Fundamentos Clássicos da Língua portuguesa

Amós Coêlho da Silva (ABF, UERJ e UGF)

 

O latim é um ramo indo-europeu, falado na região do Lácio e compreende um período literário, que se subdivide em arcaico e clássico. A fíbula prenestina, encontrada em 1871 (MELLO, 1975: 72), documenta um latim arcaico e bem distante[1] do sermo urbanus, como os romanos chamavam o latim clássico de Cícero, Vergílio, Horácio et alii, em oposição ao sermo uulgaris, latim vulgar.

O latim vulgar era a língua falada inicialmente pela classe social desfavorecida, isto é, os plebeus e depois pela classe média no fim do Império Romano na România, um conjunto de dominação militar dos romanos, ou seja, o Império Romano. É desta modalidade de língua que se desdobram o português, o italiano, o espanhol, o catalão (que sofre a superposição do espanhol), o francês, o provençal (que vem dando espaço ao francês), o romeno, o rético ou ladino, o sardo e o desaparecido dálmata.

Do latim vulgar temos uma concepção a partir de inscrições, como os graffiti (escritos a carvão nas paredes de Pompéia), ou ainda das comédias de Plauto, do Satyricon de Petrônio, da narrativa Peregrinatio Aetheriae (ou Egeriae) ad loca sancta, Viagem de Egéria pelas terras santas, do Apendix Probi, além de depoimentos dos múltiplos gramáticos romanos.

Todas as inscriptiones orbis Romani, que testemunham as modificações do latim se transformando nas neolotinas ou novilatinas, ou ainda nas línguas românicas, estão reunidas no Corpus Inscriptionum Latinarum.

 

Latim Clássico

Eram características do latim clássico:

-amplo flexionismo nominal e verbal: portanto, falta de determinantes, como

artigos e pouco uso de outros, como os pronomes possessivos; moderado uso de palavras de relação (preposições);

-certa liberdade relativa de colocação de palavras na frase, predominando o que se chama ordem inversa (ao português).

Era o latim clássico uma expressão sintética da linguagem, se a cotejarmos com o português. Na famosa pergunta de Cícero (início da primeira Catilinária) a Catilina, Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia?, temos sete palavras, relacionadas pela concordância gramatical e pela regência, que, se traduzidas palavra após palavra, temos quem (pronome interrogativo), que; ad, a, até (preposição); finem, fim, limite; sese, se (pronome reflexivo); effrenata, desenfreada; iactabit, lançará; audacia, audácia portanto, Que até limite se desenfreada lançará audácia? ordem inversa (ao português) e omissão do artigo e do possessivo tua Mas traduzir, do latim traducere ou transducere, é conduzir para além, para outro lado, para o lado de . Daí, Até que limite se lançará a tua audácia desenfreada? (contando o português com nove palavras na tradução).

Em Ovídio, (Metamorfoses, Livro VII, 20-1): Video meliora proboque,/ Deteriora sequor, temos video, vejo; meliora, coisas melhores; probo, aprovo; que, conjunção e; deteriora, coisas piores; sequor, sigo. Palavra por palavra resultaria em: Vejo as coisas boas aprovo e as piores sigo – falta objeto direto para aprovo, que poderia ser uma forma de pronome que em português seria as; falta uma conjunção mas, embutida no contexto; síntese da palavra coisas no adjetivo de forma neutra meliora e deteriora Compreendido isto, traduziríamos Vejo as coisas boas e as aprovo, mas sigo as piores.

Em Horácio, (Epístolas, Livro I, 11,27), Caelum, non animum mutant qui trans mare currunt, temos caelum, o céu; non, não; animum, o espírito; mutant, mudam; qui nominativo plural, pois o verbo é indicativo disso – os que; trans, além de – rege o acusativo mare, além do mar; currunt, correm; por conseguinte, O céu, não o espírito mudam os que para além do mar correm. O português omite o verbo depois de enunciada a primeira oração num período composto de duas orações; o latim, ao contrário, o omite antes, se houver uma oração que o explicite depois; por isso, devido à sua ordem inversa, leia-se: mudam o céu, não o espírito, os que correm para além do mar. Uma tradução mais estilizada seria: Mudam os céus, não o espírito, aqueles que percorrem além dos mares.

 

Latim Vulgar

O latim popular tendia para construções analíticas. Muito cedo aplicou uma preposição para a expressão clássica do genitivo Petri (=de Pedro), formando De Petro, eliminando a flexão casual denominada genitivo e, no caso do português, o de passou a significar posse.

Substituiu as formas verbais simples por locuções: amabo por amare habeo> amar hei> amarei (nosso atual futuro do presente do indicativo)...

O pronome demonstrativo passou a funcionar como artigo illu(m), illa(m), illos, illas > lo, la, los, las > o, a, os, as.

No vocabulário, manteve uma parte comum com a língua clássica: pater, filius, panis, canis, etc.; mas privilegiou focus por ignis, cattus por felis, minacia por minae, resultando em português fogo, gato e ameaça

O diminutivo perdeu a sua significação como grau e, por se constituírem em proparoxítonas, sofreram deslocamento do acento, o que provocou queda de fonema: ovic(u)la por ovis, apic(u)la por apis, transformando-se em ovelha e abelha

Sistematizemos, pois, algumas características do latim vulgar ou popular:

1) na fonologia

-redução dos ditongos e dos hiatos a uma única vogal:

aurum> orum (ouro)

praeda> preda (despojos de guerra)

Na evolução para o português, houve a passagem de au a ou, mas ocorreu também a sua reintrodução, como causa e coisa (cousa em Portugal).

-a queda de consoante intervocálica deu margem a um ditongo au: malu > mau.

-obscurecimento de certos sons finais:

est > es                                      amaverunt > amaverun

Por sua discrição na prolação, desapareceu este “t”. Por analogia, acontece o mesmo com outras expressões: post > pos. Há queda do e: debere > dever; também em mare, labore, dece...

O acusativo singular clássico, que era assinalado pela nasal, desapareceu. Por analogia, palavras, como decem> dece, depois dez, também o perdeu.

Também houve desnasalização em: ansa > asa; mensa > mesa

-tendência para a paroxítona:

apicula > apicla > abelha         dominus (minus) > domnus

calidus (lidus) > caldus       cathedra (thedra) > cathédra

integrum (íntegrum) > ingrum

-perda da aspiração representada em latim pelo h: homo> omo; habere> abere

-assimilação: persicum> pessicum; ipse> isse

-prótese de um /i/ antes do grupo consonantal ST, SP e SC, representado pela grafia e:

stare > istare (estar)                 spiritus > ispiritus (espírito)

stella > istrela (estrela)    *scalata > iscada (escada)

Por conseguinte, quaisquer empréstimos com essa estrutura fônica, como o do gr. schole, vai gerar a prótese, representada ortograficamente com e: escola O que significa que uma estrutura fônica latina se impõe como continuidade até os presentes dias. Por exemplo, a vogal como centro de sílaba

 

Tendência fonética ou correspondência fonética

O nosso vocabulário se compõe historicamente do seguinte modo:

-do substrato (=povos vencidos ou dominados pelos soldados romanos) da România Ibérica, ou melhor, da Península Ibérica, onde se deu a formação do português, espanhol e catalão. O substrato ibérico é composto de palavras ibéricas, ou pelas pré-românicas, como baía, barro e esquerdo; de palavras célticas, como gato, cerveja, de palavras gregas, como esmeril, guitarra, galé e de palavras fenícias, como mata, malha etc.

-de um elemento latino, propriamente dito, como os inúmeros exemplos citados acima e mais adiante na evolução do latim ao português.

-de um superstrato (povos vencedores dos soldados romanos) da România, como o fato de os germânicos realizarem as invasões bárbaras (séc.V d.C.), vencerem o seu antigo opressor, os romanos, mas terminarem abrindo mão do seu idioma e adotarem o latim. Embora tivessem adotado o latim como idioma deles, marcaram a sua presença com inúmeros germanismos, como a adoção no romance ou romanço ibérico dos nomes germânicos dos pontos cardeais. O elemento árabe, outro dominador da Península Ibérica, se fez presente a partir do século VIII e desses arabismos provemos o nosso dicionário português. São exemplos: algodão, alface, alfazema, álcool, alfafa, alcachofra, algema, alicate, alfaiate, álcool etc.

Há uma constante tendência nas mudanças das formas das palavras latinas impostas pelo romano vencedor. Por exemplo, a desnasalização em sinu > senu > seo > seio; arena > area > areia; frenu > freo > freio; a crase em lana > lãa > , pede > pee > , nudu > nuu > nu, videre > veer > ver, sede > see > ; a queda das sonoras intervocálicas em gradu > grau, nodu > noo > . Desde a influência positivista do século XIX, se passou a denominar essas mudanças de evolução e as suas causas seriam provenientes de leis fonéticas. Modernamente, tais termos (evolução, família de línguas...) continuam sendo empregados, mas com restrições. Há de se observar que existe uma tendência fonética ou correspondência fonética entre lacu > lago, pela regularidade das ocorrências dos fatos lingüísticos.

Se não tivesse acontecido a intervenção de escritores, principalmente em relação àqueles que tinham consciência da filiação latina do português, não teríamos um vocabulário tão rico nos nossos dias além do que isso testemunha a importância da escrita para os povos civilizados em relação à língua oral -, porque no processo histórico de evolução do latim para o português no restariam aqueles étimos do caso lexicogênico, como inteiro, trevas, cadeira – mencionados acima Não reaproveitaríamos o termo íntegro, como primitiva de integralizar, desintegrar, integrante etc.; assim, desconheceríamos tenebroso, tenebrião etc.; bem como, não disporíamos de catedrático, como derivada de cátedra etc. Não teríamos também conhecimento de formas derivadas no nosso vernáculo do Latim Literário: domus, equus, bellum, ludus – as quais não circulavam e foram substituídas por outras preferências no latim vulgar. Assim sendo, não teríamos domicílio, doméstico, domar etc.; eqüino, equitação, etc.; bélico, belonave, rebelar, debelar etc.; lúdico e ludo.

E mais: não teríamos a retomada ou recondução ao modelo latino de: abundância (em latim: abundantia) em lugar da forma histórica avondança, estimar (em latim: aestimare) pela forma histórica esmar; formoso (em latim: formosus) pela forma histórica fremoso; martírio (do grego ‘martýrion’ pelo latim: martyrium, ii) ao invés de marteiro. A forma olvidar resulta de uma forma divergente *olbidar > olvidar (teria vindo do espanhol para o português?) (em latim: *oblitare, um freqüentativo de oblivisci).

E note que os escritores buscaram o parâmetro de adaptação para o português no próprio Latim Vulgar, ou seja, aquelas estruturações silábicas que foram consagradas durante a implantação do latim conquistador. Ou seja, os nomes portugueses em –a, -o, -e (lua < luna; lobo < lupu; mar {no plural, recuperamos a vogal temática} < mare), átonos finais, resultam da redução das cinco declinações a três. Donde se conclui que o estudo do Latim Clássico e do Latim Vulgar representa os fundamentos de quantos se intitularem professores de Letras, ou seja, Português e Literaturas da Língua Portuguesa

Como aceitar que um profissional desta natureza não saiba discernir esses aspectos históricos do nosso idioma?

 

2 ) na morfologia

-redução das cinco declinações do latim clássico a três, por causa de semelhanças ou confusão:

dies,-es > dia,-ae. Os nomes da quinta declinação passaram quase todos para a primeira e, como facies,-ei > face, alguns para a terceira

fructus,-us > fructus,-i. Os nomes da quarta passaram para a segunda

-redução dos casos: por causa do uso de preposições e ordem direta (=posição dos termos na oração para indicar a função sintática, como a indicação do sujeito e objeto direto em O lobo viu o cordeiro.)

-eliminação dos neutros, transformando-os em palavras masculinas no singular (vinum> vinus; templum> templus); no plural, transformam-se em femininas (folha: no plural era folia, mas assumiu a forma de genitivo foliae: da primeira declinação)

-substituição de formas sintéticas por analíticas: certior (=mais certo do que) > plus ou magis certus; justissimus > multum justus

- uso dos pronomes ille, illa e do numeral unus,-a, -um como artigo:ille homo, illa domus, unum templum

- redução de 4 para 3 conjugações e confusão entre as conjugações originais: ridere > *ridire; (sápere) > *sapere

-formação analógica de alguns infinitivos irregulares: esse> *essere; posse > *potere; velle > *volere

-verbos depoentes passam a ativos: sequor> *sequo; irascor> *irasco

-criação de locução verbal: amare habebam; audire habebam / amare habeo; debere habeo / amatus sum; auditus sum. O que propiciou a criação do futuro do presente indicativo e futuro do pretérito indicativo.

amare habeo > amare haio > amare hai > amarei

amare habebam > amare aea > amare ea > amaria

 

3 ) na sintaxe

- construções analíticas: credo quod terra est rotunda por credo terram esse rotundam

-uso abundante de preposição: dedi ad patrem por dedi patri; liber de Pedro por Liber Petri

-emprego da ordem direta

Havia uma construção analítica que empregava a preposição de mais ablativo: de summis arcibus, das alturas das cidadelas, paralelamente à clássica expressão vergiliana: ab arce summa, vindo do alto da cidadela Sílvio Elia observa que o papel de expressar o partitivo competia ao genitivo, mas aquela outra, formada da preposição de mais genitivo predominou no lat. vlg. (ELIA, 1979: 240). Exemplifica em seguida uma inovação do próprio lat. vlg., criando uma regência para um tipo de objeto direto: bibere de aqua por bibere aquam.

 

4) no vocabulário

-preferência por palavras compostas, derivadas ou expressões perifrásticas: depost> depois (provém de de + post); jam magis (ao invés do clássico nunquam).

-abandono de algumas palavras devido ao seu significado particular: caballus (por equus); aprendere (por discere); jocus (por ludus); bucca (por os); focus (por ignis); casa (por domus); grandis (por magno); totus (por omnis); campus (por ager); bellus (por pulcher); bibere (por potare); manducare (por edere) (COUTINHO, 1969: 32).

Essas significações especiais eram episódios históricos como os dois exemplos que se seguem. Com o termo iecur, que não passou às línguas românicas (ELIA, 1979: 244), se designava o fígado em latim. O termo fígado surgiu da simplificação de um termo culinário iecur ficatum e que corresponderia ao que o Professor Sílvio Elia, neste mesmo passo, denominou fígado enfigado”, ou seja, fígado de pato acompanhado com o fruto figo. Para cavalo, havia em latim caballus e equus. Como se o primeiro, animal de carga e de lavoura, é que prevaleceu e isso se deu porque o segundo equus era um termo nobre e de custo elevado.

O Appendix Probi é uma lista - organizada evidentemente por um professor para uso dos seus alunos com duzentas e vinte e sete correções (SILVA NETO, 1946: 31-2). Foi encontrado na gramática de Valério Probo (séc. I d.C.). Quando o Appendix afirma que veclus está errado e o certo é vetulus (Vetulus non veclus), nos dá os passos da evolução de velho < veclu < vetlu < vetulus. Donde, o exemplo de Sílvio Elia: rotula . rotla > rocla > rolha Note-se a rejeição às proparoxítonas: vetulus (tulus) e rotula (tula). Há também a preferência pelo diminutivo, como fica constatado em oricla (auricula) e outros diminutivos.

Em noscum por nobiscum (Nobiscum non noscum), a confusão entre ablativo e acusativo sob a regência de cum. Em português, ocorrerá esquecimento etimológico e acrescentaremos a preposição com: conosco. É o Appendix Probi considerado a mais importante das fontes pelas insinuações gramaticais.

O romanço lusitânico ou galego-português, que, até o século XII, o português e o galego constituíam uma língua comum, com poucas variações dialetais (JOTA, s.v. Galego), se firmou como uma nova língua bem antes talvez da região se tornar um reino independente no século XII. Esse período é denominado protoportuguês, cujo elemento proto indica uma fase histórica de documentação escassa Por causa da conquista árabe desde o século VIII, houve uma convivência bilíngüe, denominada pelos invasores árabes ou mouros de aljamia Historicamente, a nova língua é um ramo do latim coloquial (para evitarmos a expressão latim vulgar, como recomendam os filólogos). Esse latim ibérico é que há de se tornar um romanço, a primeira forma da língua portuguesa Sob domínio dos romanos no século V, a Ibéria experimentou a pressão militar de antigos invasores bárbaros: visigodos, alanos, suevos e vândalos. O termo romance ou romanço é derivado do latim da Idade Média romancium, expressão com a qual se designavam as novas linguagens. Os romances da península Ibérica são o português, o castelhano ou espanhol e o catalão.

 

Desinência

Segmento fônico como forma de terminação de uma palavra para expressar no flexionismo nominal (=nome, por extensão: artigo, numeral e pronome) gênero e número e no verbal, cumulativamente, número-pessoal e modo-temporal.

À parte, dessas considerações mórficas ficarão as heteronímias, isto é, as expressões supletivas, que, ao invés de uma flexão mórfica da palavra, exprimem-se categorias gramaticais pela forma vocabular, ou seja, usam-se outros vocábulos, como:

-pessoa gramatical nos pronomes (e até em advérbios): a exemplo disso, eu, para a primeira, tu, para a segunda, e para a terceira pessoa, a criação românica, pois no latim não havia a terceira pessoa pronominal, e sim o freqüente emprego de ille, illa, illud para esta indicação gramatical, ele.

-casos reto e oblíquo: ex.: eu-me-mim.

-categoria de número: eu/nós, por exemplo.

-algumas indicações de gênero do substantivo, assim como homem-mulher; bode-cabra..

-nas anomalias verbais, com em vários verbos: vai-ia-foi; és-sois etc.

O verbo esse, na latinidade clássica, ainda conserva o sufixo arcaico –se, que nos demais verbos se apresenta com rotacismo –se >–re: amare, delEre, agere e audIre. Sincronicamente, temas do verbo esse do Infectum resultam nas formas s-, es- / er- em oposição ao perfectum fU- / fu..

Na passagem para o português, ocorreram formas supletivas, provenientes dos verbos sedEre, sentar, por isso, o flexionismo vernáculo ficou sendo:

s-, so-, sa-: sou, somos, sois, são.

e-, er-: és, é, era..

se-: se..., ser, sendo, sido (alternância de e > i); sej- (lat. sed-), palatalizado no pres. do subj.: sedeam (de > /ž/) > seja ...

Também formas supletivas no português na evolução de ire. A forma fU- / fu.. pertence ao verbo esse e continua no verbo ir: fui ( alternância de o > u), foi...; fora..; fosse...; for...

Além disso, ire passando a ir, incorporou formas de vadere, marchar, dirigir-se. Por isso, temos em português a forma va- no presente subjuntivo: , s, , vamos, vades, o. No presente indicativo também: vou, vais, vai, vamos, oa primeira do plural pode ser também imos (BECHARA, 1999: 273) e a segunda do plural é ides.

Expressão casual latina por desinências

O latim da época histórica possuía seis casos. O termo caso, de cado, é uma tradução do grego ptw'si", ptôsis, queda; é palavra derivada do verbo grego cair, pivptein. Assim, se explica a denominação caso reto, casus rectus, ptw'si" ojrqhv.

Quadro sinótico das declinações:

Caso

Primeira

Segunda

Terceira

Quarta

Quinta

 

Sing. Pl.

Sing.   Pl.

Sing.   Pl.  

Sing.   Pl.

Sing. Pl.

N

a   ae

us  er  ir  um  i  a

Æ   s   es   a

us   us   ua

es   es

V

a   ae

e  er  ir  um  i  a

Æ   s   es   a

us   us   ua

es   es

A

am   as

   um   os   a

em   es   a

um   us   ua

em   es

G

ae   arum

   i   orum

is   um

us   uum

ei   erum

D

ae   is

   o   is

i   ibus

ui   ibus

ei   ebus

A

a   is

   o   is

e   ibus

u   ibus

e   ebus

 

Notas:

1)tendo em vista que

-N. e V sing. ou pl. são iguais, a não ser a única situação, o sing. da 2ª. (us-/e).

-em qualquer declinação a marca distintiva de Ac. é –m /-s

-mesmo o G. sendo ímpar em cada declinação, no plural há a constante um

-D. sing. era –i: ditongou na 1ª, desapareceu na 2a e se fixou nas outras

-Ab. sing. a desinência, em geral, era –d, o tema consonantal era –e, depois, com a que do –d, passou a identificar-se com v.t. de cada declinação

-D. e Ab. pl. são iguais. Para 1a e 2a –is, para as outras –bus.

 

Características mórficas das declinações

Caixa de texto: Singular                                   Plural
N             -s, -m, Æ                 N            -i,            -s             a
V             = ao N                                     V            = ao N                     a
Ac           -m                                          Ac          -s                            a
G             -i, -is, -s                   G            -rum,       -um
D                -i                                          D/Ab       -is,          -bus
Ab    (-d), -e

 

 

 

 

Comentários

1)O –s é a desinência geral de N.sing., mas os neutros da 2ª. se opõem aos substantivos femininos e masculinos desta mesma declinação. Embora tenhamos a N.sing. em oposição ao Ab. sing. A e este a ‘“L’ a est ancien”(ERNOUT, A, Morphologie Historique du Latin, p.18), é mais didático admitir o morfema Æ, isto é, a ausência, em concordância com Ernesto Faria (1958)[2]. O vocativo da 2ª. sofreu alternância vocálica de o > e; é que, devido à possível forma final –ro, sendo o r de uma assimilação do s – o verdadeiro nominativo, houve queda do tema da 2ª o (assim, -ros > -sr > -rr > -er: de là ombr. ager lat ager de *agros, cf. o gr. ajgro", Ibidem, p.26).

2)O acusativo neutro apresenta desinência no singular da 2ª declinação –m, nas demais é Æ; no plural {não foi relacionada no quadro resumidor} apenas uma desinência -a(cf. latinismos em portuguêsper capita”, verba).

3) A letra e, nos casos genitivo e dativo singular e nominativo e vocativo plural da primeira declinação, e casos ablativo singular, nominativo, vocativo e acusativo plural da terceira, exceto a sua presença na 5ª, é a representação do arcaico –i(ou permanência do e, como vemos na evolução de rex,regis: ablativo instrumental reg-e, mas o locativo era *reg-i, o que não invalida a perspectiva didática acima).

4) O ablativo –d, que havia na 1a, 2a e 4a declinações, bem como nos temas sonânticos e terminou desapareceu e passou a ocorrer a indicação da vogal temática da declinação (1ª em –a; 2ª em –o; 3ª em -e; 4ª em –u; 5ª emE) como elemento desinencial de ablativo, como era nos consonânticos da 3a e nos temas da 5a (estes grupos não tinham o –d).

Varrão (116 a 26 aC.) diz que o sexto caso (ablativo) é por onde se deveria iniciar a declinação de uma palavra, pois qui est proprius Latinus, que é um caso peculiar à língua latina Na época de Varrão, não havia o nome ablativo. Os gramáticos romanos, porém, insistiram em declinar a partir do genitivo, imitando os gramáticos gregos.

5) Lembre-se de que o tema latino é depreendido por supressão do elemento desinencial, seja verbo ou nome. Em português, é que é por adição: radical mais vogal temática.

Note-se a economia para a nossa memória, contida nesta síntese. Foi por isso mesmo que o latim, fluindo como linguagem corrente, passou de cinco para três declinações; de quatro para três conjugações. Aboliu cinco casos, resumindo no caso lexicogênico, o acusativo. Em português, no singular – a nasal, representada pela letra m e comum a todas as declinações, desapareceu e gerou o morfema zero, (Æ) e, no plural, dada a sobrevivência do s comum a todas as declinações, herdamos o morfema aditivo s.

 

Acusativo singular latino

Português

rosam

rosa

victoriam

vitória

mundum

mundo

verbum

verbo

florem

flor

dentem

dente

hominem

homem (uma das raras palavras que conserva o acusativo)

solem

sol

Obs.: No plural, da terceira declinação persiste o e que seria uma vogal temática em latim.

Ex.: flores, meles (em Portugal, o plural de mel é meles); mares.

vestígio dos outros casos. De nominativo, o substantivo Deus; os pronomes, sujeito de oração: ego, tu, ille, nos, uos etc. De dativo: mihi, para mim.

Nos nomes compostos, formados no próprio latim, há o genitivo, no primeiro elemento: terraemotu > terremoto; aquaeductu > aqueduto; jurisprudentia > jurisprudência.

 

Outras heranças gramaticais do latim

1)Comparem-se as desinências pessoais latinas e as portuguesas:

Português

Latim

Desinências latinas

am O / amava ø

am O / amaba M

-o / -m

ama S

ama S

-s

ama ø

ama T

-t

ama MOS

ama MUS

-mus

ama IS

ama TIS

-tis

ama M

ama NT

-nt

 

2) As dezoito preposições portuguesas são oriundas do latim, do seguinte modo:

a)de uma única preposição latina, com modificações formais ou não, processadas ao longo do tempo:

a < ad

ante < ante

com < cum

contra < contra

de < de

em < in

entre < inter

per < per

por < *por (pro)

sem < sine

sob < sub (sendo que sob é uma reconstituição erudita) (COUTINHO, 1969: 269).

sobre < super

trás < trans

 

 

b) aglutinações que se processaram no latim vulgar:

após < ad-post

até < ad tene

desde < de-ex-de

para < per + ad

La déclinaison indo-européenne comportait huit cas: nominatif, vocatif, accusatic, génitif, ablatif, datif, locatif, instrumental. (MEILLET, 1967: 545). Aos poucos o sistema flexional indo-europeu se simplificou, apoiando-se na clareza imposta pela preposição, que eram anciennement, des particules ou adverbes autonomes précisaient la relation exprimées par la forme casuelle (ERNOUT & THOMAS, 1972: 9). Na fase histórica os nomes indo-europeus ainda se mantiveram com flexão casual, mas a preposição ganhou muita relevância A origem da preposição está em partículas de valor adverbial, que, aos poucos, assumiram o papel sistemático de insinuar a função sintática.

Assim, procul pode ser advérbio e preposição, conforme o seu valor na oração:

Procul, o procul este, profani! Ficai longe, profanos! (Fórmula solene dos sacerdotes entre os romanos); Procul colitur terra, a terra é habitada em grande extensão: procul, num e noutro caso, é advérbio, pois se refere à ação verbal, ou seja, não rege ablativo.

Beatus ille qui procul negotiis, Feliz aquele que longe dos negócios (Horácio, Epodo I,1): procul: é preposição, uma vez que rege o termo que antecede em ablativo: negotiis.

O mesmo pode acontecer com contra, conforme o seu emprego na oração: contra atque fieri solet, costuma acontecer ao contrário: contra advérbio, pois se refere ao verbo;

contra Labieni castra considunt, tomaram posição contra o acampamento de Labieno (J.César, De Bello Gallico, 3;43,1): contra, preposição que rege o acusativo castra

Há continuidade deste processo de certa forma em português, que admite um quadro de preposições acidentais, em oposição às essenciais acima, porque elas derivam de outras classes gramaticais, ou seja, não desempenham unicamente o papel de preposição, como é o caso de segundo, como (respectivamente numeral e advérbio interrogativo).

As preposições introduzem em latim um elo de subordinação entre o determinante e o determinado, mas apenas para os casos acusativo e ablativo; em português conecta alguns termos oracionais, como o objeto indireto exceto se representado por pronome lhe, adjunto adverbial ou adnominal, complemento nominal, agente da passiva e certo tipo de aposto. Há ainda o emprego estilístico para o objeto direto.

Em latim, a preposição fixa as subordinações como reforço, geralmente, a verbo latim clássico, sempre com valor de adjunto adverbial, quer seja a lista de preposições que regem acusativo, quer seja a de ablativo. Dissemos que elas são um reforço porque a desinência existiu ao lado delas.

As preposições IN, SUB E SUPER que, se o verbo denota movimento, ou seja, deslocamento de um ponto a outro, são seguidas de acusativo e, se não, de ablativo. Assim, ire in scholam, a preposição in pede acusativo; se for esse in schola, a preposição in pede ablativo.

 

3) Os prefixos, os quais surgiram de uma atuação como prevérbios, são oriundos de advérbios e preposições do latim e do grego.

Com a anteposição desses elementos, que formam um inventário comensurável ao radical ou tema, temos uma possibilidade ilimitada de ampliar o dicionário e enriquecemos semanticamente a palavra

Se considerarmos sincronicamente, o prefixo como IN- apresenta polissemia, ou seja, mais de um significado, negação (como em infiel e movimento para dentro (como em ingerir) (ERNOUT & MEILLET, 1985)[3].

outros prefixos com múltiplas significações, como RE-, que pode ser repetição em REiterar, REnovar, REssurgir, ou movimento para trás como REgredir, REcordar, Relembrar etc.

Como as preposições, os prefixos denotam movimento e situação no tempo e no espaço, o que significa uma economia para a nossa memória, conforme esquema abaixo:

Significação básica

Movimento

Espaço/Tempo

 

Situação

Espaço/Tempo

 

Quanto ao movimento temos:

1 - para frente: projetar, progredir;

2 - para trás: retroceder, regredir

3 – para dentro: importar, introjetar;

4 – para fora: exportar, extrair, por exemplo.

 

Quanto à posição ou situação:

1 – dentro: intramuscular, introspectivo;

2 - fora: extraordinário;

3 - embaixo: subsolo, subchefe;

4 - em cima: superposição, supercílio;

5 - contrária: contraveneno, antipático;

6 - dos dois lados: ambidestro, anfíbio, etc.

Donde, temos o seguinte quadro sinótico

Significação

do prefixo

para frente:progresso, projeto

movimento: para baixo: decair, catarata

para lado:adjacente, parabólico etc.

 

NEGAÇÃO: infiel, deslealr, ateu

situação/: embaixo: suposição, hipótese

posição contrária: antip´tico, contecenar etc.

 

 

4) A marca de dois casos latinos

 

Acusativo com infinitivo

O acusativo é o caso lexicogênico, ou seja, criador do léxico, porque, na evolução do latim vulgar ao português, aconteceu a redução gradual das desinências casuais até a sobrevivência de, praticamente, uma única forma casual: o acusativo.

No singular, houve a desnasalização, que, de fato, era a marca distintiva desse caso nas três declinações do latim vulgar, ou nas cinco do latim clássico; por isso mesmo, o nosso singular é Ø (zero) e, no plural, a persistência do –s distintivo desse mesmo caso; por conseqüência, o nosso plural é +s (aditivo).

Um outro resultado adveio: formamos em português os temas nominais em três grupos (comparáveis, mutatis mutandis, às três (1ª. em –a, a 2ª. em –e e a 3ª. em –i) conjugações verbais): -a, -e e –o átonos finais.

O dicionário etimológico registrará que rosa < rosa; lobo < lupu e ave e flor < ave e flore; por isso, é melhor dizer que o grupo atemático é formado por jacarandá, café, (a, e, o tônicos), e não quando simplesmente terminar em consoante (mar, sal; outros exemplos, pois, são abonadores de uma forma hipotética em –e, como mal, plural males).

Acusativo, além da função de complemento verbal e adjunto adverbial – neste contexto se preposicionado, também é o sujeito do infinitivo. Se o verbo estiver no infinitivo, o sujeito vem em acusativo:

Credo Deum esse bonum

Creio que Deus é bom

Credit se cantare posse

Julga ser capaz de cantar

Enquanto, em português, orações completivas de alguns verbos são ligadas a estes verbos por conjunção e o verbo da oração completiva vem num modo (indicativo ou subjuntivo, como Creio que eles se enganaram (modo indicativo) ou Mandei que ele saísse (modo subjuntivo), em latim, sempre mais sintético, não usa a conjunção e despoja o verbo da flexão de número, pessoa e modo, fixando o verbo no infinitivo, compare:

Português

Latim

Dico que este rapaz , leu e lerá

Dico hunc puerum legere. legisse et lecturum esse

A tradução literal da frase latina é este rapaz ler, ter lido e haver de ler. Note que o infinitivo futuro concorda em gênero, número e caso com o sujeito.

Portanto, a construção latina é estruturada a partir de três regras para a oração subordinada: 1)supressão da conjunção integrante que, 2)o sujeito fica no acusativo e 3)o verbo no infinitivo, que em latim será infinitivo presente, infitivo perfeito (=passado) e infinitivo futuro. Se a oração subordinada tem verbo de ligação, o predicativo concordará com o sujeito, que sabemos é um acusativo: Memento te esse mortalem, Lembra-te que és mortal; Scio Deum esse bônus, Sei que Deus é bom; Omnes affirmant hunc librum esse, futurum, fuisse bonum, Todos afirmam que este livro é, será, foi bom.

A língua portuguesa possui infinitivo pessoal, o que é uma novidade, ou melhor, uma criação românica, pois no latim o infinitivo não varia de pessoa, daí o sujeito poder vir em acusativo.

As orações infinitivas são completivas, ou seja, vem sempre depois dos seguintes verbos:

a) uerba sentiendi (verbos do sentido ou sensitivos): audire (ouvir), uidere (ver) e sinônimos:

Mugire uidebis sub pedis terram, Ouvirás (=Verás) a terra mugir sob os pés.

b) uerba declarandi: dicere (dizer), negare (negar), respondEre (responder), scire (saber), putare (julgar), credere(crer)...

Caesar putat se fuisse beatum, César crê ter sido feliz. (O pronome se vale para o singular e para o plural)

c) uerba uoluntatis: uelle (querer, uolo), malle (preferir, malo= magis uolo), nolle (não querer, nolo =ne uolo), cupere (desejar), vetare (proibir), cogere (obrigar,; concluir), iubEre (ordenar, mandar)...

A voz passiva ocorre com muitos verbos para expressar um sujeito no nominativo:

ao invés de Dicitur Gallos in Italiam transisse, Diz-se que os gauleses passaram para a Itália – é recomendável Galli dicuntur in Italiam transisse, (literalmente: Os gaulese são ditos terem passado para a Itália). O que ocorreu? O sujeito do infinitivo que estaria no acusativo passou sujeito da oração principal. Eis um exemplo de Fedro: Vulpes ad cenam dicitur ciconiam inuitasse, Diz-se que a raposa tinha convidado a cegonha para jantar.

Os verbos iubeor, uetor, sinor, prohibeor, cogor, e uideor (=parece verdadeiro) se apresentam constantemente na voz passiva:

Consiliis, ut uidemar, bonis utimur, aplicamos as boas resoluções, conforme nos parece. (Cic. Ad Att. 5; 18,2)

Um dos recursos de impessoalização do sujeito é a passiva de dicor, putor, feror, trador:

Traditum est (=nuntiatum est, dicendum est, putandum est) Homerum caecum fuisse, Disse-se que Homero foi cego. (Cic., Tusc, 5; 39,114)

Herdamos em português este sentido causativo ou factitivo desses verbos transtitivos, mas quando há a expressão formada com o verbo fazer, mandar e sinônimos ou ver, ouvir e sinônimos, cujo objeto direto será sujeito da oração subordinada:

Eu o vi correr.

o correr: oração subordinada objetiva direta, reduzida de infinitivo, equivale a Eu vi que ele corre. O o é objeto direto de

ver e sujeito de correr.

Na linguagem coloquial, aparece o gerúndio Eu o vi correndo.

 

Ablativo

O ablativo, por oposição ao grego que não conservou o ablativo, é chamado de casus latinus.

Ablatiuus casus provém de auferre (supino ablatum: ablat+ iuus), tirar, levantar marca o ponto de partida, afastamento, separação.

Resumindo o emprego nominal do ablativo: constrói-se um substantivo em ablativo, regido ou não de preposição, exprimindo circunstância (lugar, tempo, instrumento, origem, etc., como em: Redeo ex Gallia (Volto da Gálialugar onde); Caesar pugione interfectus est.(Cesar foi morto por punhal instrumento).

Obs.: O agente da passiva se expressa em ablativo com a significação de causa Caesar a Bruto interfectus est.

O emprego oracional, ablativo absoluto, ocorre quando se trata de oração reduzida com função circunstancial, independente dos termos essenciais da oração (sujeito e predicado), porém com dependência semântica da circunstância

Ex.: Belo finito, milites in patriam reversi sunt.(Terminada a guerra, os soldados voltaram para casa)

Augusto regnante, Christus natus est. (Quando Augusto reinava, Cristo nasceu)

É muito do gosto estilístico do latim o ablativo absoluto, pela sua propriedade de síntese e autonomia, isto é, absoluto.

Formação e emprego do ablativo absoluto

- particípio presente ou passado passam a equivaler tanto a um substantivo quanto a um adjetivo no caso do ablativo:

facio nos dá o particípio passado proveniente do supino factum > factus, -a, -um.Portanto, partibus factis, sic leo locutus est (feitos os cortes(=partes), assim falou o leão)

regno nos dá o particípio presente proveniente do pres. indicativo ou infinitivo regna(s / are) > regnans, -ntis. Portanto, Regnante Tarquinio, Pythagoras in Italiam uenit.(Reinando Tarquínio, Pitágoras veio à Itália)

 

Emprego

Não há possibilidade de ablativo absoluto quando um termo de uma oração aparecer na outra oração, mesmo representado por pronome. Em “Tendo agarrado o cordeiro, o lobo o dilacerou”. Não se constrói em latim, neste caso, {Correpto agno, lupus illum laceravit}. A frase seria Lupus agnum correptum laceravit. “Capturada a cidade, os soldados a incendiaram.” Não poderia ser {Capta urbe, milites illam incenderunt.}, e sim Milites captam urbem incenderunt.

Quanto à significação, o ablativo absoluto equivale, na tradução, a advérbios ou orações adverbiais:

Bello finito(terminada a guerra) equivale a post bellum(depois da guerra); Direpta urb(saqueada a cidade) e equivale a cum ubrs direpta esset(como a cidade fosse saqueada)

ablativo absoluto sem radical verbal. Sendo o latim língua sintética, a preferência será essa; logo, temos: substantivo mais substantivo formando ablativo absoluto: Caesare dictatore, Cleopatra Romam uenit (Quando César foi ditador, Cleopatra veio a Roma); Cicerone consule, Catilina conjurationem fecit (Quando Cícero foi cônsul, Catilina fez uma conjuração).

Estas construções acontecem porque não apenas por simples elipse do verbo esse, mas também porque morficamente o verbo esse não tem supino para formar particípio passado, nem admite a formação de particípio presente.

Pronome mais substantivo formando ablativo absoluto: Te auctore, profectus sum.(Por teu conselho, parti); Me ignoro (Sem eu saber); Te invIto (Sendo tu contrário); Me vivo (Estando eu vivo)

também a possibilidade de ambigüidade:

Bello finito: tanto pode ser entendidodepois que a guerra terminou” (tempo) ouComo a guerra tivesse terminado”(causa)

Ablativo absoluto como latinismo em português:

a) continua através do particípio passado: Travada a batalha (Hoc proelio facto); Conhecida esta situação (Qua re cognita)

b) mas o português substituiu o particípio presente pelo gerúndio ou infinitivo: Ao nascer do sol (sole oriente); Entrando o verão (Ineunte aestate); Deus ajudando (Deo juvante)

O ablativo absoluto é naturalmente apenas um pensamento à parte, uma observação separada, como se fosse um virtual par de parênteses. É tão excessivamente encapsulado e condensado que perde os caracteres mórficos de pessoa, número e gênero (nos particípiosgênero), dispensando conectivo oracional e se justapondo ao parágrafo unicamente com uma vírgula Apresenta as formas de particípio presente ou passado em ablativo. Tem força de persuasão tanto quanto um silogismo. E Aristóteles, em sua Arte Retórica, se o examinasse, talvez lamentasse o fato de a língua grega tê-lo perdido e concentrado no genitivo este papel gramatical. É que o ablativo é o caso genuinamente latino, por isso, os outros idiomas podem imitá-lo, estabelecendo interfaces, mas não emparelhá-lo absolutamente.

 

BIBLIOGRAFIA

MELO, Gladstone Chaves de. Investigações Filológicas. Rio de Janeiro: Grifo/MEC, 1975.

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: Ciência das Significações. S.Paulo: Pontes, 1992.

CÂMARA JR., J. Mattoso. História e Estrutura da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

––––––. Princípios de Lingüística Geral. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1970.

––––––. Dicionário de Filologia e Gramática Rio de Janeiro: J.Ozon, [s/d.].

COUTINHO, Ismael de Lima Pontos de Gramática Histórica Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969.

ELIA, Sílvio. O Ensino do Latim. Rio de Janeiro: Agir, 1955.

––––––. Preparação à Lingüística Românica Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.

ERNOUT, A Morphologie Historique du Latin. Paris: Klincksieck, 1974.

ERNOUT, A & THOMAS, F. Syntaxe Latine. Paris: Klincksieck, 1972.

ERNOUT, A & MEILLET, A Dictionnaire Ethymologique de la langue latine: Histoire des mots. Paris, Klincksieck, 1985.

FARIA, Ernesto. Introdução à Didática do Latim. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959.

––––––. Fonética Histórica do Latim. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1970.

––––––. Gramática Superior da Língua Latina Rio de Janeiro: Acadêmica, 1958.

FIGUEIREDO, J. N. & ALMENDRA, M. A Compêndio de Gramática Latina Porto: Porto. 1977.

MEILLET, A& VENDRYES, J. Traité de Grammaire Comparée des langues Classiques. Paris: Presses Universitaires, 1967.

SILVA NETO, Serafim [Pereira da]. Fontes do latim vulgar (O Appendix Probi). Edição comentada por... Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.

 


 

[1] A inscrição da fíbula é “Manios med fhefhaked Numasioi” com o arcaico nominativo –os, acusativo de pronome –ed, um perfeito de facio com redobro fhefhaked, s intervocálico sem rotacismo e dativo oi, equivalendo ao sermo urbanus “Manius me fecit Numerio”, “Mânio me fez para Numério”.

[2] Embora não esteja clara a sua descrição quando pretende discernir desinência casual de vogal temática, pois é comum o elemento mórfico ser cumulativo, adotei a sua afirmação de desinência zero: p. 68 e 76 (duas primeiras linhas). Confronte-se com a p.76, Observação.

[3] Cf. verbete “L’usage dtinité imperial (dans Ovide seul, on compt comme neologisms incommendatus, inconsumptus, incustoditus (etc.)