ANÁLISE
DO
DISCURSO
LITERÁRIO
UMA
CONTRIBUIÇÃO
À
HERMENÊUTICA
FILOLÓGICA
Carlos Sepúlveda
(UVA,
UFRJ e ABF)
1.
SOBRE A
NOÇÃO DE
DISCURSO (LITERÁRIO)
1.1- A
tradição
filológica
reserva
para
discurso
duas
abordagens:
uma, no
quadro da
cultura
clássica,
mais
especificamente no
mundo
greco-romano,
e a
outra, na
tradição das
conhecidas
dicotomias
saussurianas langue/parole.
1.2 – No
primeiro
caso, trata-se
da
tradução do
conceito de
logos,
o
logos,
heraclitiano,
tal
como foi
incorporado ao
mundo
latino,
traduzido
como ratio,
discursus e verbum,
respectivamente
em
sua
temporalidade. Ocorre, de
acordo
com a
tradição da
hermenêutica
filológica,
que
o
logos
refere-se
antes ao
verbo
legein,
cuja
significação, no
grego
clássico,
aproxima-se de
repousar, o
que
se recolhe no
repousar,
mais
próximo do
conceito de
alhqeia
(aletheia), o
desvelamento
que emerge. É
este o
sentido
que se
desvela na
sentença de
Heráclito fisis
kprqesqai filei (phusis
kritestai filei) – a
natureza
ama
esconder-se . A
racionalidade
incluída na
perspectiva
pós-socrática assume
nova
conceituação
para
verdade.
Sobre
este
tema,
considere-se a
etimologia de
leitor e
leito,
a
partir de
logos.
Ainda na
tradição
pós-socrática,
ou
pós-platônica, o
conceito de
verdade,
em Platão, é
orqoths (ortotes)
que acaba
sendo assumido
pelo
pensamento
latino
como
adequatio (adequação),
na
sentença
adequatio intelectus ad
rei
(adequar
as
imagens
mentais às
coisas).
Assim, a
opção
pela
racionalidade
filosófica
em
detrimento da
verdade
como
desvelamento,
construiu
parte
substancial da
metafísica
clássica.
Conseqüentemente,
verdade
passa a
depender
da
adequação
discursiva, das
estruturas da
retórica,
portanto, a
validade do
que é
verdadeiro
passa a
ser uma
atribuição do
discurso, do
verbo e,
em
última
instância, da
razão.
Funda-se o
império do
sentido,
restrito ao
ato
lingüistico, ao
ato de
fala, deixando
à
margem
toda
outra
disponibilidade
de
apreensão da
verdade
como
intuição,
como
verdade
não
declaratória e
não
demonstrável,
sem a
correlação
pragmática
que dela exige
a
racionalidade
clássica.
1.2- Por
conseqüência,
a
racionalidade
discursiva, assumida no
estrito
domínio da
linguagem, é a
império
aristotélico
da
lógica
formal e do
assim chamado
pensamento
científico,
por
instrumentalização do
silogismo.
1.2.1- Neste
sentido, o
discurso
literário,
ou, de
modo
mais
abrangente, o
discurso
estético, é da
ordem da
alhqeia
(aletheia)
ou seja, a
verdade
poética
já
preliminarmente
expressa na
sentença
heraclitiana
fusis kriqesqai
filei
(a
natureza
ama
esconder-se).
1.2.3 – A
verdade
poética
coloca-se,
portanto, na
condição de
diferença,
mesmo
em
Aristóteles, consolidada na
clássica
sentença na
Poética:
a
história
conta o
que
aconteceu, a
poesia
o
que
poderia
ter
acontecido,
segundo
a
verossimilhança
e a
necessidade.
Por
conseguinte,
desde o
início, o
discurso
literário se
propõe
como
um
conhecimento
em
diálogo,
em
tensão (polemos)
com
a mimesis
(mimesis)
ou a
imitatio e a
catarse,
quando o
pensamento
ainda se
dispunha
como
emergência do
Ser.
1.2.4- Em
resumo: na
análise do
discurso
literário é
necessário
levar
em
conta o
impulso desconstrutivo da
função
poética
(Jakobson)
que
desautomatiza os
signos
em
busca da
expressão
declaradamente metafórica
em
que as
palavras valem
por
si mesmas,
para
além da
língua. A
análise do
discurso
literário
implica a
concepção de
uma
língua
além de
seus
limites
expressivos
propriamente, praticamente subordinando as
demais
operações
lingüísticas
(morfossintáticas, morfológicas
ou
fonéticas) ao
imperativo da
semântica.
O
centro
mesmo da
análise do
discurso (literário)
é
seu
conteúdo
semântico,
em
primeira
instância.
1.3- No
segundo
caso, podemos
partir da
clássica
dicotomia
saussuriana langue/parole, intuída
nos estóicos e
considerada
central
para a
compreensão do
que chamamos
discurso,
em
sentido
estrutural.
1.3.1- A
oposição
langue/parole retoma o
viés da
metafísica
clássica,
isto é,
platônica,
segundo a
qual há uma
realidade
pura,
quer
dizer,
sem a
participação da
contingência
humana,
que é a
langue e
outra,
talvez
impura,
porque
derivada
justamente do
mundo-da-vida, da Lebenswelt,
imersa,
em
tempo
integral, na
experiência
humana e nas
trocas
simbólicas,
até
porque,
sem o
discurso,
não se pode
conceber a
experiência
humana. Nesse
caso, no
campo da
economia das
trocas
simbólicas, a
moeda de
troca dos
sentidos é,
propriamente, o
discurso
(parole). A
relevante
sugestão de E.
Coseriu de
incluir,
entre as
tensões da
langue e da parole a mediação do
conceito de
norma/uso,
amplia e
torna
mais
consistente esta
questão, dando
movimento
dialético e permitindo
um
trânsito
mais adequado
entre aquelas
categorias
estruturais.
1.3.2- Retomemos,
porém a
questão do
discurso
literário. Se
a
dicotomia
saussuriana considera o
discurso (parole)
como a
realização
objetiva e
territorializada da langue,
como parece
ser o
caso,
então é
possível,
partindo daí,
imaginar o
estilo
como
um
caso
particular
daquela
realização
objetiva.
Talvez
possamos
imaginar estilo
como uma
espécie de
registro
próprio
ou
como uma
espécie de
segunda
langue,
tal o
vigor de
sua
estrutura
artística. A
clássica
afirmação de que o
estilo
é o
homem
revela a possibilidade de
tal
percepção.
1.3.3 –
Estilo
é
um
fenômeno basicamente
diacrônico,
sobretudo o
estilo
literário. A
língua de
cultura,
em
sua
expressão
literária,
que é a
mais
elaborada,
como se sabe,
expressa uma
parole(discurso)
muito
próximo das
estruturas da
langue, dela se afastando
em
busca de
maior
vigor
expressivo,
por
isso, na
concepção do
discurso
literário, a
tensão
língua/linguagem
é
decisiva.
Sob
este
ponto de
vista, é
justamente a
tensão
entre as
estruturas da
língua,
em
confronto
com as
insuficiências
do
discurso (meios
expressivos) é
que
torna a
literatura o
lugar
por
excelência
dessas mesmas
tensões. O
discurso
literário é
radicalmente
paradoxal e
tenso,
justo
porque se
trata de
dar a
conhecer, de
fazer falar
(Es gibt) as potencialidades da
língua
onde o
sentido
pleno é
improvável. A
partir dessas
breves
considerações
de
ordem
teórica,
pode-se
elaborar
um
conjunto de
procedimentos
práticos
para a
análise dos
discurso
literário.
2- FUNDAMENTOS
PRÁTICOS
DO
DISCURSO
LITERÁRIO
2.1-
Para uma
análise
pertinente do
discurso
literário
devemos
ter
em
mente
qual o
propósito desta
prática. Supomos
que, no
caso, haja
preliminarmente
uma
espécie de
vontade de
compreensão
por
parte do
leitor; uma
vontade de
compreender as
relações
existentes
entre o
texto e a
conjuntura de
realidade a
que
supostamente
se refere. É
rigorosamente
esta
tensão
entre
texto e
contexto,
mediada
pela
linguagem,
que constitui
os
elementos de
racionalidade
desse
exercício.
2.2- Estamos, no
entanto, no
domínio
estético e a
compreensão do
texto
literário é
um
exercício
em
que a
dimensão
hermenêutica
não pode
ser desprezada,
conseqüentemente
a subjetividade
desempenha
importante
papel. As
vivências e as
experiências
do
leitor
são
formas de
pré-conceitos e de pré-compreensão
que se dispõem
necessariamente no
exercício da
compreensão de
um
texto.
Portanto, na
construção da
análise dos
discursos
literários há
que se
considerar,
além desses
valores
agregados,
outros
fatores
igualmente
significativos:
2.2.1- TEXTO- É
um
objeto de
linguagem,
mediado pelas
estruturas da
língua de
que depende
para constituir-se. É
claro
que falamos do
texto-objetivo,
quando o
consideramos no
âmbito da
experiência
material,
enquanto uma
coisa. Falamos de
texto-subjetivo na
proporção
em
que
este é
reconstruído
pela
operação da
leitura. O
texto
subjetivo é
que se
constitui
em
patrimônio
intangível e faz
parte da
riqueza cultural de
um
povo. É a
partir deste
acervo
subjetivo
que se pode
falar
em
cultura
literária
ou
mesmo de uma
história da
literatura,
fruto de uma
prática
hermenêutica.
2.2.2-
MEIOS
EXPRESSIONAIS – A
disponibilidade
para a adequada
compreensão do
discurso
literário
depende dos
meios
expressionais,
isto é, do
estado da
língua
em
face de
seu
processo
histórico-evolutivo.
Assim, o
conhecimento
das possibilidade e
disponibilidades
(competências)
da
língua, de
seu
estado-da-arte, é
possível
depreender
um
indicador
relevante
para a
formação da
crítica do
juízo
estético. A
gramática de uma
língua será
aqui percebida
como
disposição
para a
expressão
literária
propriamente
dita e
que tem sido
objeto, há
bastante
tempo, do
que se
convencionou
chamar de
estilística,
um
estudo
incompreensivelmente desprezado
nos
últimos
tempos.
2.2.3-
RECURSOS
EXPRESSIONAIS –Os
recursos
expressionais
são
produto da
tensão
entre as
disponibilidades
dos
meios
expressionais e a
realização (desempenho)
que deles
fazem os
produtores do
discurso
literário.
Um
exemplo
ilustrativo
desta
tensão
entre
meios e
recursos
expressionais é a
estrutura da
metáfora,
aqui
tomada,
não na
perspectiva do
desvio,
mas no
sentido do
deslocamento.
Considere-se, exemplificando, a
estrofe do
poema
de
sete
faces
de Carlos Drummond de Andrade.
Quando nasci,
um
anjo
torto
desses
que
vivem na
sombra
disse: vai, Carlos,
ser gauche
na
vida
Observe-se,
preliminarmente,
o
nome
anjo
que,
em
sua
integridade
sêmica, é concebido
por
atributos
determinantes
altamente
positivos e
afirmativos
em
nossa
cultura
cristianizada. Os sememas
que consolidam
a
estrutura
denotativa de
anjo podem
ser: [
CLARIDADE], [BELEZA],
[INOCÊNCIA],
[JUVENTUDE], [NOVIDADE].
Drummond, no
entanto,
escolhe
tensionar
o semema [ANJO]
e [SOMBRA].
O
efeito
não
poderia
ser
mais
poético do
que
efetivamente
é.
Um
anjo
declaradamente
torto e
habitante das
sombras
prenuncia,
qual
um
oráculo, o
destino deslocado de
Carlos. Percebe-se a
contrariedade
da
epifania, se tomamos
epifania
como uma
voz
que soa do
alto, uma
epi-phoné, uma
vez
que o
anjo
não anuncia do
alto,
mas das
sombras. O
leitor,
que
certamente se
viu
atirado no
surpreendente
deslocamento
pela
diferença,
todo
ele motivado
pelos
atributos
desse
anjo
estranho, é
agora, no
uso do
patronímico
Carlos, convocado a uma
operação de
identidade,
uma
vez
que Carlos
nomeia o
próprio
autor do
poema.
Repare-se
que há
um
jogo
muito
bem engendrado no
deslocamento
do
sentido da
palavra
anjo e
na
identidade de
sentido do
próprio
poeta: Carlos é
Drummond. O
sujeito do
enunciado é o
sujeito da
enunciação.
Porém
não há o
talvez
suposto
ou desejado
fim da
tensão,
muito ao
contrário,
assiste-se,
agudamente, à
cena
aberta da
contradição
desse
anjo,
também
prenunciado
em Gregório de
Matos:
anjo
que
me
tenta
e
não
me
guarda,
no belíssimo
soneto a
Dona Ângela.
2.2.4 -
POÉTICA DO
TEXTO - Se
efetivamente
desejamos
empreender uma
análise do
discurso
literário e
se,
como vimos, o
discurso é, de
algum
modo, uma
realização
particular da
langue (um
desempenho),
não se pode
deixar de
lado os
usos
que constituem
a
norma
dessa
realização
particular, na
direção
proposta
por Coseriu.
Neste
sentido,
devemos
nos
ater à
questão da
subjetividade. A
poética do
texto, no
sentido do
uso, e a
poética do
autor (de
um
autor)
no
sentido da
norma,
são os
propósitos
finais de uma
análise do
discurso
literário.
Definir a
poética de
Drummond
ou de
Machado de
Assis,
ou a
poética do
romantismo, do
modernismo,
são
operações
homólogas, sendo
que ambas
dependem da
poética
do
texto.
3-
ANÁLISE DO
DISCURSO
LITERÁRIO
E
POÉTICA DO
TEXTO
3.1-
Nossa
proposta
agora se
encaminha
para a
elaboração de
uma
metodologia
que permite
uma
abordagem
relativamente
capaz de
explicitar a
poética de
um
texto,
obviamente assumido
como
literatura.
3.2-
Já
consideramos implicitamente
que a
categoria
literário,
atribuída a
um
determinado
texto,
só é
possível a
partir da
tensão
entre
meios e
recursos
expressionais. Deve o
analista, no
entanto,
dispor
rigorosamente
de
sólidos
conhecimentos
do
estado da
língua
em
que foi
registrado do
texto,
porque é a
gramática desta
língua,
em
tensão
com a
gramática do
texto, a
condição de
possibilidade
para se
chegar à
linguagem,
isto é,
para se
chegar ao
vigor e à
força do
silêncio, do
não-dito,
que é
sempre e
afinal de
contas
dito
literariamente.
3.3- Estamos,
portanto,
atravessando
um
campo minado
onde a
cautela e a
precisão
com
que se pode
caminhar é
decisiva.
Desde
já,
estabeleçamos
que, na
leitura do
discurso
literário, a
totalidade é
tudo. Explico:
analisar o
discurso
literário
pressupõe
um
círculo
hermenêutico
no
qual o
analista
parte,
indiferentemente,
do
todo
para a
parte
ou da
parte
para o
todo,
desde
que
este
intercâmbio
jamais se
interrompa.
Por
conseguinte,
antes
mesmo do
domínio
específico dos
meios e
recursos
expressionais, o
analista deve
ler
segundo duas
regras básicas
pensar
duplo e
ler os
vazios
do
texto.
No
fundo,
são
estratégias de
operacionalidade do
círculo
hermenêutico.
3.3.1-
Pensar
duplo.
Desde a
clássica
dicotomia
aristotélica
entre
verdade
poética e
verdade
histórica, a
verossimilhança
é uma das
mais
consistentes
intuições da
Teoria
Literária.
Sabemos,
outrossim,
que a
facticidade do
que
poderia
ter acontecido
não é
mais
próximo do
que
aquilo
que
efetivamente
aconteceu.
Aparentemente,
a
realidade do acontecido
supõe a possibilidade do
que
poderia
ter acontecido,
tal
como o
filósofo imaginou
em
sua
metafísica do
ato e
potência. Há
que se
considerar,
também,
que a
tensão
entre a
cena do
que aconteceu
e a
outra
cena do
não
acontecido, o
não
explícito, é
que
funda o
vigor do poético.
Sustento
que esta
operação é
eminentemente
filológica,
como é, ao
mesmo
tempo, uma
hermenêutica,
portanto, uma
hermenêutica
filológica. Tomemos,
exemplarmente,
a
seguinte
situação:
em
meados do
século XVI, o
poeta e
romancista
elizabetano, Thomas Nashe, resolveu
traduzir,
para o
inglês, a famosíssima
Ballade des Dames de François Villon.
Em
dado
momento, teve
de
transpor o
verso
francês: La
clarté tombe des cheveux d’Hélène. A
solução
por
ele encontrada
foi
relativamente
óbvia,
quase
literal:
Brightness falls from the hair. No
entanto,
por
artimanhas
destes
pequenos
demônios
que assombram
o
mundo dos
revisores, o
impressor
não imprimiu o
h de hair, o
que
possibilitou
um dos
mais
belos
versos da
língua
inglesa: Brightness falls from the air.
3.3.2-
Em
que esta
co-autoria
imprevista
contribuiu
para o
encantamento
de
tantos
leitores e o
que tem
isto a
ver
com o
tema
pensar
duplo?
Pensemos na
cena da
luz
tombar
ou
cair dos
cabelos de
Helena,
certamente de
Tróia. No
original,
explicitamente
Helena. Na
tradução
original, a
luz
tomba
ou cai
apenas dos
cabelos.
Mas, na
forma
em
que está
traduzida, a
luz
tomba (cai) do
ar.
Pensamos numa
segunda
cena, a
luz
vir caindo, magicamente,
de uma
abstração
aérea, e
não dos
cabelos de
Helena de
Tróia. A sonoridade obtida
pela
elisão do h
aspirado, transformado
em air,
diluindo a
oposição
hair/air,
nos obriga a
pensar numa
segunda
cena, da
luz
que cai
mansamente do
ar. O
expressivo
falls from the air permite uma
elocução
sem bloqueio
que o h
aspirado sugere, fazendo
cair
mansamente,
sem o
impedimento do
velar aspirado, de
modo
que vemos a
luz caindo,
suavemente, do
ar, e
não o
duro
falls from the hair.
Ainda
mais: falls
sugere o
substantivo
outono,
que é
quando caem as
folhas.
Quisera
me ocorresse
tal
desleixo
tipográfico.
3.3.3- LER OS
VAZIOS - O
discurso
literário
evoca, con-voca e pro-voca e
isto
quer
dizer
reconstrução
dos
referentes.
Ler os
vazios de
um
texto é
ser con- vocado
para a
tarefa da
efetivação da
palavra na
história (Wirkungsgeschichte),
isto é,
recuperar o
vigor
expressivo da
tradição e
ter o
sentido
re-atualizado. Daí a
clássica
percepção de
que
originalidade
não deve
ter a
conotação
que os
românticos pretenderam, no
sentido de
novo,
nunca-antes-realizado,
mas
sim de
origo,
origem.
Ser
original
significa, do
ponto de
vista de uma
hermenêutica
filológica,
ser
fiel às
origens. Na
prática, a
análise de
um
discurso
literário
encaminha-se
para a
reconstrução
dos
referentes, o
que significa
ler os
vazios do
texto.
3.3.3.1-
Exemplarmente,
pensemos no polêmico
poema de
Drummond:
No
meio do
caminho
tinha uma
pedra
tinha uma
pedra no
meio do
caminho
tinha uma
pedra.
Não é
preciso
ir
muito
longe
para percebermos a
convocação dos
versos de
Dante
que abrem a
Commedia
Nel mezzo del camin de la nostra vita
Mi ritrovai
per
una
selva oscura
Che la dirita
via éra smarita.
A
evocação do
meio do
caminho
reconstrói o
referente de
fundo
existencial
em
ambos os
poetas,
mas os
fundamentos
são
diferentes.
Em Dante, a
viagem ao
inferno
inaugura uma
espécie de
nemesis dele
mesmo,
que é o
herói do
poema;
já
em Drummond, o
meio do
caminho
não é o
meio
para o
caminho,
muito
menos a
caminho do
meio,
mas
singelamente o
conteúdo
trágico do
gauche, vaticinado no
poema de
sete
faces.
3.3.3.2- Pensemos
agora no
poeta
alemão, do settecento,
Angelus Silesius
que,
farto das
metáforas
“floris”,
em
especial a
rosa,
desde o
roman de la rose,
que se
espargiram
pela
imagística da
poesia
ocidental, e
incapaz de
encontrar
um
solução
mais
criativa,
resolveu
apelar
para a desconstrução do
referente,
investindo
decisivamente
contra o
nome da
rosa e, numa
feroz
irreverência
contra aquela
exaustão,
colige
estes
versos
nitidamente
barrocos:
Die Rose ist ohne warum: Sie blühet weil Sie blühet.
Mas
nem
sempre a
convocação da
metáfora é uma
desconstrução.
Em Rainer
Maria Rilke encontramos a
idéia de
plantar numa
perspectiva
mais
provocativa e,
certamente,
mais
bela:
Vor allem: pflänze mich nicht im deine Herz/ Ich wüchse zu
schnell.
3.3.3.3- De todo modo, a análise do discurso
literário pressupõe uma cultura literária, no sentido de que as competências do
leitor são construídas cumulativamente, num determinado processo temporal. Por
esta razão, o prazer - ler como exercício erótico de um desejo - é fundamental
para a construção dos referentes.
Ilustremos
com
conto de Julio
Cortázar, La continuidad de los
parques,
apresentado na
próxima
página.
3.3.3.5- A
leitura
atenta deste
texto
pressupõe a
reconstrução
dos
referentes
literários da
retórica
romântica,
pois
que é
todo
ele
um
jogo
sutil de
paródia e uma
denúncia da
ingenuidade do
leitor
burguês.
Nota-se
especialmente
que a
personagem-discurso é
um
leitor
burguês,
com as
marcas
sociais do
ócio/negócio,
bem situado na
vida.
Após a
jornada do
negócio,
dedica-se a
um
ritual,
digamos,
não
produtivo de
seu
dia: a
leitura de
um
romance
romântico,
ou
melhor, às
últimas
linhas de
um
romance de
intrigas.
Surpreendentemente,
no
entanto,
este
mesmo
leitor é
assassinado
por
fazer
parte do
clássico
triângulo
amoroso,
mesmo
sem o
saber,
ou
exatamente
por
não sabê-lo.
Eis
um
exemplo
claro da
leitura dos
vazios e da
reconstrução
dos
referentes no
discurso
literário.