Pontos conflitantes
no estudo da análise sintática

Reflexões sobre alguns enfoques na análise sintática
e alguns pressupostos teóricos

Walmirio Macedo (UERJ, UFF e ABF)

Na verdade, o melhor título para a nossa palestra seria aquele que colocamos como subtítulo: Reflexões sobre alguns enfoques na análise sintática e alguns pressupostos teóricos, pois sinto-me mais preocupado em debater pontos teóricos do que mostrar conflitos de pontos de vistas de especialistas. Mas, enfim, as duas coisas se entrelaçam e fica difícil separá-las.

Já há algum tempo, vem sendo a análise sintática alvo de ataques de um segmento do ensino da língua portuguesa.

Não foi, entretanto, apontado o mal que possa provocar o ensino e/ou o aprendizado da análise sintática. Que seja difícil ou apresente pontos controversos não é argumento que se possa levar em conta.

Mas não há até aqueles que são contra o ensino da própria língua portuguesa? Se são no global, não se há de espantar serem contrários no parcial.

Estou entre aqueles que acham que o saber não faz mal algum. Muito ao contrário, só nos enriquece, nos transforma em pessoas capazes de entender mais, de compreender mais, de expressar mais etc., etc..

Assim, posso até tornar-me avis rara, mas defendo o ensino da língua vernácula em toda a sua potencialidade, não importando o que digam ou o que pensem os que discutem o problema na internet, pregando liberdade total, de preferência cheio de erros de concordância e outros.

O que defendo é uma metodologia clara, objetiva que indique o momento em que certos conhecimentos possam ser passados a fim de que cada um possa dispor de um meio de comunicação que poderá utilizar nas ocasiões necessárias, nos momentos certos na luta da vida para conquista dos melhores espaços.

Ao invés de ser uma repressão, como dizem uns, pode tornar-se um meio eficiente de libertação e defesa contra a própria repressão de que se pode ser alvo ao longo da vida.

Essa introdução se faz necessária para a defesa do ensino da análise sintática.

A linguagem há de servir para expor-se o pensamento com clareza e só pode fazê-lo bem quem sabe construir uma frase perfeita.

É preciso, pois, conhecer a estrutura do enunciado nos seus componentes, saber suas variantes e suas possibilidades.

Isso é o mínimo.

Nós, professores, precisamos saber mais, um pouco mais.

Precisamos saber as teorias, discuti-las, dissecá-las.

Aí é que reside a diferença, a fronteira da linha de conhecimentos.

Mas o professor tem de saber a dose exata da transmissão.

Aqui estou falando para professores e por isso mesmo podemos tratar de casos controversos.

Antes, desejo situar, no meu entender, as três principais posições que devem constituir a linha de opções e/ou alternativas do estudioso da língua.

Diante do fato gramatical, há de se optar por uma dessas posições:

01. Formal ou estrutural

02. Semântica.

03. Funcional.

Em lugar do termo posições, poderíamos falar de critérios: o critério formal, o critério semântico e o critério funcional. (Cf Mattoso Câmara Jr., Estrutura da língua portuguesa, Vozes, cap. IX)

O que se há de exigir do estudioso é coerência no tratamento de sua teoria, ou seja, a definição de sua opção ou de seu critério e enquadrar o seu enfoque.

A minha posição é funcional que procura partir da forma para a significação.

Faz-se necessária essa colocação para entendimento de pontos que aqui serão discutidos.

Outro ponto importante é o problema sincronia /v/ diacronia.

A visão sincrônica que é que deve nortear os estudos gramaticais não deve, de forma alguma, excluir contribuições esclarecedoras da diacronia.

Lembro aqui o que diz Bernard Pottier com muita clarividência que, embora haja partidários da sincronia e da diacronia – que se opõem – não se pode esquecer que se trata de duas visões do mesmo problema.

E eu completo: duas visões que podem completar-se e esclarecer pontos discutíveis.

Há fatos sintáticos que merecem uma discussão clara, científica.

A oração portuguesa é definida pela posição linear em que cada constituinte ocupa o seu lugar em relação às outras unidades do enunciado..

ASSIM, têm-se em Português estruturas matrizes com seus componentes ou constituintes.

São essas as estruturas matrizes da Língua Portuguesa:

1.

SN + SV O menino chegou.

2.

SN + SV + SN O menino sabe a lição.

3. SV Chove.

A estrutura de número 3 é excepcional, ocorrendo apenas com verbos de fenômeno atmosférico, com o verbo haver existencial e temporal e com o verbo fazer temporal.

As estruturas 1 e 2 são , na verdade, matrizes da Língua Portuguesa.

Temos, além dessas, a estrutura com os chamados verbos de ligação, os verbos vazios:

SN + SV+ SN/A

formando a frase nominal.

A estrutura 1 pode vir acompanhada de sintagma circunstancial:

SN + SV+SC.

O mesmo pode ocorrer coma estrutura 2:

SN+SV+SN+SC

Há quem considere que a sintaxe tem como única função definir quais são as frases bem formadas na língua.

Aqui se teria de discutir o que se entenderia por frases bem formadas.

É óbvio que não se pode dissociar a idéia de frases bem formadas da verdadeira função que é a da comunicação.

Por isso mesmo é que não posso aceitar uma separação, como se fossem coisas distintas, análise sintática da análise semântica., Elas se complementam e se explicam.

Ao longo dessa exposição, essa afirmação ficará evidenciada.

Vamos tratar de alguns casos de forma objetiva, mostrando as nossas posições.

Nas frases:

a) Ele virou a canoa.

b) Ele virou lobisomem.

c) A canoa virou.

Como poderíamos estudar essas frases sem levar em conta o significado?

Em a), temos um verbo transitivo direto com o seu objeto direto: a canoa.

Temos aí um verbo de ação.

Em b) , temos um verbo assignificativo, ou seja, um verbo de ligação e lobisomem é o predicativo do sujeito. Ele não era lobisomem, mas passou a ser.

Em c), temos um verbo de circuito fechado, um verbo intransitivo.

A classificação da NGB das funções sintáticas segundo a qual algumas seriam essenciais, outras integrantes e outras acessórias cria problema e está a merecer uma reflexão e uma retomada.

Mas a discussão desse problema há de ficar para outro momento, pois escapa dos objetivos desta modesta exposição.

Observemos as frases

a) Tratou do divórcio.

b) Tratou do doente.

Em a), poderíamos fora do contexto interpretar de duas maneiras: alguém cuidou dos papéis do divórcio ou alguém falou sobre o divórcio. A significação vai definir a análise sintática.

No caso de tratar dos papéis do divórcio, temos um verbo com objeto indireto e, no caso de falar sobre o divórcio, temos um verbo com adjunto adverbial de assunto.

A importância da análise semântica é óbvia.

Uma discussão que ocorre entre diferentes autores é o caso da frase:

São duas horas.

Muitos consideram duas horas predicativo do sujeito e, ao mesmo tempo, dizem que se trata de uma oração sem sujeito.

No meu livro Análise Sintática em nova dimensão , procurei dar novo enfoque a essa questão, mostrando o absurdo dessa interpretação tradicional.

Fui ao latim e verifiquei a frase correspondente:

Sunt duae horae.

No latim, o verbo está empregado intransitivamente e duae horae é o seu sujeito.

A visão diacrônica serve muitas vezes para esclarecer pontos possivelmente obscuros.

É a outra visão do mesmo problema.

Assim, não tive dúvida em dar o meu enfoque, a minha versão de análise:

Duas horas ® sujeito de são.

São ® verbo ser empregado intransitivamente.

O professor Cândido Jucá, in O fator psicológico na evolução sintática (Simões, 1953, p.93, segunda edição), parece aprovar o nosso enfoque, quando diz que

os verbos indicativos de horas e datas também se concertam com suas integrações tornando-se pessoais.

São duas horas

Bateram as três

Soaram as ave-marias

Davam duas horas

..............................

Outro ponto interessante – e conflitante –na análise sintática – é o caso que eu chamei de falsos objetos diretos .

Ocorre com alguns verbos como falar, jogar, tocar (música).

Assim:

a) A moça fala inglês.

b) A menina joga bola.

c) A menina já toca piano.

Inglês, bola, piano não são mais que verdadeiros instrumentos, verdadeiros adjuntos adverbiais, anexos a verbos , no caso, intransitivos.

Na fala popular e coloquial, o verbo falar é muito empregado como sinônimo de dizer e , nesse caso, trata-se de transitivo direto: Esse menino falou muitas bobagens..

Não é evidentemente o mesmo caso de falar latim, falar inglês, falar português etc..

Em latim, usa-se num caso o verbo loquor e no outro, o verbo dicere.

Em relação ao verbo jogar, temos em latim o verbo ludo (ludere) que se constrói com ablativo de instrumento: ludere pila.

O apelo ao latim está sendo usado para melhor esclarecimento.

Há diferença sem dúvida entre :

a) Jogar baralho.

b) Jogar baralho na cara do companheiro;

A grande diferença é semântica e afeta a análise sintática dos termos.

Em a), baralho é adjunto adverbial de instrumento ou meio.

Em b), baralho é objeto direto.

Comparem: As meninas jogam bola e quebram a vidraça;

As meninas jogam a bola e quebram a vidraça.

O predicativo merece algumas palavras.

Sabemos que aparece na forma de um substantivo ou adjetivo:

Ele é porco.

Ele é um porco.

É possível que a construção com substantivo tenha sido a origem de tudo:

Ele é um homem bom

Ele é bom.

O adjetivo ocorreria com a supressão do substantivo: Ele é [um homem] bom.

Bernard Pottier apresenta um enfoque sobre isso muito interessante.

Ao tratar das vozes em Português, fala de uma voz que ele chama de equativa e de outra que ele denomina descritiva..

Na voz equativa, temos uma equivalência, uma equação, onde o predicativo é um substantivo.

O gato é um animal selvagem.

Gato= animal

Na voz descritiva, não há uma equação mas uma descrição:

Este gato é preto.

Gato/preto

O mesmo:

Você é tolo (DES.)

Você é um tolo. (EQUA)

Você é mau. (DES)

No seu Lingüística geral-Teoria e descrição (Presença, 1978) que traduzi e adaptei ao Português, Pottier apresenta uma rica contribuição para o estudo e compreensão da estrutura da frase. Algumas coisas, poucas mas úteis, podemos comentar aqui no exíguo espaço de que dispomos.

O seu enfoque sobre as preposições é muito enriquecedor.

Comecemos com as frases:

João foi ferido

a) por Pedro. (agentivo – humano)

b) por uma granada.(INS- não humano)

c) por sua falta.(CAU)

d) porque errou. (CAU)

A preposição é muito importante para a compreensão de certos fatos sintáticos.

Em primeiro lugar, faz-se necessário não esquecer o que Pottier diz sobre o significado das preposições. O notável lingüista não aceita que se fale em preposições vazias, ou que as preposições sejam vazias, desprovidas de significado. Para ele, isso seria o mesmo que se falar de um “monstro lingüístico”.

Para ele, todas as preposições têm uma significação. Explico: não se trata de uma significação como a dos nomes , mas uma significação peculiar, uma indicação de significação.

Dando um enfoque pessoal à teoria de Pottier, coloquei em meus livros (Análise sintática em nova dimensão; Gramática da Língua Portuguesa)que só a preposição do objeto indireto e complemento nominal é destituída de significado. Mas Pottier, que não concorda com isso, diz que até aí a preposição tem o seu significado – que é o significado sintático.

A compreensão do papel da preposição nos esclarece muitos problemas e nos dá uma diretriz de solução.

Dentro dessa ótica, podemos até falar de preposições que são sinônimas ou antônimas..

Podemos distinguir com maior segurança um objeto indireto de um adjunto adverbial, ainda os diferentes tipos de adjuntos adverbiais.

Observemos os exemplos:

O fuzil escondido pela relva (CAU)

com relva (INS)

na relva. (LOC-E)

Pedro saiu com sua prima (SOC/comp.)

Pedro está feliz com os sapatos novos.(CAU)

Pedro o matou com um facão. (INS)

Agi com cautela (Modo)

Está nítida , em todos os casos, a importância da preposição para a análise dos termos.

Já em “simpatizei com você”, temos a preposição apenas com valor sintático, com significado sintático.

No caso, temos um objeto indireto.

Aqui, poderíamos estabelecer uma linha demarcatória entre o objeto indireto e o adjunto adverbial

No adjunto adverbial, a preposição apresenta uma indicação clara de significação

Já em “simpatizei com você”, temos a preposição com valor sintático, ou melhor, com significado sintático.

No caso, temos um objeto indireto.

Como vimos, no adjunto adverbial , a preposição apresenta uma indicação clara de significação.

A combinatória formal de certos verbos com infinitivo constitui um agrupamento que exige aplicação semântica.

Os verbos típicos são dever, poder e querer (e respectivos sinônimos).

O verbo dever apresenta polissemia abundante:

Devo estudar ® obrigação que dou a mim mesmo.

Devo partir ® pode ser obrigação na dependência de outros fatos.

Devo guardar dinheiro ® probabilidade.

O verbo poder é também polissêmico.

Posso partir ® convicção interior da possibilidade.

Podia não chegar lá, pode ser meio-dia ® possibilidade ou potencialidade.

O verbo querer não apresenta tantos valores significativos.

Quero partir.

Em “quer chover”, a idéia é de possibilidade, aproximando-se de poder.

Na combinatória formal desses verbos com infinitivo, alguns gramáticos têm apresentado um enfoque que merece discussão.

Tratam todos como verbos auxiliares, formando locução com o infinitivo. Custa-me aceitar essa generalização.

Observemos as construções:

Eu quero sair.

Eu quero o livro.

Eu quero a maçã.

Eu quero isto.

Como se observa, a substituição do infinitivo é inteiramente viável por substantivos que são nítidos objetos diretos: o livro, a maçã´isto.

Sem dúvida, sair é também objeto direto de ´eu quero´.

Se é um objeto direto, não temos aí locução verbal.

Com o verbo dever, podemos aplicar o mesmo esquema:

Eu devo sair.

Eu devo o livro.

Eu devo maçã.

Eu devo isto.

No sentido estrito, a substituição não é válida.

O verbo dever forma com o infinitivo uma locução verbal, fechada.

O mesmo ocorre com o verbo poder:

Eu posso sair.

Eu posso o livro.

Eu posso a maçã.

Eu posso isto.

A substituição também não é válida.

O verbo poder forma com o infinitivo uma locução verbal.

Pottier apresenta o problema assim:

João quer partir João vai partir.

João quer / João partir. João ¬ parte.

Pottier ainda vê a possibilidade de transformar o infinitivo em oração subordinada com que.

João quer que você parta.

# João vai que você parta.

A segunda construção está fora do uso da língua. Isso ocorreu porque destruímos a locução verbal.

Ainda dentro do mesmo assunto, usando um esquema de substituição, Pottier aponta os exemplos abaixo:

a) Proponho que se construa essa casa.

b) Proponho que esta casa seja construída.

c) Proponho construir esta casa.

d) Proponho a construção desta casa.

E diz que se trata de várias soluções formais aplicadas às escolhas semânticas, partindo de um mesmo esquema conceitual:

Eu propor ISSO

Q

¯

0 construir casa

1 2 3

Na análise sintática, um dos pressupostos teóricos da maior importância é o da imanência.

Isso significa que se deve operar com os termos do texto. Assim, não se deve desmembrar em outros termos aquilo que o espírito, com sua concepção sintética, expressou com um elemento apenas.

Deve-se analisar o que lá está, o termo que está expresso e não o seu pretenso equivalente.

Dessa forma, é inaceitável desdobrar quem em aquele que.

Do período do tipo: Eu sei quem chegou, a oração quem chegou é subordinada substantiva objetiva direta.

Na período: Eu sei aquele que chegou, que chegou é subordinada adjetiva.

São, pois, dois períodos distintos e, conseqüentemente, de análises distintas.

Há muitos problemas que se podem discutir, mas o espaço não permite.

É o caso de alguém com a classificação sujeito simples indeterminado ou meramente sujeito simples.

É o caso de expressões do tipo: ida a São Paulo: complemento nominal ou adjunto adverbial de lugar, outras denominações.

Aqui seria necessária uma reflexão sobre a classe dos advérbios, tão mal definida e tão pouco estudada.

Para terminar, quero ressaltar que a análise sintática deve ser primordialmente formal, estrutural, funcional. Certas aplicações lógicas podem induzir a erro e, em certos casos a própria lógica.

Em

Se chove, não saio de casa,

a oração se chove é indubitavelmente adverbial condicional.

As orações com se só têm dois caminhos:ou são substantivas ou adverbiais condicionais.

Considerar essa oração como causal foi uma aberração que li em algum lugar. O referido analista substituiu o se por porque e achou que tinha resolvido o problema dentro de sua lógica.

Mas a sua lógica não só contrariou o princípio da imanência como a própria lógica da frase, da compreensão da frase, da inteligência da frase.

Quem disse aquela frase poderia tê-la dito em belíssimo dia de sol: Se chove, não saio de casa.

Aqui termino.

Foi pouco, mas o suficiente para refletir.

O estudo do enunciado é bonito, desafiador e enriquecedor.