A CRIAÇÃO LINGÜÍSTICA NO PORTUGUÊS

Terezinha Bittencourt (ABF e UFF)

Tratar da criação lingüística implica invadir o terreno dos poetas, já que criar mundos possíveis e impossíveis, prováveis e improváveis é dom que os deuses só concedem aos heróis, àqueles que, embora não gozando da imortalidade como os moradores do Olimpo, ainda assim, através de suas obras, se vão da lei da morte libertando, vão, como diz o grande criador de sonhos pantaneiro, Manoel de Barros, arejando a linguagem tal como as minhocas arejam a terra. Mas se os deuses no princípio deram o privilégio do Verbo aos poetas, para que assim retirassem com seu poder demiúrgico o homem das sombras tenebrosas do caos, concederam aos simples mortais o direito de aceitar ou rejeitar suas criações. A bem da verdade, as regras impostas pelos deuses não foram integralmente aceitas pelos mortais, que, vez por outra, se transformam em heróis, e com grande dose de ousadia e coragem infringem os mandamentos divinos, permitindo, tal como os poetas, que o logos fantástico se manifeste em sua plenitude, criando novas palavras, novas realidades, novos mundos. Todavia, tal como Prometeu que pagou caro a ousadia de querer igualar-se aos deuses, o homem comum, quando se traveste de herói, construindo novos signos, também recebe, via de regra, dolorosos castigos, pois, afinal de contas, o julgamento final nessa matéria é sempre da competência daquele velho de aspeito venerando, que se costuma designar singelamente de povo. Este, juiz implacável, severo e rigoroso em contendas de linguagem, quando se trata de novidades perpetradas pelo comum dos mortais, normalmente emite pronunciamentos desfavoráveis, pondo na conta de atrevimento, insensatez, imprudência as criações do falante anônimo, mas admira, se orgulha e até incorpora palavras novas, se criadas por aqueles a quem as Musas atribuíram o privilégio de fazê-lo: os poetas. Não se pode deixar de compreender as fundadas razões do povo, pois, como diz sua sempre eficaz sabedoria tradicional, lé com lé cré com cré, cada um com seu cada qual...

Por isso, um neologismo, como diz Guimarães Rosa, contunde, confunde, quase ofende tanto o falante comum quanto alguns estudiosos da linguagem, que, tomando o partido do povo, fazem verdadeiros libelos, ferozes denúncias contra todos os que ousam ocupar o lugar de Prometeu. Veja-se, a título de ilustração, as idéias do grande estudioso da linguagem, Mário Barreto, acerca das recentes criações lingüísticas ou cacologias nacionais, conforme ele preferia denominá-las:

Os fabricantes de vocábulos novos acham sempre que o já termos em português uma palavra antiga com igual valor não deve obstar a que se admita a nova voz, socolor de que esta exprime, senão uma idéia, ao menos algum novo matiz em seu significado. Outro pretexto para justificar o neologismo é que este vem expressar uma idea que atègora não podia ser traduzida senão por meio de uma perífrase. Mas de locuções compostas se tem servido e com elas se tem contentado a língua até aqui. Êste empenho de uma brevidade telegráfica, que economiza as letras, poupa as sílabas e não quer dispêndio delas, introduz verbos novos como seleccionar ou selectar em vez de fazer selecção, solucionar em vez de dar solução, ascensionar em vez de fazer uma ascensão, fusionar em vez de fazer a fusão de, silenciar (passar em silêncio), extorsionar (cometer extorsão), obstaculizar (pôr obstáculos), e outros preciosos neologismos da mesma farinha, com os quais se vai enriquecendo copiosamente a cacologia nacional. (Barreto, 1982: 129. O grifo é meu)

Como se vê, neologismos (ou “cacologias nacionais”, como quer o eminente filólogo em seu estilo especialíssimo) no início – ressalte-se que o texto foi publicado em primeira edição no princípio do século -, nenhum falante lusófono na atual sincronia reconheceria quaisquer das palavras citadas (com exceção, talvez, de extorsionar) como uma palavra recém criada.

Vale lembrar que Mário Barreto, embora falando na condição de filólogo, de estudioso da linguagem, adotando, pois, um ponto de vista eminentemente metalingüístico, age, no que concerne aos neologismos, da mesma forma que o falante comum, condenando-o, sancionando negativamente qualquer unidade nova que venha a incorporar-se à língua. De fato, o usuário, ao se deparar com uma palavra que não reconheça como pertencente ao uso regular, imediatamente manifesta sua estranheza, expressando-se através de enunciados como “Isso não é português”, “Isso não está no dicionário”, “Isso não existe.”

Trata-se, a rigor, de uma atitude, ao menos na superfície, contraditória, já que, embora sancionando negativamente os neologismos, tanto o falante quanto o estudioso da linguagem tenham consciência de que eles existem, sendo, inclusive, necessários para que a língua possa cumprir sua função de apreender os conteúdos cognoscitivos.

Cremos que tal contradição é apenas aparente e pode ser desfeita, se se levarem em conta duas importantes questões concernentes ao fenômeno da linguagem: em primeiro lugar, a distinção entre saber lingüístico e saber metalingüístico e, em segundo lugar – não em ordem de importância, é mister destacar – a dupla dimensão da linguagem.

O saber lingüístico consiste num saber de experiências feito e, como qualquer saber dessa natureza, só se adquire na prática. Dizendo de outro modo, só se aprende a falar, ouvindo os outros falar e falando. Tal saber, ademais, é um saber técnico, isto é, um conhecimento formado por um conjunto de regras a serem atualizadas em qualquer situação de fala, o que implica dizer que todo falante / ouvinte necessariamente conhece as regras de sua língua, pois, sem tal conhecimento, não poderia falar nem entender o falado. O saber metalingüístico, por seu turno, consiste numa reflexão feita acerca do saber lingüístico, ou seja, trata-se do saber do estudioso cujo objetivo é justificar e explicar o saber que todo falante possui. Em algum momento de nossa vida, assumimos o papel de lingüista, pois que, necessariamente, fazemos reflexões – não importa se corretas ou equivocadas - acerca da linguagem. Todavia, o mesmo indivíduo que assume o papel de lingüista ao fazer reflexões sobre a linguagem, não deixa de ser falante e, em virtude desse duplo papel desempenhado, ocorrem as confusões e equívocos, pois se assume uma posição sem que seja possível abandonar a outra. No que concerne especialmente aos neologismos, o indivíduo, ao desaboná-los, o faz na condição de falante e, enquanto tal, não admite o menor desvio no que ele entende ser a língua que fala, a sua língua, a sua pátria, como diz Fernando Pessoa. Ao se colocar, porém, na condição de lingüista, no sentido de alguém que reflete sobre sua língua, esse mesmo indivíduo não apenas reconhece a necessidade de novas criações mas até as julga interessantes, incorporando muitas delas a seu saber, como fica comprovado pelo aparecimento freqüente de novas palavras no seio da comunidade falante.

A linguagem, como ensina Eugenio Coseriu (1982: 30), possui uma dupla dimensão: é logos, apreensão do ser, mas é logos intersubjetivo, já que é apreensão do ser por parte do homem histórico. Na primeira dimensão, a dimensão do logos, ela se apresenta como forma de criação de significados, equiparando-se, pois, à poesia, visto que, tal como a poesia, consiste na apreensão e objetivação de conteúdos cognoscitivos. Na segunda dimensão, a dimensão da alteridade, a linguagem apresenta uma referência intersubjetiva, pressupondo a existência de outros sujeitos, subjacente numa história comum e manifesta no ato de comunicar – comunicar, vale ressaltar, não no sentido de informar algo a alguém, mas no sentido de estar em comunhão com alguém. Assim, a linguagem é criação, mas é criação para o outro, visto que é criação de significados numa língua determinada e tal língua é pertença de outros indivíduos da mesma comunidade, devendo haver, portanto, em qualquer ato lingüístico, obediência a uma tradição histórica.

Ora, o falante enquanto tal está apenas ocupado em fazer funcionar o instrumento lingüístico, a fim de que possa alcançar seu objetivo de chegar até o outro, seu propósito de comunicar; por isso, qualquer desvio – e o neologismo constitui um desvio, uma vez que se trata de unidade desconhecida para o ouvinte, obrigando-o a um dispêndio de energia suplementar, para compreendê-lo – representa uma ameaça à regularidade com a qual a comunidade está habituada, e que é conditio sine qua non para a garantia de sua existência. Daí que um neologismo funcione, na dimensão verbal da alteridade, como um perigo, no que concerne à manutenção dos laços de tradição que servem para unir todos os membros do grupo, conferindo-lhes uma identidade frente a outras comunidades. É mister levar-se em conta que a língua em si mesma, sobre ser cultura – no sentido antropológico do termo –, funciona ainda como condição para a existência de uma determinada cultura. Tal fato manifesta-se, na perspectiva da comunidade, através de sanções negativas expressas em frases como “A língua está-se corrompendo.”; “A língua vai desaparecer”, pois, como diz Guimarães Rosa, autoridade nessa matéria de neologismos, saia todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a língua tida e herdada?

Por outro lado, enquanto lingüista, enquanto alguém que reflete sobre o fenômeno da linguagem, o usuário percebe a necessidade de criar novas formas, a fim de que a realidade sempre multifacetada e transformada possa ser adequadamente apreendida pelos signos e neles objetivada. Assim, ao se colocar na posição de mero observador da atividade verbal, o indivíduo sanciona positivamente tais criações, por se dar conta de que a própria compreensão das coisas do mundo só pode efetivar-se, se for feita através de um sistema significativo.

Encontra-se, pois, a razão da aporia na própria essência da linguagem: enquanto logos, apreensão do ser, tem de mudar, porque o mundo apresenta aspectos sempre novos e é próprio do homem a criatividade; enquanto logos intersubjetivo, a mudança constitui ameaça à existência da comunidade, por implicar alteração em formas já conhecidas e armazenadas na memória de seus membros. Destarte, as duas forças antagônicas do ser e do devir, da tradição e da inovação, estarão em permanente embate, enquanto a língua existir, já que constituem, a rigor, a dupla face de todo objeto histórico: a permanência e a mudança.

As transformações levadas a cabo pela introdução de novas formas na língua não ocorrem de modo caótico e desorgonizado, ao contrário, todas as criações lingüísticas, justamente por se tratarem de criações feitas por um sujeito histórico inserido num aqui-agora, obedecem a determinadas regras, a fim de que possam cumprir a finalidade comunicativa.

Para que se possa compreender de que modo tais unidades são criadas, os conceitos de sistema e norma, estabelecidos por Eugenio Coseriu (1979), com base na reinterpretação da dicotomia saussureana langue e parole, são preciosos. A partir da atividade lingüística concreta de cada falante, isto é, da fala dos indivíduos, é possível deduzir os modelos abstratos de realização.

A norma, primeiro nível de abstração, pode ser entendida como um inventário de entidades reais, atualizáveis imediatamente no nível da fala. O sistema, segundo grau de abstração, consiste num inventário estruturado de entidades ideais, atualizáveis imediatamente não na atividade concreta, mas em outro inventário, o da norma. O sistema é, sobretudo, sistema de possibilidades, abrangendo, por conseguinte, as formas ideais de realização de uma língua, ou seja, as técnicas e os modelos do saber lingüístico. A norma, por outro lado, é um sistema de realizações obrigatórias consagradas historicamente e corresponde ao que já se disse e tradicionalmente se diz na comunidade considerada, abrangendo, pois, os modelos já realizados, de acordo com os modelos pertencentes ao sistema. O sistema representa, portanto, a dinamicidade da língua, o seu modo de fazer e a possibilidade de ir além do que já se realizou e a norma, enquanto fixação do que já se realizou, representa o equilíbrio do sistema.

As entidades e as relações que constituem a norma são as que primeiramente se conhecem a partir dos textos. Todavia, em virtude de o sistema ser mais geral é o plano que mais depressa se apreeende em sua totalidade. Por essa razão, os erros cometidos pelo falante nativo só são erros em relação à norma, pois que, em relação ao sistema, são acertos.

A chamada “etimologia popular” é um processo que ilustra muito bem a criação de novas unidades pelo falante, com base nas regras do sistema. Para compreendermos sua natureza, conforme ensina Herculano de Carvalho (1969: 113-116), é preciso investigar a própria atividade lingüística concreta, na qual dois sujeitos – falante e ouvinte – e seus respectivos saberes lingüístico e extralingüístico interagem da seguinte forma: A tem a intenção de manifestar determinado conteúdo para B e, para tanto, organiza a realidade em signos; tais signos, ao chegarem a B, são por ele primeiramente reconhecidos (= conhecidos outra vez) através de uma operação que consiste em identificar no material sonoro percebido e no conteúdo intelectivo a ele agregado um signo lingüístico anteriormente conhecido. Identificado o objeto, B esforça-se por apreender a designação ou referência atual dos signos percebidos, ou seja, tenta alcançar a intenção comunicativa de A, no que concerne àquela situação especial. Ocorre, todavia, que, tanto na primeira fase – a do reconhecimento – quanto na segunda – a da compreensão e interpretação – pode haver um desacordo entre o que estava na intenção de A ao comunicar e o que de fato B entendeu e interpretou. Tal desacordo pode afetar quer o significante quer o significado quer ambos ao mesmo tempo.

Muitas palavras e expressões foram criadas através de tal mecanismo, como barriguilha (=braguilha), camapé (=canapé), vagamundo (=vagabundo), praiamar (=preamar), cuspido e escarrado (=insculpido e encarnado). E, na atual sincronia, continuamos a ver como tal recurso continua produzindo novas expressões que podem ou não ser incorporadas ao saber lingüístico dos falantes. Recolhemos algumas expressões, em atos de fala do quotidiano, muito interessantes, por mostrarem as relações que os usuários da língua estabelecem entre os signos e as coisas a que eles se referem, e as interpretações peculiares que em virtude de tais relações se manifestam: matar dois coelhos com uma caixa d’água por matar dois coelhos com uma cajadada; trazer o assunto à bala por trazer o assunto à baila, ficar de boquinha aberta por ficar boquiaberta, concordar em gênero, número igual por concordar em gênero, número e grau, micro-leão dourado por mico-leão dourado, aids egípcio por aedes egyptis, raio ultra-violento por raio ultra-violeta, linguagem de baixo escalão por linguagem de baixo calão, situação periquitante por situação periclitante, aviso em brévio por aviso prévio, não ter cacique por não ter cacife, o arroto falando do esfarrapado por o roto falando do esfarrapado, toxicoplasmose por toxoplasmose, médico gástrico por médico gastro, pipopó por qüiproquó, usucampeão por usucapião, estuporose por osteoporose, quartel de Medelin por cartel de Medelin, cigarro de baile por cigarro de Bali.

Aos poetas, como dissemos inicialmente, os deuses e a comunidade conferem o sagrado direito de infringir a norma e criar, de acordo com as regras do sistema. Vejamos, no texto de Guimarães Rosa (1968: 101-104), grande criador de mundos e de palavras, de que modo ele utilizou o poder que lhe foi outorgado pelas Musas de, transcendendo o já feito, ir além e dar vida ao que só existia como possibilidade:

Nós, os temulentos

Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perquiria tanto. Deixava de interpretar as séries de símbolos que são esta nossa outra vida de aquém-túmulo, tão pouco pretendendo ele próprio representar de símbolo; menos, ainda, se exibir sob farsa. De sobra afligia-o a corriqueira problemática quotidiana, a qual tentava, sempre que possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar a bar.

Exercera-se num, até às primeiras duvidações diplópicas: - “Quando... – levantava doutor o indicador - ... quando eu achar que estes dedos aqui são quatro”... Estava sozinho, detestava a sozinhidão. E arejava-o, com animação aquecente, o chamamento de aventuras. Saiu de lá já meio proparoxítono.

E, vindo noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com o que, casual, por ele perpassou um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos, para a ele dizer: - Bêbado, outra vez ... – em pito de pastor a ovelha. – É? Eu também ... – o Chico respondeu, com báquicos, o melhor soluço e sorriso.

E, como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o apostrofaram: - Bêbado, outra vez? E: - Não senhor ... – o Chico retrucou - ... ainda é a mesma.

E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. – Feia! O Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. – E você, seu bêbado!? – megerizou a cuja. E, aí, o Chico: - Ah, mas ... Eu? Eu, amanhã, estou bom ...

E, continuando, com segura incerteza, deu consigo noutro local, onde se achavam os companheiros, com método iam combeber. Já o José, no ultimado, errava a mão, despejando-se o preciosíssimo líquido orelha adentro. – Formidável! Educaste-a ? – perguntou o João, de apurado falar. – Não. Eu bebo para me desapaixonar ... Mas o Chico possuía outros iguais motivos: - E eu para esquecer ... – Esquecer o quê? – Esqueci.

E, ao cabo de até que fora-de-horas, saíram, Chico e João empunhando José, que tinha o carro. No que, no ato, deliberaram, e adiaram, e entraram, ora em outra porta, para a despedidosa dose. João e Chico já arrastando o José, que nem que a um morto proverbial. – Dois uísques, para nós ... – Chico e João pediram – e uma coca-cola aqui para o amigo, porque ele é quem vai dirigir ...

E – quem sabe como e a que poder de meios – entraram no auto, pondo-o em movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com mais o milagre de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os bafos inclusive. – Qual dos senhores estava na direção? – foi-lhes perguntado. Mas: - Ninguém nenhum. Nós todos estávamos no banco de trás ...

E, deixado o José, que para mais não se prezava, Chico e João precisavam vagamente de voltar a casas. O Chico, sinuoso, trambecando; de que vale, em teoria, entreafastar as pernas? Já o João, pelo sim, pelo não, sua marcha ainda mais muito incoordenada. – Olhe lá: eu não vou contar a ninguém onde foi que estivemos até agora ... – o João predisse; epilogava. E ao João disse o Chico: - Mas, a mim, que sou amigo, você não podia contar?

E, de repente, Chico perguntou a João: - Se é capaz, dê-me uma razão para você se achar neste estado ?! Ao que o João obtemperou: - Se eu achasse a menorzinha razão, já tinha entrado em lar – para minha mulher ma contestar ...

E, desgostados com isso, João deixou Chico e Chico deixou João. Com o que, este penúltimo, alegre embora física e metafisicamente só, sentia o universo: chovia-se-lhe. – Sou como Diógenes e as Danaides ... – definiu-se, para novo prefácio. Mas, com alusão a João: - É isto ... Bêbados fazem muitos desmanchos ... – se consolou, num tambaleio. Dera de rodear caminhos, semi-audaz em qualquer rumo. E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: - Pode me dizer onde é que estou? – Na esquina de 12 de Setembro com 7 de Outubro. – Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da cidade ...

E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: - Faz favor, onde é que é o outro lado? – Lá ... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...

E retornou, mistilíneo, porém, porém. Tá que caiu debruçado em beira de um tanque, em público jardim, quase com o nariz na água – ali a lua, grande, refletida: - Virgem, em que altura eu já estou!... E torna que, se-soerguido? mais se ia e mais capengava, adernado: pois a caminhar com um pé no meio-fio e o outro embaixo, na sarjeta. Alguém, o bom transeunte, lhe estendeu a mão, acertando-lhe a posição. – Graças a Deus! – deu. – Não é que eu pensei que estava coxo?

E, vai, uma árvore e ele esbarraram,ele pediu muitas desculpas.Sentou-se a um portal,e disse-se, ajuizado:- É melhor esperar que o cortejo todo acabe de passar ...

E, adiante mais, outra esbarrada. Caiu: chão e chumbo. Outro próximo prestimou-se a tentar içá-lo. – Salve primeiro as mulheres e as crianças! – protestou o Chico, eu sei nadar ...

E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir pelo espaço o seu peso corporal. Daí, deu contra um poste. Pediu-lhe: - Pode largar meu braço, Guarda, que eu fico em pé sozinho ... Com susto, recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se; e ibibibidem. Foi às lágrimas: - Meu Deus, estou perdido numa floresta impenetrável!

E, chorado, deu-lhe a amável nostalgia. Olhou com ternura o chapéu restado no chão: - Se não me abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Temos de nos separar, aqui ...

E, quando foi capaz de mais, e aí que o interpelaram: - Estou esperando o bonde ... – explicou. – Não tem mais bonde, a esta hora. E: - É? Então por que é que os trilhos estão aí no chão?

E deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: - Não entendo ... – ingrato resmungou. – Recebo respostas diferentes, o dia inteiro.

E não menos deteve-o um polícia: - Você está bebaço borracho! – Estou não estou ... – Então, ande reto nesta linha do chão. – Em qual das duas?

E foi de ziguezague, veio de zaguezigue. Viram-no, à entrada de um edifício, todo curvabundo, tentabundo. – Como é que o senhor quer abrir a porta com um charuto? – É... Então acho que fumei a chave ...

E, hora depois, peru-de-fim-de-ano, pairava ali, chave no ar, na mão, constando-se de tranqüilo terremoto. – Eu? Estou esperando a vez da minha casa passar, para poder abrir ... Meteram-no a dentro.

E, forçando a porta do velho elevador, sem notar que a cabine se achava parada lá por cima, caiu no poço. Nada quebrou. Porém: - Raio de ascensorista! Tenho a certeza que disse: - Segundo andar!

E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. Pode entrar no apartamento. A mulher esperava-o de rolo na mão. – Ah, querida! Fazendo uns pasteizinhos para mim? – o Chico se comoveu.

E, caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e de que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiqüíssima anedota. Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do armário: - Quê?! Um homem aqui, nu pela metade? Sai ou te massacro!

E, avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe. – Desculpe, meu velho. Também quem mandou você não tirar os óculos? – O Chico se arrependeu.

E, com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si mesmo.

O texto trata de tema da maior banalidade e só ascende efetivamente ao plano do logos fantástico, graças ao fato de seu autor saber utilizar com segurança as possibilidades do sistema da língua portuguesa para criar unidades que não se encontram consagradas pela norma, conforme mostram todas as palavras e expressões grifadas. Note-se que o leitor não encontra nenhuma dificuldade em identificar como pertencente à língua portuguesa os neologismos, justamente porque são criações feitas com as regras do sistema, conhecidas por qualquer falante da língua. Assim, ainda que o leitor sinta alguma dificuldade para identificar o significado de algumas palavras, como zupiando e trambeando, tal obstáculo não lhe obsta reconhecê-las como formas que indicam processo caracterizado pelo aspecto imperfeito, em virtude da marca de gerúndio (ndo) que aparece depois do radical de todos eles.

Continuando nossa análise do texto, verificamos que as unidades grifadas criaram-se conforme as regras estabelecidas nos paradigmas dos nomes, verbos e locuções do sistema português, p.ex.: sozinhidão, pernibambo, embriagatinhava, mistilíneo formaram-se pelo processo de aglutinação; duvidações, aquecente, olhosa, despedidosa, tambaleio, bebaço, curvabundo, tentabundo, megerizou, trambeando, epilogava, zupiando, prestimou-se, quadrupedar-se, verticou-se, tumbou-se, pelo processo da sufixação; combeber, desapaixonar, incoordenada, pelo processo da prefixação; aquém-túmulo, salvos e sãos, público jardim, zaguezigue, pela alteração da ordem considerada normal ou regular; e, por fim, ibibibidem, pelo processo de repetição de parte da base.

Além do processo de criação de palavras através da aplicação das regras do sistema lingüístico, criam-se também novas unidades por meio da metáfora, que consiste na identificação do conteúdo cognoscitivo do signo com o qual se designa X com uma qualidade percebida em Y. Dizendo de outro modo, na metáfora, uma palavra que significa o objeto X passa a significar também o objeto Y, sem perder seu vínculo com X.

Na criação metafórica, obedecendo-se, naturalmente, às regras previstas no sistema lingüístico, não se formam propriamente signos novos, mas, sim, aproveitam-se antigas unidades, aderindo-se-lhes novos valores significativos, construídos através de imagens, associações subjetivas ou objetivas, fantasias feitas acerca de um dado objeto da realidade. Assim, a metáfora constitui um processo bastante econômico de se criarem novas unidades sígnicas, pois a realidade extralingüística sempre inédita e multifacetada de que os signos têm de dar conta é representada por expressões já existentes no sistema lingüístico, que são aproveitadas, sendo reconstruídas apenas pelos novos valores que se lhes aderem.

Naturalmente que a justificativa para o processo metafórico na criação de palavras não reside primeira e primariamente na economia que lhe é inerente, mas no próprio caráter expressivo peculiar a tal processo. A linguagem é essencialmente atividade cognoscitiva, atividade através da qual o mundo é apreendido, representado e conhecido por meio de significados. Estes, por seu turno, ao contrário da imagem que está sempre irreversível e indissoluvelmente ligada ao objeto que lhe deu origem, são genéricos, multívocos, abrangendo de modo indiferenciado todo o universo conceptual. Por isso, o conhecimento lingüístico, em virtude de determinadas circunstâncias próprias do ato concreto de fala, pode consubstanciar-se de maneira mais eficaz, se se efetivar através de imagens, pois estas concretizam o objeto que, ao ser apreendido pelo significado, perde os traços peculiares de sua materialidade. Um exemplo tornará mais clara a explicação. As palavras broto, pão e gato foram utilizadas durante certo período pelos jovens da área do Rio de Janeiro, para designar pessoa bonita; cada uma delas, por sua vez, teve vida efêmera, como podem comprovar os usuários que assistiram, durante poucas décadas, ao nascimento, circulação e morte das duas primeiras. Ora, por que razão tais palavras foram substituídas em tão curto espaço de tempo, para dar lugar a outra que cumpria a mesma função? A resposta reside no princípio da criatividade, comum a todo falante, que se manifesta na necessidade imperiosa de expressividade. Dizendo de outra forma: toda vez que a palavra, ao ser usada, perde a sua imagem criadora para transformar-se em signo, em sinal genérico, esvazia igualmente seu poder de evocar a imagem que lhe deu origem, e o usuário torna, então, a buscar na realidade outras imagens que sirvam ao mesmo propósito. Tal movimento que leva a imagem a transformar-se em signo, obrigando o falante a procurar novas imagens que serão, se usadas, transformadas novamente em signos lingüísticos é perpétuo, e faz parte da própria essência da linguagem, que é atividade livre e finalística.

A criação metafórica, vale lembrar, embora ocorra com todo o vigor na obra literária, já que é nesse gênero textual que o logos fantástico se manifesta em toda a sua plenitude, pode manifestar-se em qualquer ato de fala. E, a rigor, tais criações aparecem nos enunciados mais singelos da vida quotidiana, sem que o falante, justamente por estar ocupado com a eficácia do instrumento lingüístico, esteja atento à sua construção. Sirvam de exemplos as seguintes palavras e expressões colhidas na linguagem diária: bonde (=grupo de pessoas com a finalidade de promover distúrbios), orelhão (=telefone público), sabonete (=moça namoradeira), deixar um furo (= agir de modo inconveniente com alguém), malhar (=fazer ginástica), sarado (=corpo bonito), armar um barraco (=brigar, discutir), impregnar (=ficar próximo de uma pessoa por longo tempo), viajar (=dizer algo sem fundamento), empada, pastel (=indivíduo sem expediente), mala (= pessoa aborrecida), periquita (= moça que se veste com roupas de marcas caras), baba-ovo (=bajulador), chupeta do diabo (=cigarro), perua (=mulher que se enfeita excessivamente), loba (=mulher a partir dos quarenta anos), avião (= mulher bonita;), fritar (=destruir uma candidatura), cozinhar (=enganar com promessas ilusórias), queimar o filme (=destruir uma reputação), cair a ficha (=dar-se conta de algo), alugar um ouvido (=falar incessantemente sobre tema desinteressante), jogar conversa fora (= falar sobre assuntos sem importância), dar uma carteirada (=empregar a posição de autoridade para obter algum tipo de favorecimento), encher lingüiça (=dar explicações desnecessárias), segurar a onda (= suportar determinada situação adversa), são expressões cunhadas pelos falantes com o objetivo nítido de dar caráter expressivo a conteúdos de consciência.

Aliás, uma parte considerável de nosso vocabulário criou-se através do recurso às metáforas. Entre tais criações, vale lembrar as expressões construídas com imagens de partes do corpo humano, fonte inesgotável de fantasias, já que se constitui em ponto de referência para o que se encontra ao redor do homem. Sirvam de exemplos: pé-sujo, pé-de-boi, pé-de-meia, pé-de-moleque, pé-de-valsa, pé-de-pato, pé-de-chinelo, pé-de-anjo, pé-rapado, pé-frio, pé-de-cabra, pé-de-atleta, pé-de-galinha, pé-de-página, mão-inglesa, mão-de-vaca, mão-boba, mão-branca, mãos-limpas, mão-de-ferro, mão-aberta, dente-de-coelho, dente-de-alho, dente-de-leite, cabeça- d’-água, cabeça-de-bagre, cabeça-de-melão, cabeça-de-prego, cabeça-de-ponte, cabeça-de-alfinete, cabeça-de-vento, braço-do-rio, braço-de-mar, braço-direito, olho-d’água, olho-de-boi, olho-do-furacão, olho-de-sogra, olho-da-rua, coração-da-terra, coração-de-ouro, coração-de-pedra, boca-da-noite, boca-do-mato, boca-de-caçapa, boca-de-privada, dedo-de-prosa, dedo-duro, língua-de-cobra, língua-de-trapo, língua-de-sogra, seios da face, barriga-de-tanque, barriga-d’água, cara-de-pau, costas-quentes, peito-do-pé, perna-de-pau, orelha-do-livro, nariz-de-cera, cabelo nas ventas, cabelo-de-anjo, folha-de-rosto, unha-de-fome, umbigo-da-terra, dor-de-cotovelo, sangue-de-barata.

O reino dos animais se presta também a muitas criações dessa natureza. Note-se que alguns bichos são invariavelmente selecionados para a tarefa de povoar o inesgotável universo da fantasia humana, conforme pode comprovar o emprego, como substantivo ou adjetivo, das palavras cachorro, gato, boi, vaca, tubarão, cobra, papagaio, porco, sapo etc. Vale a pena lembrar alguns provérbios fixados na comunidade com a imagem que, através da metáfora, o animal faz sugerir: Em buraco de cobra, tatu não anda; Segues a formiga, se queres viver sem fadiga; Em terra onde não tem galinha, urubu é frango; Quando a mula fala, o homem cala; Quem com porcos se mistura, farelo come; Urubu, quando está infeliz, cai de costas e quebra o nariz.

Assim, é a própria constituição da linguagem, na sua dupla finalidade de apreender o real e manifestá-lo, que permite o duelo permanente entre a força da inovação - que obedece ao princípio da criatividade - e a força da conservação - que obedece ao princípio da historicidade. Por isso, a língua tem de ser investigada sob essa dupla perspectiva, pois se apresenta simultaneamente como “érgon”, produto, algo acabado, e como “enérgeia”, algo que está em eterna construção, através da atividade lingüística. Revela-se como “érgon”, na dimensão da historicidade, isto é, enquanto norma estabelecida e consagrada pela comunidade e, como “enérgeia”, na dimensão da criatividade, isto é, enquanto sistema de regras que permite ao falante exercer sua capacidade de apreensão do ser. Tal embate, como se vê, só terá fim quando findar a trajetória da espécie humana e, junto com ela, se extinguir o instrumento mais misterioso, sofisticado e fascinante que os deuses lhe concederam: a linguagem verbal. Enquanto o homem não deixar de se ser, enquanto o homem estiver deambulando com olhar de água suja no meio das ruínas, para dizer com as palavras do exímio fazedor de sonhos e de signos, Manoel de Barros, o conflito permanecerá. E é bom que permaneça.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Mário. Fatos da língua portuguesa. 3ªed. Rio de Janeiro: Presença, 1982.

BARROS, Luiz Martins Monteiro de & BITTENCOURT, Terezinha. Língua e discurso: uma releitura de Saussure. Revista da Academia Brasileira de Filologia, nº 2, 2º semestre de 2003.

CARVALHO, J. G. Herculano de. Estudos lingüísticos. Coimbra: Atlântida, 1969.

COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e lingüística geral. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

COSERIU, Eugenio. O homem e sua linguagem. Rio de Janeiro: Presença, 1982.

ROSA, J. Guimarães. Tutaméia, 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.