OS PONTOS CARDEAIS DO MODERNISMO*

Gilberto Mendonça Telles (PUC-Rio e ABF)

A literatura brasileira, tal como se dá também com as literaturas hispano-americanas, somente alcançou a sua maturidade expressiva a partir da segunda década deste século, no momento em que as principais literaturas da Europa já haviam experimentado a ruptura com seus vários manifestos de vanguarda. Embora historicamente anterior ao surrealismo, o modernismo brasileiro vai receber influência de quase todos esses movimentos. O expressionismo e o cubismo atuaram na renovação da pintura brasileira, assim com o futurismo e o dadaísmo e mais tarde o surrealismo contribuíram para a renovação da nossa poesia. E foi através da revista L’Esprit Nouveau que se fundou a primeira poética do modernismo brasileiro.

O modernismo surge como um processo de ruptura com o passado próximo, acentuadamente parnasiano-simbolista. É, neste sentido, o grande restaurador de um romantismo repensado, ampliado e atualizado numa nova visão estética da cultura brasileira. Isto explica a importância que novos escritores dispensaram ao regionalismo, transportando-o do campo para a cidade e procurando dar-lhe dimensões universais, como nos romancistas do Nordeste, na poesia de Mário de Andrade, Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade e, nos últimos anos, na ficção renovadora de Guimarães Rosa e na poesia de Lêdo Ivo e João Cabral de Melo Neto. E explica também a ambigüidade fundamental do modernismo: o rompimento com o passado, enquanto o passado significa fechamento cultural; mas é também transformação das forças mais autênticas da cultura brasileira.

Já o que na América espanhola se conhece por modernismo (e neo-modernismo) nada tem a ver com o modernismo brasileiro. O hispano-americano teve início no fim do século passado e de certa maneira se confundiu com as formas parnasianas e simbolistas, findando com a morte de Rubén Darío, em 1916. Com exceção de rupturas pessoais como a de Vicente Huidobro, só a partir de 1921 as influências das vanguardas européias se fizeram sentir em vários países hispano-americanos. Constituem os seus movimentos de vanguardas. Neste sentido o modernismo brasileiro (a vanguarda brasileira) equivale à vanguarda e à neovanguarda hispano-americana.

No Brasil, o modernismo foi conhecido historicamente com a semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no topo das experiências vanguardistas da Europa e no momento em que essas vanguardas, já exauridas e imotivadas, buscavam uma saída conciliadora entre a tradição e a criação. É certo que recebeu influências direta do futurismo, do dadaísmo e do “espiritonovismo” de Apollinaire, mas é também certo que soube transformar a maior parte dessas influências temáticas, técnicas e de linguagem em elementos dinamizadores da cultura nacional.

Ainda não se fez uma comparação exaustiva sobre a repercussão e a transformação dos movimentos literários europeus na moderna literatura brasileira. A crítica tem-se contentado em repetir os documentos mais conhecidos. O pesquisador brasileiro, na sua maioria, é muito livresco, tem medo da poeira dos jornais. Resultado: publica-se muito, mas quase tudo sabido e consabido. Daí a pequena margem de renovação no que diz respeito ao estudo da origem da Semana e no que se refere as suas repercussões e desdobramentos. Ainda dormem nos jornais, que vão desaparecendo, documentos valiosos como as várias séries de entrevistas com velhos e novos nas décadas de 20 e 30.

A grande extensão territorial do Brasil (mais de oito e meio milhões de km2; medindo de Norte a Sul 4.320km e de Leste a Oeste 4.328km) nos leva a falar dos quatro pontos cardeais da nossa modernidade literária: as suas origens, a luta inicial para transformar a matéria estrangeira em elementos da realidade nacional, as suas repercussões e desdobramentos do litoral para o interior do país e, finalmente, as transformações regionais desse espírito de modernização. [Cf. Tyhuantisuyo]

O Norte

Denominamos aqui o “Norte” da Semana de Arte Moderna as suas fontes européias, assinaladas através da divulgação do ideário futurista no Brasil, primeiro por curiosidade, depois como modelo de renovação. Menos de três meses de sua publicação em Le Figaro, o primeiro manifesto do futurismo foi apresentado ao público da cidade nordestina de Natal, no Rio Grande do Norte, no jornal A República, de 5/6/1909, e em dezembro do mesmo ano Almachio Diniz o transcreve no Jornal de Notícias da cidade de Salvador, na Bahia, em 30/12/1909. O crítico baiano escreve uma série de artigos sobre a obra de Marinetti, chegando a traduzir um manifesto espanhol, o “Avantismo”, em 1911. Em 1913, Manuel Bandeira, ainda inédito em livro, escreve um artigo sobre métrica, tratando do verso-livre e da quebra da rigidez do alexandrino. Em 1914, em São Paulo, Ernesto Bertarelli fala sobre as lições do futurismo. Em 1916, Alberto de Oliveira, na recepção de Goulart de Andrade na Academia Brasileira de Letras, se refere ao futurismo e às novas formas da poesia. Em 1917, João Ribeiro escreve sobre Gilka Machado e, de passagem, cita o futurismo. É também o ano do famoso artigo de Monteiro Lobato, “A propósito da exposição de Anita Malfatti”, falando-se em “paranóia e mistificação”. A partir daí começam a dominar a cena pré-modernista os artigos de Menotti del Picchia, Sérgio Buarque de Hollanda, Oswald de Andrade e Mário de Andrade que, entre 1920 e 1921, se organizam no grupo que fará a Semana de Arte Moderna em 1922. No entanto, é só a partir de 1917 que se começa a tomar consciência crítica do futurismo, movimento que, no Brasil, passou a resumir todas as idéias novas da Europa, misturando, para o brasileiro, novo e velho, elementos procedentes do expressionismo, do cubismo, do dadaísmo e do “espírito novo”, sendo que este foi o que mais de perto tocou a sensibilidade de Mário de Andrade e forneceu-lhe material teórico para a sua concepção poética, exposta em 1921 no “Prefácio interessantíssimo”, e ampliada em 1924 para a Escrava que não é Isaura, o texto teórico mais importante e completo de toda a poética modernista.

Se Mário de Andrade encontrou na revista L’Esprit Nouveau as fontes européias de novas técnicas literárias, de novos temas e de uma nova linguagem que imediatamente associou à língua portuguesa falada no Brasil, o nome da Semana foi inspirado por Graça Aranha que, voltando da Europa em 1921, trouxe a notícia de um “Congrès de l’esprit modèrne” que André Breton e Tristan Tzara preparava para março de 1922. Desentendendo-se no fim de 1921, o congresso se frustou, mas a nossa Semana, marcada para antes dele, realizou-se com pleno êxito, repartindo o público entre velhos e novos e chamando a atenção para os artistas novos que inicialmente receberam o nome de “futuristas” e só depois de 1925 começam a ser chamados de modernistas. A semana reuniu arquitetos, músicos, escultores, pintores e escritores, dentro aliás do espírito com que havia sido anunciado o congresso que não se realizou, em Paris.

Pode-se dizer, ainda, que a idéia radical de Oswald de Andrade, fundando a poesia “Pau-brasil” e lançando um Manifesto Antropófago teve também as suas raízes européia. Paulo Prado, no prefácio ao livro de poemas Pau-brasil, disse que Oswald de Andrade descobriu o pau-brasil (quer dizer, o elemento identificador de uma nova história cultural do Brasil) do alto de um atelier de Paris. E não resta dúvida de que o seu Manifesto Antropófago (não antropofágico), de 1928, foi bebido no ideário da revista Cannibale, de 1921, no conto “Gli amori futuristi”, de Marinetti (de 1922) e, também, em Manifesto Manifestes, de Vicente Huidobro, publicado em Paris em 1925. Apontados assim alguns elementos magnéticos, norteadores do sentido estético e da ideologia inicial da Semana de Arte Moderna, veja-se, em síntese, o que se pode ler como o lado “Sul” do movimento inicial do modernismo.

O Sul

Trata-se aqui das projeções e dos desdobramentos no espaço brasileiro das idéias novas pregadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Passados os primeiros momentos de estupefação do público, os novos continuaram o seu trabalho de fundamentar as bases teóricas do movimento, de produzir dentro dos princípios de renovação e de levar aos quatro cantos do país a revolução estética que coincidia com as comemorações do centenário da independência do Brasil. A caravana modernista foi-se irradiando para diferentes regiões brasileiras, indo a Belo Horizonte, Maceió, Recife, Belém, Porto Alegre, enfim, uma projeção que levou uns vinte ou trinta anos para atingir, geograficamente, todo o território nacional. A repercussão geográfica liga-se à da própria transformação das idéias modernistas, com o surgimento de gerações denominadas de 1922, de 1930, de 1945, além de outras mais recentes. Essa expansão territorial do ideário da Semana de Arte Moderna e a sua modificação pelo talento de cada geração e pela sua adaptação aos diferentes ambientes culturais constituem o pólo onde se encontram os elementos para a discussão do caráter nacionalista e os princípios de identidade nacional suscitados pela origem estrangeira dos movimentos de vanguarda.

O Leste

A Semana de Arte Moderna abriu para a literatura brasileira o sentido do novo, do espírito moderno, a tal ponto que se formou na consciência do intelectual brasileiro uma espécie de “tradição do novo” o que tem levado a uma antropofagia de gerações, com a maioria dos poetas achando que tem de começar do zero, como se antes não existisse nada. Ora, não foi isso que se deu com os modernistas de 1922: Mário de Andrade, ainda em 1921, escreveu a série de artigos mostrando a contribuição do passado (“Os Mestres do Passado”) e em toda a sua obra é fácil perceber a convivência de formas e técnicas velhas e novas. Isto fica evidente na “Carta” que o Mário “Novo” manda ao Mário “Velho”, pedindo desculpas pelas ousadias modernistas. E versos como “Galicismo a berrar nos desertos da América” e “Sou um tupi tocando um alaúde” são novos apenas nos arranjos semânticos, digamos, na temática, porque as suas estruturas métricas ainda são de versos alexandrino e decassilábico. Não há um poema em Paulicéia desvairada, o primeiro livro do modernismo, que não contenha versos tradicionais misturados com os versos livres modernistas. Assim, o lado “Leste” da Semana é para mim este sentido de convivência de tradição e modernidade: o escritor fazendo o novo sair de dentro do velho, renovando-o e enriquecendo-o, dando-lhe funções de estranhamento com a abertura processada na linguagem e com a possibilidade de poesia para todos os vocábulos do idioma.

O Oeste

É fácil dizer que o lado “Oeste” da nossa modernidade é, além da sua expansão geográfica por todo o Brasil, o desdobramento em outros movimentos em várias regiões do País, criando a partir do substrato da cultura local (às vezes de forte contribuição indígena) uma nova dicção da nossa literatura, como a convivência de elementos literários do passado com as formas oferecidas pelo modernismo, mas agora transformadas em contato com os elementos da cultura regional. Neste sentido é que se pode falar das duas vertentes da nossa modernidade literária: a que começou em São Paulo e no Rio de Janeiro e deu os grandes nomes da literatura brasileira neste século: e a que, a partir do modernismo regional, vai aparecendo e se impondo entre as novas gerações de escritores na atualidade.

A transformação do discurso literário na vertente Rio-São Paulo, sendo mais dinâmica, guardou sempre um sentido radical de vanguarda, ao passo que nos outros estados existe a tendência para o equilíbrio, para a convergência das técnicas e das formas no aprofundamento dos grandes temas brasileiros, como é, por exemplo, a obra de João Guimarães Rosa.

Tentando compreender o mecanismo das modificações operadas na poética modernista, estamos há algum tempo estudando as transformações verificadas nas obras de poetas como Bandeira, Mário de Andrade, Drummond, Jorge de Lima e outros, poetas que cumpriram um ciclo completo de geração literária e de maturidade intelectual. Para isso elaboramos um modelo em que vemos os principais poetas num período de formação, onde os seus conhecimentos poéticos tradicionais entram em choque com as aberturas modernistas que se impõem através de uma síntese pessoal que ajuda a formar a poética do modernismo. Essa síntese leva naturalmente a um período de conformação, isto é, à consciência de que se está influindo no processo modernista. Há aí uma dialética entre o talento individual e a ideologia dos grupos e gerações. O talento individual acaba se impondo, surgindo então o período da transformação, em que o poeta, o romancista, o escritor, enfim, abandonam a relação grupal e enfrentam sozinho o risco de sua liberdade poética, como fez Drummond com o Claro Enigma, em 1951. Finalmente, chega-se a um período de confirmação, como no latim confirmatio que o cristianismo atualizou no sentido de crisma: é o período em que o escritor, conscientemente ou não, inicia a retomada de seus temas e formas, atualizando-as na sua visão maior de um saber de experiências feitos, como diria o poeta dos poetas. Ou como na bela ironia de Drummond num soneto genial, “Os cantores inúteis”, de A paixão Medida, publicado aos oitenta anos:

Um pássaro flautista no quintal

caçoa de meu verso modernista.

Afinal fez-nos ambos o universo

aprendizes ao sol ou à garoa.

A canção absoluta não se escreve,

à falta de instrumentos não terrestres.

Aos mestres indagando, mal se escuta

pingar, de leve, a gota de silêncio.

Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico,

vence o mítico amor nossa vaidade:

Os amantes que passam, distraídos

e surdos a tais cantos discordantes,

a melodia interna é que os governa.

Tudo mais, em verdade, são ruídos.

Aí está, a meu ver, a convergência das formas e técnicas modernistas com o saber equilibrado de um grande artista: usa-se o soneto, a métrica, a rima, mas num jogo técnico e sintático que põe em cena a temática do velho e do novo, do absoluto e do relativo, do que se diz e do impossível de se dizer, enfim, do mais antigo tópico da literatura ocidental. É assim que a poesia vai-se fazendo eterna, assim como a Semana de Arte vai-se fazendo cada vez mais moderna. Ou então pós-moderna, como querem os mais apressadinhos e que gostam de repetir o que vem de fora.