinte, não podem ser considerados sinônimos, ou seja, pertencem à mesma arquitetura, mas a estruturas distintas.

Sistema e norma

O sistema e a norma da língua dizem respeito aos distintos níveis de formalização levados a cabo a partir do plano do discurso. No sistema, encontram-se as virtualidades significativas, na norma, as unidades consagradas pelo uso dentro de uma comunidade e, no discurso, as acepções permitidas pelos contextos. Comparem-se, por exemplo, as três frases: Viaja hoje, Viaja amanhã, Viaja sempre; nas três o significado do verbo (valor de língua) é o mesmo, não-passado, mas as acepções (valor discursivo) são distintas.

A confusão entre esses níveis conduz, no que diz respeito ao léxico, ao equívoco de se postularem casos de polissemia, onde, a rigor, se trata de variantes determinadas pelo contexto.

Relações de significação e relações de designação

Esta distinção - vinculada intimamente àquela feita anteriormente entre palavras e coisas - diz respeito à diferença entre o conteúdo lingüístico (relação de significação) e o objeto de referência extralingüístico (relação de designação), ou seja, as relações de significação dizem respeito aos vínculos estabelecidos entre os significados dos signos lingüísticos e as relações de designação, por seu turno, concernem aos vínculos entre os signos lingüísticos e a realidade a que se referem.

Somente as relações de significação são estruturáveis e, por isso, só elas constituem fato de língua; as relações de designação, por dizerem respeito aos objetos concretos da realidade, são multívocas e cambiáveis, não permitindo, portanto, a estruturação. Tome-se o seguinte exemplo, à guisa de ilustração: cigarro, cilindro cancerígeno, chupeta do diabo; trata-se de três diferentes significados para o mesmo objeto concreto da realidade (designação).

Cumpre ressaltar que todas essas distinções feitas por E. Coseriu, a título de condições prévias para o estudo do significado lingüístico, devem ser do conhecimento do pesquisador da área de Letras - e professor - e, não, necessariamente, dos alunos de 1º e 2ºgraus. A estes cabe à Escola oferecer condições para que possam ampliar e tornar mais eficaz a competência lingüística com que chegam à sala de aula. Ao professor de Português, para melhor estabelecer meios e modos de desenvolver a competência dos alunos, cabe a obrigação de refletir sobre a própria língua, de aprimorar o seu saber metalingüístico, analisando, por exemplo, os conceitos relativos à Semântica discutidos ao longo deste trabalho.

Nesse sentido, o conhecimento dos princípios de Semântica, aqui apresentados, pode auxiliar, e muito, o professor de Língua Portuguesa na preparação de suas aulas. Aliás, não se deve perder de vista, conforme dissemos acima, que a única finalidade da disciplina de Língua Portuguesa no ensino médio é ampliar o saber lingüístico do aluno, de tal modo que ele possa produzir e interpretar diferentes modalidades de textos, orais ou escritos. Para isso, muito útil ao educando será a realização de atividades como: discernir e empregar diferentes acepções permitidas pelo valor unitário de determinado signo; estabelecer distinções dentro de um mesmo campo semântico (v.g.comida/ração; astro/estrela; livro/obra; olhar/ver; falar/dizer); perceber as associações provocadas pelo emprego de palavras de origem estrangeira (v.g.sale/liquidação; out-door/cartaz; boutique/casa comercial); comparar palavras pertencentes a diferentes línguas funcionais com significados semelhantes (v.g.quebra-molas/lombada; bergamota/tangerina; idoso/coroa; ébrio/bebum); observar a ação sofrida pelos significados em virtude do tempo (v.g. Baderna=nome próprio/baderna= confusão, desorganização; regina= rainha/Regina=nome próprio); analisar o processo de criação lingüística por imagens (v.g. batata-da-perna; orelha do livro; folha-de-rosto). Enfim, essas atividades, apresentadas à guisa de sugestão, são algumas dentre as inúmeras que podem ser executadas pelos alunos, tendo por base o conhecimento metalingüístico adquirido pelo professor na área dos estudos semânticos.

Por arremate, cabe relembrar que a linguagem é um modo de agir duplamente finalístico: serve para apreender o real e para manifestá-lo. A razão de ser e modo de existir das línguas se subordinam ao propósito de, através dos significados e da designação, construir determinado sentido, que corresponde ao que o falante quer efetivamente dizer, quando num ato de enunciação se dirige a um ouvinte, presente ou ausente, real ou ideal. Por isso, qualquer estudo que considere a natureza do fenômeno lingüístico deve estar voltado sempre para tal finalidade, para a busca do sentido, sem perder de vista, como já disse Eugenio Coseriu em várias de suas obras, que “a língua existe para o falante e, não, para o lingüista”. Na verdade, ao lingüista só cabe a interminável tarefa de procurar entender e tentar explicar como os falantes, artesãos do verbo, a cada momento reinventam o Mundo com o poder poético da palavra.

 

Referências bibliográficas

BARROS, Luiz Martins Monteiro de. Princípios e métodos estruturais aplicados ao sistema verbal do português. Tese de doutoramento, Faculdade de Letras da UFRJ, 1981.

BITTENCOURT, Terezinha M. da Fonseca Passos. A criação lexical no Brasil. Cadernos da ABF. Rio de Janeiro, nº 3, 2003.

BITENCOURT, Terezinha M. da Fonseca Passos. Para o estudo das unidades sígnicas e dos processos sintagmáticos da língua portuguesa. Dissertação de Mestrado, Niterói: UFF, 1988.

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COSERIU, Eugenio. Competencia lingüística: elementos de la teoria del hablar. Madrid: Gredos, 1992.

COSERIU, Eugenio. Princípios de semântica estructural. 2ª ed. Madrid: Gredos, 1991.

COSERIU, Eugenio. Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

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SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. 5ª ed. São Paulo: Cultrix, 1973.

 

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