LÍNGUAS AFRICANAS EM CONTACTO COM O PORTUGUÊS DO BRASIL

Leodegário A. de Azevedo Filho (UERJ, UFRJ e ABF)

 

Com o livro Falares africanos na Bahia, publicado pela Topbooks em convênio com a Academia Brasileira de Letras, a ilustre professora e pesquisadora Yeda Pessoa de Castro, doutora em línguas africanas, acaba de enriquecer a nossa bibliografia científica sobre a matéria, como muito bem acentuaram Alberto da Costa e Silva, na orelha do volume, e Luís Beltrán, na “Apresentação” da obra.

Historicamente, entre nós, foram pesquisas pioneiras os clássicos livros de Jacques Raymundo (O elemento afro-negro na língua portuguesa) e de Renato Mendonça (A influência africana no português do Brasil), além de outros estudos devidamente referidos na bibliografia da obra em questão.

Em quatro partes, após a “Introdução” e importantes observações sobre “A ortografia dos nomes”, a competente africanóloga da Bahia disserta sobre: a) Povos e línguas africanas, onde se ressalta a importância do grupo banto num conjunto de 1900 línguas ágrafas; b) A matriz africana no português do Brasil, onde fica bem claro que a língua dos escravos, em contacto com o português do Brasil, gerava um discurso mestiçado ou crioulo; c) Níveis socioculturais de linguagem, a saber: a linguagem religiosa dos candomblés ou línguas-de-santo; a linguagem de comunicação rural do povo-de-santo; a linguagem popular da Bahia; a linguagem cuidada e de uso corrente ou familiar na Bahia; e o português do Brasil propriamente dito.

Parece evidente que os dois primeiros níveis citados naturalmente vão apresentar, com maior intensidade, o fenômeno de africanização e não o fenômeno de aportuguesamento, atenuando-se isso no terceiro nível, que é o da linguagem popular da Bahia. Nos dois últimos níveis, o quarto (a linguagem cuidada ou de uso familiar na Bahia) e o quinto (o português do Brasil propriamente dito) o que se vai impor, definitivamente, é o fenômeno de aportuguesamento sobre o fenômeno de africanização. Em tudo isso, não se esqueceu a professora Yeda Pessoa de Castro de referir-se, ainda que ligeiramente, à importante contribuição indígena, pois bem se sabe que, no século XVI, a chamada língua geral ou franca, de que Anchieta nos deixou excelente gramática, era a língua mais falada na costa do Brasil, com base na língua dos Tupinambás. No século XVII, época das Entradas e Bandeiras, a língua portuguesa e a língua dos índios conviviam lado a lado, com empréstimos de adstrato do tupi amplamente visíveis na antroponímia e toponímia nacionais. Somente no século XVIII, como demonstra Serafim da Silva Neto em sua História da Língua Portuguesa, é que o português estaria definitivamente implantado em solo brasileiro, naturalmente enriquecido com todas as contribuições lexicais de aportes ou empréstimos lingüísticos das línguas indígenas e das línguas africanas em nosso território. Na verdade, as línguas africanas eram línguas de povos imigrantes, pois os escravos nada mais eram que imigrantes forçados, diferentemente do que mais tarde iria ocorrer com imigrantes espontâneos, tais como italianos, franceses, alemães, sírios, japoneses e outros. E qualquer povo imigrante (forçado ou espontâneo), como bem assinala Otto Jespersen em seus estudos lingüísticos, não passa de grupo de aloglotas cuja tendência é a de assimilar a língua do novo meio em que se encontra. Como é compreensível, faltava ao negro escravizado a necessária motivação social para falar bem a língua dos senhores, contentando-se com um falar crioulo. Daí decorre extrema simplificação do sistema lingüístico, por força da introdução, na língua dos colonizadores, de traços próprios dos falares africanos. Assim, a simplificação do sistema fônico, mórfico e sintático da língua portuguesa, no Brasil, dá origem a um discurso mestiçado. E a ação da mãe preta ou ama negra na educação dos filhos dos senhores, em nosso sistema de aristocracia rural, foi aos poucos possibilitando a penetração de empréstimos de línguas africanas no português do Brasil. Mas tais empréstimos, sobretudo de origem vocabular, como bem demonstra o livro da professora Yeda Pessoa de Castro, adaptaram-se à fonologia e à morfologia da língua dos colonizadores, em nítido processo de aportuguesamento.

Como estudioso do português do Brasil em longa carreira universitária, em 1968 me ocupava do assunto em foco na conferência que proferi na Alemanha, a convite do meu amigo e colega Kurt Baldinger, então Reitor da Universidade de Heidelberg, com texto mais tarde publicado na miscelânea de estudos em homenagem a Joseph M. Piel, da Universidade de Colônia. Veja-se: “Aspectos do português do Brasil”, in Philologische Studien für Joseph M. Piel, Heidelberg, Carl Winter, 1969, p. 16-23. Por isso, despertou-me muito interesse a importante obra da professora Yeda Pessoa de Castro, detendo-me naturalmente no capítulo sobreNíveis socioculturais de linguagem”.

Para a análise minuciosa de tão interessante pesquisa, é claro que teria de escrever outro livro, não sendo este o caso. Portanto, limito-me a tecer apenas alguns comentários sobre a unificação e a diferenciação do português da América em face ao português da Europa, em função de três níveis: a) Linguagem padrão ou exemplar escrita; b) Linguagem padrão ou exemplar coloquial; e c) Tendências da língua popular. No primeiro caso, a língua oferece uma estrutura ideal que abrange a nação inteira, com disciplina gramatical ensinada nas escolas; no segundo, acentuam-se algumas diferenças em relação ao português de Portugal, que vão além das próprias distinções entre língua falada e língua escrita; e, no terceiro, cabendo distinguir aqui a língua popular das classes incultas da língua popular das classes rurais, notam-se algumas tendências específicas do português popular do Brasil, em contraste ou não com o português popular de Portugal, tanto na fonologia, como na morfossintaxe. A propósito disso, o nosso Gilberto Freire assinalava, em Casa Grande & Senzala, que: “A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, deixando para a boca do menino branco as sílabas moles.” Poderia haver melhor explicação para a doçura melodiosamente vocálica da pronúncia brasileira em face do consonantismo tenso e, por vezes, um tanto áspero da pronúncia portuguesa? Mas a língua, como sistema, é a mesma em todo o mundo lusófono, com naturais variações de norma e de uso, como ocorre em qualquer outro grande bloco lingüístico do mundo. No caso, tais variações não atingem o sistema (la langue), situando-se apenas no espaço da parole, ou seja, no espaço da norma e do uso da língua. Na verdade, a flexibilidade e a plasticidade do português, amoldando-se às necessidades de expressão de povos etnolingüisticamente distintos, graças à ductilidade com que se deixou usar, atingiram limites que seriam insuportáveis em outras línguas do mundo. Mas será bom distinguir sempre africanização de aportuguesamento, como aqui foi observado. Os empréstimos ou aportes lingüísticos de línguas indígenas e africanas, que se ajustaram à fono-morfologia portuguesa, nada têm a ver com os fenômenos lingüísticos de tupinização ou africanização e sim com o fenômeno de aportuguesamento, enriquecendo-se o léxico do português do Brasil. Ao contrário, quando línguas africanas recebem empréstimos ou aportes lingüísticos do português, bem indicados pela professora Yeda Pessoa de Castro nos três primeiros níveis socioculturais de sua classificação de linguagem e não nos dois últimos, então o que se tem é o fenômeno de africanização, próprio de discursos mestiçados ou dialetos crioulos. Evidentemente, não na língua padrão ou exemplar, mas nas tendências da língua popular brasileira é que tais influências podem ser observadas em nível fono-morfossintático. Em síntese, em nossos estudos sobre o assunto, temos indicado as seguintes tendências gerais da língua popular:

Na fonologia:

a) Predominância do vocalismo sobre o consonantismo; b) Enfraquecimento da articulação consonântica; c) Redução de sílabas travadas a sílabas livres.

Na morfossintaxe:

a) Remodelação do sistema de plural e, portanto, de todo o mecanismo da concordância;

b) Remodelação morfossintática pronominal;

c) Remodelação morfossintática verbal e nominal. E disso demos exemplificação no livro Ensaios de lingüística, filologia e ecdótica. Rio de Janeiro, SBLL/UERJ, 1998, p. 45-53, exemplificação em seguida transcrita:

 

TENDÊNCIAS DA LÍNGUA POPULAR

Na língua popular, as diferenças muito se acentuam. Inicialmente, cabe distinguir entre a língua popular das classes incultas e a língua popular e regional das classes rurais. Isso não significa, entretanto, que não haja certas coincidências entre o Português do Brasil e o de Portugal, como na construção: haviam homens no lugar de havia homens, verificando-se a flexão do verbo haver impessoal na língua popular (e até na língua literária) dos dois povos. Mas pretendemos indicar aqui, apenas, algumas tendências específicas do Português popular do Brasil em contraste ou não com o Português de Portugal, tanto na fonologia como na morfossintaxe, a saber:

 

a) Fonologia

No caso, há três grandes tendências:

1. Predominância do vocalismo sobre o consonantismo;

2. Enfraquecimento da articulação consonântica;

3. Redução de sílabas travadas a sílabas livres, como na pronúncia: memo no lugar de mesmo, entre muitos outros exemplos, adiante examinados.

 

b) Morfossintaxe

No caso, observam-se três grandes tendências:

1. Remodelação do sistema de plural e, portanto, de todo o mecanismo da concordância;

2. Remodelação morfossintática pronominal;

3. Remodelação morfossintática verbal e nominal.

 

Expliquemos os dois quadros, começando pelo fonológico, onde podemos observar: a) Palatalização das dentais, principalmente antes de /i/, como em: mentira (mentxira) ou medida (medjida). Traço um tanto regional; b) Alargamento em ditongo de final tônica terminada em s ou z gráficos, como em: rapaz (rapais), luz (luis), nós (nóis); c) Intercalação de uma vogal para desfazer certos núcleos consonânticos, como em: obter (obiter), advogado (adevogado), absoluto (abisoluto), pneu (peneu), etc.; d) Vocalização do /l/ final, como em: final (finau), mel (méu), carnaval (carnavau), etc.; e) Enfraquecimento das consoantes posvocálicas finais, como em: amar (amá), dever (devê), ouvir (ouvi), etc. que são pronunciadas, à maneira francesa; f) Redução de ditongo a vogal: quejo por queijo, bejo por beijo, etc. num fenômeno que é geral em Português, diante de chiantes; g) Despalatização[1] 1: mulher (muié), velho (véio), alho (aio), etc.; h) Redução de proparoxítonos a paroxítonos, conforme o padrão prosódico (acentuação grave predominante) geral da língua: exército (exerço), música (musga), abóbora (abobra), etc.; i) Na área dialectal do Norte, em geral, as pretônicas são abertas, enquanto são fechadas na área dialectal do Sul, traço lingüístico que em si mesmo estabelece uma distinção entre duas áreas. São apenas alguns exemplos de fenômenos que se observam na estrutura fonológica da língua popular, revelando certas tendências comuns a várias regiões, sobretudo às rurais. Insistimos: falamos de língua popular.

No quadro morfossintático, observamos: a) Eliminação das variações átonas: o, a, os, as, como em: Vi ele; Mandei ele sair, etc.; b) Transposição da variação lhe para o tratamento dado ao ouvinte em terceira pessoa pelo padrão de me e te, como em: Ele me viu. Ele te falou. Eu lhe vi. Eu lhe falei; c) Fixação do pronome ele e de suas flexões como único pronome de terceira pessoa, como em: Ele viu. Vi ele. Falei com ele; d) Substituição do sistema de três pronomes demonstrativos (falante, ouvinte e terceira pessoa) com o desaparecimento da oposição gramatical entre este e esse, que se tornam intercambiáveis, havendo preferência para esse, forma oposta a aquele; e) Eliminação das formas verbais de imperativo, como em: Não faz. Venha , etc.; f) Tendência a substituir o sistema pretérito-presente-futuro pelo sistema bipartido de pretérito-presente, como em: Vou amanhã. Fazia isso, etc.; g) Manutenção da desinência arcaica do pretérito perfeito: -arom, -erom e -irom com desnasalização da vogal final, como em: Os menino chegárô; h) Remodelação no sistema de verbos irregulares, como em vir, para distinguir formas homônimas com ver (viemos no lugar de vimos), presente do indicativo, de ver no lugar de vir, futuro do subjuntivo; i) Criação de oposição por alternância vocálica entre a primeira e a terceira pessoas das formas fortes em -ou (pronúncia: ô), como em: sube, truxe, etc.; j) Remodelação das formas rizotônicas de certos verbos em virtude de fenômenos fonéticos apreciados, como em roubar (robar), inteirar (interar), ritmar (ritimar), etc.; l) Tendência para redução das flexões verbais, opondo-se a primeira às demais pessoas, como em: vô, vai, vai, etc.; m) Preferência dada à preposição para na regência do objeto indireto, como em: Falar para ele, etc.; n) Emprego do verbo ter no lugar do verbo haver, como em: Tem lugar ?, etc.; o) Desinência do gerúndio em -ano, -eno, -ino (por assimilação do /d/ à nasal), como em: falano, dizeno, pedino; p) Morfema de plural apenas no determinante[2], como em: Os menino chegô ou chegárô. Meus cóbri não chega pra nada, etc.; q) Os verbos irregulares tendem para a regularidade, como em; Eu cabo. Si eu fazê, etc.; r) Preposição rejeitada antes do relativo para o fim da oração, como em: O homem que eu falei ontem com ele, etc.; s) Verbo botar no lugar do verbo pôr, como em: Bote em cima da mesa, etc.; t) Mistura de tratamento, que se reflete no seguinte verso de Manuel Bandeira: “Entra, Irene, você não precisa pedir licença”; u) Uso de forma oblíqua de pronome da primeira pessoa do singular como sujeito de infinitivo, como em: Isso é para mim fazê, etc.; v) Preposição para (e não a) com os verbos dizer e fazer, como em: Dizia pra mim. Falô pro dotô que não tava sentino nada não. (Cf. Camões: “Pera o avô cruel assi dizia”, Lusíadas, III, 125). O mesmo com o verbo dar, como em: Café pra nóis, etc.; x) Uso de mais em lugar de , como em: Não chove mais - no lugar de: não chove. (Cf. Francês: II ne pleut plus); z) Uso da preposição em com verbos de movimento, como em: Vou no cinema, etc., etc. São apenas algumas tendências observadas, como uma espécie de denominador comum, na língua popular de várias regiões do País. Em alguns casos, encontramos autênticos arcaísmos.

No vocabulário[3], de modo geral, verifica-se uma tendência a preencher lacunas com tupinismos e africanismos: cochilar, mirim, moleque, pereba, xará, caipora, etc. Além disso, a massa vocabular dos fatos dialectais, em geral, é comum em todo o País: causo (=caso), tamei ou tombei (=também), rijume (=regime), inguinorante (=ignorante), drumi (=dormir), quaradô (=coradouro), intaliano (=italiano), premero (=primeiro), barbuleta (=borboleta), saluço (=soluço), aribu (=urubu), Ogeno (=Eugênio), coresma (=quaresma), rúim (=ruim), otomove (=automóvel), súbi (=soube), xiringa (=seringa), memo (=mesmo), cumpádi (=compadre), trabaio (=trabalho), dino (=digno), pobrema (=problema), barde (=balde), etc. No sentido de certas aproximações de fatos da língua popular do Brasil e de Portugal, Gladstone Chaves de Melo traça um interessante paralelo entre o denominador comum da língua popular brasileira e o dialeto interamnense de Portugal[4]. Em alguns casos, temos apenas arcaísmos vocabulares.

Embora Révah[5] pretendesse, até certo ponto, reconstituir algumas características do sistema fonético dos falares de portugueses dos séculos XVI e XVII, partindo de fatos da língua popular falada no Brasil de hoje, convém sempre prevenir que o Português que recebemos no século XVI não foi propriamente o clássico, mas o arcaico, pelo menos do ponto de vista da língua falada. Vejam-se, como exemplo, os seguintes arcaísmos de Anchieta, – na segunda metade do século XVI, – por nós apontados no livro Anchieta, a Idade Média e o Barroco: a) Hiato em encontros vocálicos de e, que e se, ainda que não sistemáticos (conjunções), como em: “E/ os enche de benções”; b) Emprego do verbo haver por ter. “Quem quiser haver victoria”; c) Rima home com fome; d) Emprega a expressão de contino no lugar de: de contínuo; e) Vianda (de origem provençal) por carne; f) Padar por paladar; g) Enfrascar-se por embebedar-se; h) Hiato em ceos: “Quanto nos ceos guardado”; i) Rima may (ver galego e mirandês) com pai; j) Convite por banquete: “Seja gracioso convite”; l) Emprega calma no sentido de calor. “Ar fresco de minha calma”; m) Rima beijo com desejo: “doce beijo / mitigador do desejo”; entre outros exemplos que apontamos, com indicação bibliográfica, no livro acima mencionado. Na língua como nos costumes, partimos da Idade Média para o Barroco, em nossa formação colonial, sem qualquer contacto com o Renascimento. Do ponto de vista da língua falada, é claro que o padrão coloquial dos fins da Idade Média penetrou no início do século XVI.

Cumpre distinguir bem, acrescente-se aqui, a língua padrão oral da língua popular, esta última envolvendo dialetos e gírias. A primeira é uma língua culta, superpondo-se à língua popular e dela distinguindo-se não apenas por maior nitidez e constância na fonação, mas também pela observância das formas gramaticais e pela riqueza de vocabulário. A língua popular, quando diverge da disciplina gramatical da língua padrão, é que apresenta gradações que vão dos dialetos à gíria. Os dialetos agrupam falares que apresentam simplificação de oposições lingüísticas em face da língua padrão, revelando ainda possível influência de substrato indígena ou africano, sobretudo nas áreas rurais[6]. E a gíria se caracteriza pelo emprego particular de certos vocábulos, – incluindo-se o calão, – que na verdade coexistem ao lado dos vocábulos comuns da língua.

Afinal, a unificação e a diferenciação do Português do Brasil é matéria que está exigindo estudos monográficos específicos, esperando-se ainda, para melhores resultados, a aplicação mais ampla do método da geografia lingüística em nossa pesquisa dialectológica. Nem pode uma língua manter-se uniforme num vasto território em que é falada por muito mais de cem milhões de pessoas agrupadas em classes sociais diferentes. Mas, a despeito das formações dialectais, o Português é a língua padrão no Brasil, havendo unidade lingüística entre as duas nações (Portugal e Brasil), através de duas normas cultas em relação ao Português comum de que se originaram, o português quinhentista, ainda impregnado de arcaísmos.

Para a imensa maioria dos casos acima indicados, o livro da professora Yeda Pessoa de Castro traz hipóteses e explicações bastante convincentes. Mas, em termos de língua padrão, no que se refere ao léxico do português do Brasil, de origem indígena ou africana, será bom insistir nisso, não qualquer espécie de tupinização ou africanização, e sim de aportuguesamento. Aliás, o léxico de qualquer língua é sempre uma estrutura aberta. Veja-se o caso do romeno, que mantém a sua estrutura de língua românica, com mais ou menos oitenta por cento do seu vocabulário de origem eslava. Por isso, em lingüística, é costume dizer-se que a língua não muda, se suas formas gramaticais permanecem as mesmas, pouco importando as renovações e inovações em seu vocabulário. Portanto, em nível de sistema, não em nível de norma ou de uso, a língua portuguesa permanece a mesma no amplo espaço geolingüístico do mundo lusófono, porque apresenta unidade em sua rica variedade. A propósito disso, escrevem os professores Celso Cunha e Lindley Cintra: “Na área vastíssima e descontínua em que é falado, o português apresenta-se, como qualquer língua viva, inteiramente diferenciado em variedades que divergem de maneira mais ou menos acentuada quanto à pronúncia, à gramática e ao vocabulário.” (A nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p. 9). E acrescentam, em seguida: “Embora seja inegável a existência de tal diferenciação, não é ela suficiente para impedir a superior unidade da nossa língua, fato, aliás, salientado até pelos dialectólogos”. (op. cit. p. 9).

Concluindo, o livro aqui apreciado, por levantar um sem-número de questões de alto interesse lingüístico, merece todos os aplausos da filologia no Brasil, tornando-se mesmo indispensável aos estudos voltados para a inovação e renovação do léxico do português do Brasil, na linha das pesquisas deixadas pelo professor Joseph M. Piel, de saudosa memória. A título de colaboração e com os olhos voltados para nova edição da obra, lembramos que é preciso rever pequenos dados de caráter lexicográfico, dando-se aqui apenas um simples exemplo: nádega (lat. vulgar: natica) não é, na língua corrente falada em Portugal, o termo correspondente à palavra bunda (origem banto) na língua corrente falada no Brasil. O termo correspondente a bunda, em Portugal, é rabo (lat.: rapu), como em castelhano. Nádega é palavra culta normalmente usada nos dois lados do Atlântico. Sugiro, pois, minuciosa revisão de caráter informativo na segunda parte do livro, aliás a mais extensa  e mais importante em termos lexicográficos, pois apresenta rico levantamento de palavras de origem africana no português do Brasil, como excelente subsídio para os nossos dicionários de língua portuguesa.


[1] Em áreas dialectais, que não se confundem com a língua padrão oral, sobretudo em áreas rurais, é possível admitir-se a presença de substrato indígena ou africano, como no fenômeno de despalatização, aqui examinado. Mas isso ocorre apenas em áreas dialectais.

[2] Possível influência de sintaxe africana. (Falar crioulo)

[3] Em relação ao vocabulário da língua coloquial e também da língua popular, veja-se o importante estudo do professor Joseph M. Piel, intitulado Sobre Alguns Aspectos da Renovação e Inovação Lexicais no Português do Brasil, RPF 13 (1964), p. 1-25.

[4] Cf. Gladstone Chaves de Melo. A Língua do Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1946.

[5] Cf. I. S. Révah. Comment et jusqu’á quel point les parlers brésiliens permettent-ils de reconstituer le système phonétique des parlers portugais des XVIe et XVIIe siècles? (III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros).

[6] Sobre a origem rural do Português, ver: Celso Cunha. Língua Portuguesa e Realidade Brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968