TRANSPLANTE da língua portuguesa
PARA o Brasil

Leodegário Amarante de Azevedo Filho (UERJ, UFRJ e ABF)

 

Com fundamento na classificação de George Hempl, adotada por Jespersen (1928: 201 ss.), podemos considerar quatro casos teóricos de língua transplantada:

Caso A: Persistência da população nativa com infiltração culturalmente superior da população de fora. É o caso da romanização da Península Ibérica, que teve o seu território anexado ao Império Romano, apresentando como conseqüência a implantação do latim vulgar naquela região. A língua e os costumes do povo mais culto absorveram a língua e os costumes das populações vencidas, através da ação de tropas militares de ocupação, das organizações comerciais e industriais e da própria organização de repartições administrativas. Não sendo veículo de uma cultura superior, as línguas autóctones tendem a desaparecer, em tais casos;

Caso B: Eliminação da população nativa em proveito da que vem de fora. Situa-se neste caso, fundamentalmente, o transplante da língua portuguesa para o Brasil, afugentando-se ou escravizando-se os nativos que habitavam o litoral. Realmente, a chamadalíngua geral” dos catequistas nada mais era do que um produto de superstrato do português em relação às línguas indígenas, em particular a língua dos tupinambás. O fato foi demonstrado pelo professor J. Mattoso Câmara Jr. no livro Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras (Câmara Jr., 1966). O tupi jesuítico, portanto, era apenas uma língua de intercurso, como também procuramos demonstrar no livro Anchieta, a Idade Média e o Barroco (Azevedo Filho, 1966), onde estudamos, entre outros aspectos, a versificação em tupi que nos deixou aquele notável catequista.

O que se tem, assim, em terras brasileiras, nos primeiros contactos dos dialetos indígenas com a língua dos colonizadores, é um período inicial de superstrato do português, facilmente demonstrável através de estudos de fonologia da “língua geral” e da versificação jesuítica em tupi. Por exemplo: na dificuldade de pronunciar o /i/ grosso ou gutural dos indígenas, a “língua geral lhe acrescentava, não raro, a consoante /g/. Assim: /ig/. No que se refere à técnica do verso, Anchieta nos oferece um tratamento de encontros vocálicos tipicamente românico em relação ao tupi, escrevendo versos medidos e rimados de grande regularidade. Era a ação do português sobre as línguas indígenas brasileiras numa fase inicial de superstrato do idioma mais culto. Em seguida, no século XVII, ocorreu um período de bilingüismo, em relação às duas línguas que se falavam durante as Entradas e Bandeiras. Houve, então, empréstimos de adstrato das línguas indígenas para o português, mas apenas em relação ao vocabulário, como se pode ver em nossos nomes geográficos ou em nomes de nossa flora e de nossa fauna. Assim mesmo, os vocábulos oriundos das línguas indígenas tinham que apresentar roupagem portuguesa antes de penetrar em nosso léxico, adaptando-se fonológica e morfologicamente à língua dos conquistadores. Através desse processo, muito se enriqueceu o léxico do português do Brasil. Mas a verdade é que, no século XVIII, o português havia suplantado definitivamente as línguas indígenas, transformando-se em língua nacional do Brasil, após uma fase relativamente curta de bilingüismo. Os índios fugiram para o interior, quando não foram eliminados ou escravizados. E os mestiços, em sentido social, estavam integrados na nação dos conquistadores, falando o português. Em três fases, portanto, é possível estudar-se o transplante da língua portuguesa para o Brasil. Na primeira, verifica-se o superstrato do idioma do colonizador em relação aos falares indígenas; na segunda, ocorre um período de bilingüismo, enriquecendo-se o léxico do português do Brasil; na terceira, por fim, o português se implanta como idioma nacional. Nos casos A e B, por conseguinte, verifica-se o fenômeno de radicação da língua que vem de fora, situando-se o Brasil no segundo caso;

Caso C: Organização governamental e política do povo que vem de fora, impondo-se pela força a uma população nativa e coesa. No caso, em geral, predomina a língua nativa, servindo como exemplo os normandos na Inglaterra. A propósito, esclarece o professor J. Mattoso Câmara Jr.:

Os dois idiomas seguem por algum tempo cursos paralelos, assinalando entre os seus respectivos falantes uma diferença de posição social. Pouco a pouco, porém, a língua invasora vai-se extinguindo. Rarefazem-se os quadros da aristocracia governamental e os seus indivíduos são colhidos nas malhas da estrutura social a que se superpuseram. A caudal de empréstimos é, entretanto, volumosa. Durante muito tempo, é por meio da língua estrangeira, falada pelos dirigentes, que se processa a vida política e cultural da nação. A imitação das coisas da corte traz, insensivelmente, para as classes inferiores uma nomenclatura variada, que lhes era estranha. (Câmara Jr., 1964: 274)

No caso, cremos que se pode incluir também o exemplo do império visigótico na Península Ibérica, pois os povos germânicos invasores não conseguiram eliminar o latim vulgar, que persistiu no território conquistado.

Caso D: Integração da população de fora (imigrantes) numa organização social e política existente. Incluímos aqui a imigração de alemães, italianos, japoneses, sírios, etc. no Brasil. São pequenos núcleos de aloglotas que assimilam o idioma do novo meio em que se encontram. Os empréstimos vocabulares são mínimos, penetrando muito discretamente na língua falada e na gíria. Maior número de empréstimos se verifica em relação, ─ ainda no caso do português do Brasil, ─ às línguas africanas que os escravos trouxeram para a América. Faltava ao escravo a necessária motivação social para falar bem a língua dos senhores, contentando-se com um falar crioulo, ou seja, contentando-se em falar o português a seu modo. Daí decorre, sobretudo, extrema simplificação do sistema lingüístico, por força da introdução na língua dos colonizadores de traços próprios das línguas africanas. Assim, a simplificação violenta do sistema fônico, mórfico e sintático da língua culta origem ao falar crioulo. E a ação da mãe preta ou ama negra na educação dos filhos dos senhores, em nosso sistema de aristocracia rural vigente na Colônia, foi aos poucos possibilitando a penetração de empréstimos de línguas africanas no português do Brasil. Mas tais empréstimos, sobretudo de ordem vocabular, adaptaram-se naturalmente à fonologia e à morfologia da língua dos colonizadores.

A história do transplante da língua portuguesa para o Brasil, por conseguinte, situa-se nos casos B e D, exatamente porque se verificou entre nós a eliminação cultural da população nativa em proveito da cultura dos colonizadores, envolvendo a língua e os costumes. No caso D, porque as levas de imigrantes que chegaram ao Brasil se integraram no sistema lingüístico predominante no território nacional, o que havia ocorrido muito antes em relação aos africanos que foram transportados para a Colônia como escravos. O caso B explica a formação histórica da nacionalidade brasileira, através da implantação de um regime de colonização portuguesa, que superou inteiramente a invasão temporária de outros povos europeus, como foi o caso dos holandeses no Nordeste ou dos franceses no Rio de Janeiro. O efeito dessas invasões bem cedo desapareceria, retomando-se sempre os caminhos da colonização portuguesa. O caso D, finalmente, explica a integração cultural do negro em nossa sociedade colonial, bem assim a integração posterior de imigrantes estrangeiros de procedência diversa, sendo cronológica e quantitativa a diferença entre os dois últimos aspectos. Cronológica porque a presença de escravos no Brasil é muito anterior à presença de imigrantes. Na casa grande a mãe preta cuidava dos filhos dos senhores, falando um português crioulo, que servia de modelo para as crianças. O caso dos imigrantes é diferente porque encontram uma sociedade plenamente constituída, não participando de sua formação, como se deu em relação ao negro africano. Com efeito, os imigrantes é que têm o maior interesse em aprender o português do Brasil, muitas vezes ocorrendo o fato de que os seus netos não sabem falar a língua paterna. O próprio sotaque estrangeiro tende a ir desaparecendo com o tempo, por força de um fenômeno contínuo de integração lingüística e social. Não admira, assim, que o número de empréstimos que o português do Brasil recebeu de línguas africanas, quantitativamente, seja muitas vezes superior aos empréstimos lingüísticos que nos vieram por meio dos imigrantes, quase todos circunscritos a falas especiais e a gírias.

 

Unificação e diferenciação do português do Brasil

Atualmente, portanto, em face do português comum, que se constituiu historicamente em Lisboa, conforme tese defendida pelo professor J. Mattoso Câmara Jr.,[1] há duas subnormas. Existe a subnorma brasileira e a subnorma portuguesa, ambas sofrendo modificações, através dos tempos, em face da norma comum que lhes deu origem. A nosso ver, o fenômeno de enfraquecimento vocálico que se observa na pronúncia portuguesa atual representa, entre outros elementos, uma diversificação em face da norma comum. No Brasil, ao contrário, se mantemos um vocalismo tenso, por outro lado a nosso pronúncia revela certos fenômenos de enfraquecimento das articulações consonantais. São dois exemplos de variação das duas subnormas (a do Brasil e a de Portugal) em relação à norma originária. Note-se ainda que mantemos no Brasil o uso de certos arcaísmos, sobretudo na língua falada em áreas laterais, que estão bem próximas da norma primitiva e que desapareceram da subnorma portuguesa contemporânea. Como se percebe, em nossos dias, tanto a subnorma brasileira como a subnorma portuguesa apresentam diversificações específicas em relação à norma comum, interessando-nos aqui apenas os fenômenos ocorridos no português do Brasil, que podem ser estudados em função de três aspectos:

a) A língua padrão escrita;

b) A língua padrão coloquial;

c) A língua popular.

A língua padrão obedece a uma estrutura ideal que abrange a nação inteira, apresentando disciplina gramatical. Quando utilizada por escritores, em poesia ou ficção, naturalmente apresenta propriedades estilísticas individuais. A língua literária, portanto, não raro reestrutura esteticamente os elementos da língua padrão, para a criação de um estilo próprio. Fora do âmbito literário ou artístico, ou seja, em estudos técnicos, a língua se mantém fiel à sua tradição gramatical. E assim é ensinada nas escolas.

Na língua padrão coloquial, acentuam-se algumas diferenças em relação ao português da Europa, diferenças que vão além das próprias diferenças normais existentes entre a língua falada e a língua escrita. Na verdade, como procuramos demonstrar, tanto a subnorma do português do Brasil como a subnorma do português de Portugal apresentam modificações em face da norma originária. Tais modificações ocorrem, sobretudo, nos domínios da fonologia, onde mantemos um vocalismo tenso em oposição à pronúncia de base consonântica dos portugueses. Na morfologia e na sintaxe não diferenças essenciais, por isso mesmo que a colocação dos pronomes átonos na frase é mais um fenômeno fonológico que sintático. Mantendo-se extremamente átonas as variações pronominais na pronúncia portuguesa, é natural que venham em ênclise no início da frase. No Brasil, ao contrário, o vocalismo tenso confere certo grau de atonicidade aos pronomes átonos, que normalmente aparecem iniciando frases em nossa língua coloquial. Além disso, ainda no domínio da fonologia, as vogais átonas postônicas (sobretudo as finais) se reduzem a três, no português do Brasil: /a/ – /i/ – /u/. Não temos, com efeito, o chamado /e/ reduzido português, quase não pronunciado como no vocábulo: pel(e). Entre nós, em tais casos, ocorre sempre um fenômeno de neutralização vocálica, aparecendo o arquifonema /i/. Assim, pronunciamos com /i/ átono final o vocábulo pele: /peli/, conforme o exemplo dado. Essa neutralização do /e/ em /i/ é sistemática em posição átono final, de acordo com a pronúncia do Rio de Janeiro, tida como padrão no Brasil. São aspectos de pequenas diferenças no campo fonológico, que devem ser consideradas como variantes da língua padrão falada pelos dois povos.

 

Tendências da língua popular

Por fim, na língua popular, as diferenças muito se acentuam. Inicialmente, cabe distinguir entre a língua popular das classes incultas e a língua popular e regional das classes rurais. Isso não significa, entretanto, que não haja certas coincidências entre o português do Brasil e o de Portugal, como na construção: haviam homens no lugar de havia homens, verificando-se a flexão do verbo haver impessoal na língua popular (e até na língua literária) dos dois povos. Mas pretendemos indicar aqui, apenas, algumas tendências específicas do português popular do Brasil em contraste ou não com o português da Europa, tanto na fonologia como na morfossintaxe, a saber:

a) Fonologia

No caso, há três grandes tendências:

1. Predominância do vocalismo sobre o consonantismo;

2. Enfraquecimento da articulação consonântica;

3. Redução de sílabas travadas a sílabas livres, como na pronúncia: memo no lugar de mesmo, entre muitos outros exemplos, adiante examinados.

b) Morfossintaxe

No caso, observam-se três grandes tendências:

1. Remodelação do sistema de plural e, portanto, de todo o mecanismo da concordância;

2. Remodelação morfossintática pronominal;

3. Remodelação morfossintática verbal e nominal.

Expliquemos os dois quadros, começando pelo fonológico, onde podemos observar: a) Palatização das dentais, principalmente antes de /i/, como em: mentira (mentxira) ou medida (medjida). Traço um tanto regional; b) Alargamento em ditongo de final tônica terminada em s ou z gráficos, como em: rapaz (rapais), luz (luis), nós (nóis); c) Intercalação de uma vogal para desfazer certos núcleos consonânticos, como em: obter (obiter), advogado (adevogado), absoluto (abissoluto), pneu (peneu), etc.; d) Vocalização do /l/ final, como em: final (finau), mel (méu), carnaval (carnavau), etc.; e) Enfraquecimento das consoantes posvocálicas finais, como em: amar (amá), dever (devê), ouvir (ouvi), etc. que são pronunciados à maneira francesa; f) Redução de ditongo a vogal: quejo por queijo, bejo por beijo, etc. num fenômeno que é geral em português, diante de chiantes; g) Despalatização:[2] mulher (muié), velho (véio), alho (aio), etc.; h) Redução de proparoxítonos a paroxítonos, conforme o padrão prosódico (acentuação grave predominante) geral da língua: exército (exerço), música (musga), abóbora (abobra), etc; i) Na área dialetal do Norte, em geral, as pretônicas são abertas, enquanto são fechadas na área dialetal do Sul, traço lingüístico que em si mesmo estabelece uma distinção entre as duas áreas. São apenas alguns exemplos de fenômenos que se observam na estrutura fonológica da língua popular, revelando certas tendências comuns a várias regiões, sobretudo as rurais.

No quadro morfossintático, observamos: a) Eliminação das variações átonas: o, a, os, as, como em : Vi ele; Mandei ele sair; etc.; b) Transposição da variação lhe para o tratamento dado ao ouvinte em terceira pessoa pelo padrão de me e te, como em: Ele me viu. Ele te falou. Eu lhe vi. Eu lhe falei; c) Fixação do pronome ele e de suas flexões como único pronome de terceira pessoa, como em: Ele viu. Vi ele. Falei com ele; d) Substituição do sistema de três pronomes demonstrativos (falante, ouvinte e terceira pessoa) por um sistema de dois pronomes (falante e não-falante) com o desaparecimento da oposição gramatical entre este e esse, que se tornam intercambiáveis, havendo preferência para esse, forma oposta a aquele; e) Eliminação das formas verbais de imperativo, como em: Não faz. Venha , etc.; f) Tendência a substituir o sistema pretérito-presente-futuro pelo sistema bipartido de pretérito-presente, como em: Vou amanhã. Fazia isso, etc.; g) Manutenção da desinência arcaica do pretérito perfeito: -arom; -erom e -irom com desnasalização da vogal final, como em: Os menino chegáro; h) Remodelações no sistema de verbos irregulares, como em vir, para distinguir formas homônimas com ver (viemos no lugar de vimos), presente do indicativo, e ver no lugar de vir, futuro do subjuntivo; i) Criação de oposição por alternância vocálica entre a primeira e a terceira pessoas das formas fortes em -ou (pronúncia: ô), como em: sube, truxe, etc.; j) Remodelação das formas rizotônicas de certos verbos em virtude de fenômenos fonéticos apreciados, como em roubar (robar), inteirar (interar), ritmar (ritimar), etc.; l) Tendência para redução das flexões verbais, opondo-se a primeira às demais pessoas, como em: vô, vai, vai, etc.; m) Preferência dada à preposição para na regência de objeto indireto, como em Falar para ele, etc.; n) Emprego do verbo ter no lugar do verbo haver, como em: Tem lugar ?, etc.; o) Desinência do gerúndio em -ano, -eno, -ino (por assimilação do /d/ à nasal), como em: falano, dizeno, pedino; p) Morfema de plural apenas no determinante,[3] como em Os menino chegô ou chegáro. Meus cóbri não chega pra nada, etc.; q) Os verbos irregulares tendem para a regularidade, como em: Eu cabo. Si eu fazê, etc.; r) Preposição rejeitada de antes do relativo para o fim da oração, como em; O homem que eu falei ontem com ele, etc.; s) Verbo botar no lugar do verbo pôr, como em: Bote em cima da mesa, etc.; t) Mistura de tratamento, que se reflete no seguinte verso de Manuel Bandeira: “Entra, Irene, você não precisa pedir licença”; u) Uso de forma oblíqua de pronome da primeira pessoa do singular como sujeito de infinitivo, como em: café pra nóis, etc.; x) Uso de mais em lugar de , como em: Não chove maisno lugar de não chove. (Cf. francês: Il ne pleut plus; z) Uso da preposição em com verbos de movimento, como em: Vou no cinema, etc., etc., etc. São apenas algumas tendências observadas, como uma espécie de denominador comum, na língua popular de várias regiões do País. Em alguns casos, encontramos autênticos arcaísmos.

No vocabulário,[4] de modo geral, verifica-se uma tendência a preencher lacunas com tupinismos e africanismos: cochilar, mirim, moleque, pereba, xará, caipora, etc. Além disso, a massa vocabular dos fatos dialetais, em geral, é comum em todo o País: causo (≡ caso), tamẽi ou tombẽi(= também), rijume (= regime), inguinorante (= ignorante), drumi (= dormir), quaradô (= coradouro), intaliano (= italiano), premero (≡ primeiro), barbuleta (= borboleta), saluço (= soluço), aribu (= urubu), Ogeno (≡ Eugênio), coresma (= quaresma), rúim (= ruim), otomove (= automóvel), subi (≡ soube), xiringa (≡ seringa), memo (= mesmo), cumpádi (= compadre), trabaio (≡ trabalho), Dino (= digno), pobrema (= problema), barde (= balde) etc. No sentido de certas aproximações de fatos da língua popular do Brasil e de Portugal, Gladstone Chaves de Melo traça um interessante paralelo entre o denominador comum da língua popular brasileira e o dialeto interamnense de Portugal. (Cf. MELO, 1946) Em alguns casos, temos apenas arcaísmos vocabulares.

Embora Révah (Cf. Révah) pretendesse, até certo ponto, reconstituir algumas características do sistema fonético dos falares portugueses dos séculos XVI e XVII, partindo de fatos da língua popular falada no Brasil de hoje, convém sempre prevenir que o português que recebemos no século XVI não foi o clássico, mas o arcaico. Vejam-se, como exemplo, os seguintes arcaísmos de Anchieta, – na segunda metade do século XVI, – por nós apontados no livro Anchieta, a Idade Média e o Barroco: a) Hiato em encontros vocálicos de e, que e se, ainda que não sistemáticos (conjunções), como em: “E / os enche de benções”; b) Emprego do verbo haver por ter: “Quem quiser haver Victoria”; c) Rima home com fome; d) Emprega a expressão, de contino no lugar de de contínuo; e) Vianda (origem provençal) por carne; f) Padar por paladar; g) Enfrascar-se por embebedar-se; h) Hiato em ceos: “Quanto nos ceos guardados” i) Rima may (ver galego e mirandês) com pai; j) Convite por banquete: “Seja gracioso convite”; l) Emprega calma no sentido de calor: “Ar fresco de minha calma”; m) Rima beijo com desejo: “doce beijo / mitigador do desejo”; entre outros exemplos que apontamos, com indicação bibliográfica, no livro acima mencionado. Na língua como nos costumes, partimos da Idade Média para o Barroco, em nossa formação colonial, sem qualquer contacto com o Renascimento.

 

Conclusão

Finalizando, cumpre distinguir bem a língua padrão oral da língua popular, esta última envolvendo dialetos e gíria. A primeira é uma língua culta, superpondo-se à língua popular e dela distinguindo-se não apenas por maior nitidez e constância na fonação, mas também pela observância das formas gramaticais e pela riqueza de vocabulário. A língua popular, quando diverge da disciplina gramatical da língua padrão, é que apresenta gradações que vão dos dialetos à gíria. Os dialetos agrupam falares que apresentam simplificação de oposições lingüísticas em face da língua padrão, revelando ainda possível influência de substrato indígena ou africano, sobretudo nas áreas rurais.[5] E a gíria se caracteriza pelo emprego particular de certos vocábulos, – incluindo-se o calão, – que na verdade coexistem ao lado dos vocábulos comuns da língua.

Afinal, a unificação e a diferenciação do português do Brasil é matéria que está exigindo estudos monográficos específicos, esperando-se ainda, para melhores resultados, a aplicação mais ampla do método da geografia lingüística em nossa pesquisa dialectológica, a exemplo do que fez Nelson Rossi e sua equipe com o Atlas Prévio dos Falares Baianos.[6] Nem pode uma língua manter-se uniforme num vasto território em que é falada por mais de noventa milhões de pessoas agrupadas em classes sociais diferentes. Mas, a despeito as formações dialetais, o português é a língua padrão do Brasil, havendo unidade lingüística entre as duas nações (Portugal e Brasil), através de duas subnormas cultas em relação ao português comum de que se originaram.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Azevedo Filho, Leodegário A. de. Anchieta, a Idade Média e o Barroco. Rio de Janeiro: Gernasa, 1966.

Câmara Jr.,  J. Mattoso. Introdução às línguas indígenas brasileiras. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1966.

––––––. Princípios de lingüística geral. 4ª ed. Rio de Janeiro, 1964.

Cunha, Celso. Língua Portuguesa e Realidade Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

Jespersen, Otto. Language, its Nature, Development and Origin. London, 1928.

Melo, Gladstone Chaves de. A Língua do Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1946.

Piel, Joseph M. “Sobre Alguns Aspectos da Renovação e Inovação Lexicais no Português do Brasil”. RPF, 13 (1964).

Révah. Comment et jusqu’á quel point les parlers brésiliens permetent-ils de reconstituir le système phonétique des parlers portugais des XVI et XVII siècls? (III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros).

Rossi, Nelson. Atlas Prévio dos Falares Baianos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1963.


 

[1] Ponto de vista exposto no Instituto Latino-Americano de Lingüística, em 1966.

[2] Em áreas dialetais, que não se confundem com a língua padrão oral, sobretudo em áreas rurais, é possível admitir-se a presença de substrato indígena ou africano, como no fenômeno de despalatalização, aqui examinado. Mas isso ocorre apenas em áreas dialetais.

[3] Cf. Possível influência de sintaxe africana (Falar crioulo).

[4] Em relação ao vocabulário da língua coloquial e também da língua popular, veja-se o importante estudo do professor Joseph M. Piel (1964).

[5] Sobre a origem rural do português, ver CUNHA, 1968.

[6] Cf. Rossi, 1963. Muito empenho sempre revelaram pela aplicação do método da geografia lingüística no Brasil os professores Antenor Nascente, Serafim da Silva Neto e Silvio Elia.