SIMBOLISMO E PRÉ-MODERNISMO

Ivo Barbieri (UERJ)

 De 1893 – explosão Cruz e Sousa com Broquéis e Missal – a 1922, ano de A semana de arte moderna são 4 décadas. Se deslocássemos um pouco as datas em razão de acontecimentos literário-culturais não menos significativos, marcaríamos o início do período em 1888, ano de publicação de O ateneu de Raul Pompéia, encerrando-o em 1917 com a exposição de Anita Malfatti, marco inicial do escândalo provocado pela arte de vanguarda no Brasil. São esses 40 anos que o binômio Simbolismo e Pré-modernismo pretende abarcar. Na verdade, durante o período ocorrem várias correntes e múltiplas tendências que se encadeiam, sobrepõem, convergem e ramificam. Daí a quantidade de denominações que Percebe: simbolismo, decadentismo, impressionismo, pós-parnasianismo, pós-simbolismo, sincretismo, penumbrismo ou crepúsculo. Pré-modernismo é o termo mais usualmente empregado. Bem mais recentemente, entra em cena a expressão art nouveau com pretensão à hegemonia. José Paulo Paes, que advoga a adoção deste último termo como designativo de toda a produção cultural do período, refere-se a ele comoespaço histórico intervalar[1], “vácuo de nossa história literária”. A propósito, argutamente observa Flora Süssekind: “É como se desde a última década do século XIX aos anos 20 deste século [XX] a literatura brasileira apresentasse uma estranha suspensão de sentido por três decênios.” (O figurino e a forja, 33) Entretanto, visto que a história não pára nem cai no vácuo em momento algum e que nenhum período é de todo estéril ou insignificante, é necessário procurar apreender o perfil cultural desses 40 ou 30 anos de modo abrangente e consistente. A questão crucial com que o pesquisador se depara de saída é o de encontrar um denominador comum, um eixo de articulação que respondesse pela unidade da cultura e das artes durante o período todo. Mas, antes de mais nada, caberia indagar da validade de uma única denominação que desse conta do diversificado espectro de manifestações nos vários campos de produção cultural. Mirando a face desse problema, esbarra-se, de saída, com sérios problemas. No campo da literatura, por exemplo, como aproximar autores tão díspares entre si como Machado de Assis e Rui Barbosa, Coelho Neto e Lima Barreto, Euclides da Cunha e João do Rio ou poetas como Cruz e Sousa e Gilka Machado, Augusto dos Anjos e Raul de Leôni, José Albano e Pedro Kilkerry. Como enquadrar um naipe de poetas tão diferenciado quanto Ernâni Rosas, Marcelo Gama e Maranhão Sobrinho. Para complicar mais ainda a questão, deparamos com vias antagônicas, ficando num extremo os acomodados à literatura-sorriso da sociedade do tipo Afrânio Peixoto, alinhando-se no outro os comprometidos com as grandes questões político-sociais da época, optando pelaliteratura como missão”, em cuja pauta avultam o debate abolicionista liderado por Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, o abolicionista e o republicano concomitantemente assumidos por Raul Pompéia, a invocação da ciência em apoio à observação direta dos fatos como fez Euclides da Cunha ou a denúncia do atraso, do preconceito, do arbítrio e das violências político-sociais que impregnam a ficção de Lima Barreto. Em primeiro plano, num tempo como esse, em acentuado processo de transformação, destaca-se o seu caráter bifronte – de um lado o ocaso, o mundo que declina e se exaure, e do outro os sinais de um dia novo de que, por entre sombras, se vislumbra o alvorecer. E, se é verdade que os poetas são a antena da raça, como quer Pound, será difícil identificar um nome de rosto virado para o passado. A maioria fica exposta e encara desafios oriundos de ambos os lados. Figuras privilegiadas, às vezes, se sobrepõem sobranceiras acima dos limites impostos pela visão comensurada ao alcance do próprio limiar. Momentos assim são propícios à afirmação de gênios extraordinários, como foi Giotto na fronteira da Idade Média com o Renascimento, de Cervantes e Camões, ambos com um no Renascimento e outro no Maneirismo, de Marcel Proust sumarizando todas as conquistas do romance literário do Oson dando tanto a vertente, do “tempo perdido” quanto às alternativas da modernidade, o tempo renascido. Retornando ao nosso terreno, se nos indagamos a respeito de quem poderia ter assumido papel análogo no Brasil entre o século XIX e XX, a resposta pode ser uma: Machado de Assis. Sem sombra de dúvida, a ficção machadiana, ao mesmo tempo que sumariza toda a ficção literária do ocidente – de Homero a Flaubert – fazendo-lhe a crítica, a reformula e renova. Não apenas em termos cronológicos, visto que sua obra de peso vem à luz entre 1880 e 1908, mas sobretudo em virtude das mutações por que passam, o romance e o conto de Machado erguem-se como monumentos literários até hoje não superados. Passados exatamente cem anos da publicação de Esaú e Jacó, esse romance continua tão vivo e surpreendente como nasceu naquele centenário 1904. Confirmado pela posteridade como texto resistente às vicissitudes do tempo, clássico e trans-histórico, Esaú e Jacó constrói uma narrativa e tece uma prosa que poderíamos considerar emblemáticas daquele período. Diluição da intriga, descontinuidade narrativa, destaque do fragmentário, requintada sensibilidade às sutilezas de estilo, auto-reflexividade do discurso, relevância das figura do narrador, duplicidade da voz irônica, tudo temperado de humor e afiado de mordacidade crítica, fazem do penúltimo romance de Machado um exemplar perfeito da inquietude moderna, da percepção aguda do momento instável que prenuncia metamorfoses à vista. Por outra, esse mesmo tempo de incertezas repercute na sensibilidade dos chamados menores de maneira completamente diferente. É perplexidade e indecisão que lemos, por exemplo, no sonetoConfusão” de Raul de Leôni:

Alma estranha esta que abrigo,

Esta que o Acaso me deu,

Tem tantas almas consigo,

Que eu nem sei bem quem sou eu.

 

Jamais na Vida consigo

Ter de mim o que é meu;

Para supremo castigo,

Eu sou meu próprio Proteu.

 

De instante a instante, a me olhar

Sinto, num pesar profundo,

A alma a mudar...mudar...

 

Parece que estão, assim,

Todas as almas do Mundo,

Lutando dentro de mim...

(Luz mediterrânea. 1922)

Como se sabe, o tema do eu múltiplo e dividido provém do romantismo, é a visão retrospectiva que o poeta assume. Mas sabemos igualmente que essa a que Hegel chamou de “consciência infeliz”, vai estender-se pelo modernismo a dentro. Perplexo diante de um cenário indefinido e incerto, na voz auto-reflexiva de Raul de Leôni, reverbera no horizonte impenetrável.

Embora competindo com outros, Pré-Modernismo é o rótulo mais usado e difundido. O termo foi usado pela primeira vez por Alceu Amoroso Lima no Quadro sintético da literatura brasileira (1953) para designar o período entre o simbolismo e o modernismo. Delimitando-o entre as datas de 1900 a 1920, Alceu admite o seu caráter eclético,

porque o trecho que vai entre o Simbolismo e o Modernismo se caracteriza, acima de tudo, por não ser resumido numa escola dominante e, ao contrário, compreender a coexistência de simbolistas, realistas e parnasianos, até mesmo os da geração que, em 1920, iriam desencadear o Modernismo.

Alfredo Bosi, não obstante considerar a denominação ambígua, pois tanto pode designar uma simples precedência cronológica quanto uma antecipação de achados do modernismo, a adota no volume VI. de A Literatura Brasileira, precisamente intitulado O Pré-modernismo (1966). Afrânio Coutinho, depois de estender a denominação Impressionismo a todas as artes do final do XIX e começo do XX, na década de 1910 a 1920 uma fase de transição em que predominam traços ora parnasianos, ora simbolistas, ora impressionistas e cuja importância reside no processo de transformações que desaguará no Modernismo. (A literatura no Brasil Vol. IV, 1968,330) Todas essas denominações mereceram e merecem críticas.

Do termo sincretismo como o de transição, pode-se dizer que não apreendem o específico pois todos as fases da história são sincréticas e transitórias, visto que nenhum estilo de época se apresenta esteticamente puro e não se conhece nenhum momento estacionário na história. Por outro lado, tanto Impressionismo quanto Penumbrismo parecem ambos muito restritivos para abrigar, de modo compreensivo, a poesia e a prosa produzidas ao longo desses anos.

Estudos mais recentes tentaram cobrir esse espaço com o conceito de art nouveau, termo transportado das artes visuais para as literárias como, de resto, se havia feito com os designativos barroco e o rococó, e tentado com o impressionismo. De toda maneira, qualquer que seja o termo preferido, ele deve ser conceitual e historicamente bem definido, delimitando com precisão o campo de sua abrangência. Desde 1985, o Setor de Filologia da Casa de Rui Barbosa vinha desenvolvendo um projeto de estudo do período pré-modernista da literatura brasileira. Além da reavaliação do Pré-Modernismo, o projeto se propunha selecionar alguns romances do período e preparar sua republicação em edições fidedignas. Em agosto de 1986, inserida no desenvolvimento do projeto, realizou-se na Casa de Rui Barbosa a exposição Pré-Modernismo: a produção literária e o contexto, reunindo primeiras edições de livros, manuscritos, revistas da época, fotografias de diversos aspectos da virada do século. Durante o período da exposição, um seminário sobre o Pré-Modernismo procurava

relacionar a produção cultural do período ao processo de modernização por que passam então as grandes cidades brasileiras e tenta-se definir a literatura brasileira da última década do século XIX e dos dois primeiros decênios do XX não em função do Modernismo vindouro, nem em função da simples diluição de tendências estéticas da segunda metade do século passado (XIX), mas com base em características peculiares a este período [...]. Tentou-se ali superar a ambigüidade apontada por Bosi, ao mesmo tempo que se produziram textos visando à definição do conceito preenchendo-o de conteúdo próprio.

Do seminário resultou o livro Sobre o Pré-Modernismo (1988) que reatualizou a questão e deu nova vida ao termo, que desde então não deve mais ser sumariamente descartado.

Talvez seja possível, a partir do contexto histórico, ancorar as artes e a literatura do período no concreto de uma situação precisa. Não obstante observar-se no panorama internacional um interregno prolongado de paz, aqui no Brasil, o tempo se apresenta turbulento. As mudanças introduzidas no sistema de trabalho e a transformação do regime político deixam o país na expectativa constante de metamorfoses. A lua de mel dos intelectuais com a República durou muito pouco. Se, no primeiro momento, os históricos ainda se mantinham coesos, a luta desencadeada na constituinte extrema posições e cinde os grupos dando vez a polêmicas entre civilistas e militaristas, nacionalistas jacobinos e políticos liberais. Além das incertezas alimentadas pelo espectro da restauração monárquica, os anos de implantação da República defrontam-se com dificuldades de toda ordem, semeando pessimismo e desencantos. “Esta não é a República dos nossos sonhos”, era a frase que bem traduzia o estado de espírito de uma geração que se entregara confiante e combativa à utopia republicana, e agora se sentia frustrada e desperançada. Desta visão desencantada e cética participavam autores tão distintos entre si como Machado de Assis, Gonzaga Duque e Lima Barreto. Sinais de instabilidade do governo provisório, decretação do primeiro estado de sítio, corrida à bolsa e valorização do câmbio denunciam o espectro da crise política e da desordem financeira. De repente, sai Deodoro e entra Floriano. Em 1893, o Marechal de Ferro enfrenta com dureza a revolta da armada na Capital Federal e a revolução federalista no Sul. Tempo de radicalizações xenofobia dos jacobinos contra a pregação dos liberais. Repressão, censura, prisões, exílios, fuzilamentos são a resposta do governo militarizado. O florianismo persegue, prende, exila, políticos, jornalistas, escritores e determina o fim da vida boêmia no Rio. A revolta de Canudos (1896-1897), ao impor sucessivas e humilhantes derrotas às forças oficiais, dissemina espanto e pesadelos no Brasil do litoral. E a metrópole, que durante mais de três séculos dera as costas ao interior, de repente, sente-se ameaçada pelos fantasmas que brotam do sertão isolado e esquecido. Diante da nação estarrecida, o violento impacto produzido por Euclides da Cunha com Os sertões confere ao episódio dimensões de grandeza épica, denunciando como bárbaras e cruéis práticas e instituições que se presumiam promotoras de civilização.

A economia igualmente se apresenta como um mar revolto. Da noite para o dia, durante a “febre das ações”, que agita o mundo das finanças, acumulam-se riquezas fabulosas nas mãos de alguns privilegiados, como também da noite para o dia, desmoronam fortunas acumuladas ao longo dos anos. A efervescência que transforma a bolsa de valores do Rio de Janeiro num cassino de apostas, e que ficou na história com o nome de encilhamento, toma a forma de uma miragem. “Quem não viu aquilo não viu nada”, diz Machado no capítulo LXXIII (Um El-dorado) de Esaú e Jacó. Acadêmicos de renome como Valentim Magalhães e Emílio de Menezes afoitamente se aventuram no mundo da especulação e dos negócios. Mas, fora do campo do jornalismo e da literatura, escritores fracassaram como empresários, acumulando prejuízos.

A quase totalidade das empresas era fantástica e não tinha existência senão no papel. Organizavam-se apenas com o fito de emitir ações e despejá-las no mercado de títulos, onde passavam de mão em mão em valorizações sucessivas. Chegaram a faltar nomes apropriados para designar novas sociedades, e inventaram-se as mais extravagantes denominações”, ensina Caio Prado Júnior.

Imperativo da época, a paixão de súbito enriquecimento e o conseqüente fracasso deixaram feridas profundas na sociedade brasileira sensibilizando romancistas como o Visconde de Taunay e Júlia Lopes de Almeida cujos respectivos romances O encilhamento – crônica da bolsa do Rio de Janeiro e A falência documentam e reconstituem o clima social e espiritual daquela fase. Do lado da economia produtiva, a crise do café joga regiões prósperas como o vale do Paraíba na rampa inclinada da decadência provocando estagnação e empobrecimento da população de que Monteiro Lobato dá conta em Cidades mortas. O panorama social não é menos desalentador. A substituição do trabalho escravo pelo assalariado joga milhões de ex-escravos no abandono e na miséria. As desigualdades tornam-se mais patentes com as alterações do espectro social. Acelera-se o declínio da família patriarcal, expande-se a classe média urbana e começam a se delinear os contornos de uma nova camada social: a classe operária. Mas, contra o atraso das zonas periféricas e a estagnação de províncias, a Capital Federal, embalada pela ritmo alucinante do progresso material, entrega-se às facilidades da vida “civilizada” e às seduções da vida mundana. E, em flagrante contraste com a face iluminada da cidade que, exposta num palco da fantasia e ilusões, deslumbra e fascina, nos desvãos sombrios acumulam-se bolsões de pobreza. Expulsa pelo avanço do progresso modernizador, a população pobre muda-se para os subúrbios, multiplicam-se cortiços e surgem as primeiras favelas. Aluísio Azevedo e Lima Barreto exploram esse lado sombrio, enquanto Coelho Neto e Gonzaga Duque expõem as luzes da cidade. Em contraponto à trilogia da vida boêmiaA conquista, Fogo fátuo e Mocidade Morta –, temos O cortiço, Casa de pensão, O triste fim de Policarpo Quaresma e Clara dos Anjos.

Atravessávamos então o ciclo do verbalismo (Bilac, Coelho Neto, Rui Barbosa, Euclides da Cunha). O prestígio do beletrismo e o mito do bem-falar e bem-escrever continham as aspirações dos intelectuais indiferentes às grandes questões da época, e pareciam satisfeitos com as reverências e o culto que lhes tributava o círculo restrito da elite letrada. Contra o zelo dos puristas do vernáculo, como Rui Barbosa, Castro Lopes e Osório Duque Estrada, contrasta o culto ao estrangeirismo que invade os textos de João do Rio. À austeridade do Positivismo e ao pretenso rigor cientificista, contrapõe-se a cultura do ornamento, a vaga de riso e do bom-humor. A iniciativas de profissionalização da atividade do escritor opõe-se o gosto do improviso e a dissipação da vida boêmia. Face à literatura-sorriso da sociedade, contrapõe-se a careta das charges e o rictus do grotesco mórbido. Em cena a veia cômica. “O palco no final do século dezenove [...] descobrira que o que o público desejava era rir”, afirma Décio de Almeida Prado (O tribofe. Pós-fácio, 257).

A imprensa se moderniza e cresce em importância. O Rio fim-de-século (XIX) é centro de excepcional animação e efervescência cultural e política. A filosofia positivista de Augusto Comte e as doutrinas evolucionistas de Spencer mobilizam espíritos. Um anticlericalismo militante investe contra a Igreja. A campanha abolicionista intensifica-se e a propaganda republicana ousa audácias de revolução. Nas páginas dos grandes jornais rola a polêmica. Dois animadores se destacam: José do Patrocínio que, na Gazeta da tarde e Cidade do Rio, abriga um grupo seleto de escritores, enquanto Ferreira Araújo, na Gazeta de notícias, emprega um elenco do mesmo quilate. O prestígio dos homens de letras se irradiava a partir de periódicos como A estação, um jornal de modas com suplemento literário, Vida moderna de Artur Azevedo e Luís Murat, a Gazeta literária de Capistrano de Abreu, Revista da semana, órgão de informação ilustrado e popular, abrindo espaços para a publicação de contos e romances. A Fon-Fon (1907) e a Careta (1908) privilegiam o humor, enquanto O malho (1902) insiste na crítica. Kosmos (1904) de feitio moderno, pretendendo ser um álbum de “nossas belezas naturais, dos primores de nossos artistas” e embora desse abrigo à nota mundana e social, era uma revista de cultura com predomínio da parte literária emoldurada de ilustrações e fotografias. O elenco de colaboradores reunia nomes consagrados tendo sido a revista mais charmosa do nosso 1900, coincidindo o seu aparecimento com a abertura da Avenida (1904) (Cf. Brito Broca, 228-9). Floreal (1907) de Lima Barreto surgia em oposição aos círculos fechados e contra os medalhões da época. O pirralho (1911), a mais importante de São Paulo, representava bem o nosso pré-modernismo submetendo literatura, política e sociedade aos acentos do humor. Lançou nomes que se tornaram famosos como o de Voltolino, o maior caricaturista da vida paulistana e Juó Bananere, que, através de uma linguagem macarrônica, transpirava irreverência e demolição. Oswald de Andrade, o grande animador, publicou ali alguns capítulos das Memórias sentimentais de João Miramar (1924). Prenunciando o Modernismo, em 23/01/15 registrava, entre aspas, a expressãoliteratura futurista”, primeira referência à vanguarda, que se tornaria pedra de escândalo na primeira década da militância modernista.

Praticamente todos os escritores militam nos grandes jornais, neles publicando não as suas produções literárias, mas também participando vivamente dos debates e polêmicas travadas em torno de questões como abolicionismo, republicanismo, evolução, progresso e modernização. Como decorrência da introdução dos processos de reprodução fotomecânica, a partir do início dos anos de 1880, a imprensa ilustrada no Brasil inicia uma nova fase com a reprodução sistemática de fotografias. É a Revista da semana que pela primeira vez no Brasil imprime texto e imagem numa mesma máquina, e ao mesmo tempo, foi a primeira revista ilustrada que conseguiu, entre nós, implantar um modelo de foto-reportagem que perdura até os dias atuais. Através da charge e da caricatura, aumenta o poder da sátira e da crítica política, presentes nos textos impressos. Rompendo convenções, cronistas, contistas, críticos, folhetinistas fazem da irreverência moeda corrente. Jornalismo e literatura competem, por vezes, no mesmo espaço. E, nas reportagens de João do Rio, é difícil decidir onde termina o jornalismo e onde começa a literatura. Tratava-se de uma relação crucial. (“O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?” – perguntava João do Rio no questionário dirigido aos 28 escritores mais famosos e consagrados na época – 1904).

Por outro lado, o jornalismo torna-se assunto de invenção literária. O arbítrio dos senhores da imprensa e as intrigas da redação de um grande jornal, como sabemos, é a matéria principal das Recordações do escrivão Isaías Caminha, romance de estréia de Lima Barreto. No capítulo VIII, todo dedicado à descrição da atividade febricitante desenvolvida na sala de redação do jornal O globo, o narrador faz a sátira da grande imprensa. Ali se impõe o poder autoritário do diretor-proprietário, a ascendência presunçosa do redator-chefe sobre a mediocridade de inteligência e a subserviência de caráter dos redatores. Em justificativa à presença forte do traço caricaturesco, Lima Barreto diz que pôs “certas figuras e o jornal, [...] para escandalizar e provocar a atenção”.

Foi ainda na prática jornalística que se inventou a crônica como forma literária inteiramente nossa: Cronica tota nostra est, escreve Tristão de Ataíde parodiando Quintiliano, que afirmara: Satira tota nostra est. Todos os grandes escritores da época contribuem para a configuração e consolidação do gênero. Mas é graças ao talento de Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio, que a crônica tomou corpo, assumiu fisionomia própria e se estabilizou como forma literária autônoma. Com graça, ironia e humor, Machado imprimiu-lhe agilidade e leveza de linguagem mesclando nos faits-divers, “o útil ao fútil”, ao comentar, com sutileza e fina ironia, os acontecimentos da semana reunidos numa mesma coluna. Lima Barreto, interessado em estabelecer um compromisso entre o escritor e o público, manejou-a como arma de militância crítica, desnudando veleidades, presunções, preconceitos, engodos e misérias da sociedade em que vivia. João do Rio, por sua vez, deu-lhe o feitio da reportagem moderna para com ela penetrar a fundo nos desvãos da sociedade relegados ao esquecimento. De maneira inédita, o autor de A alma encantadora das ruas desvendou zonas de prostituição, invadiu presídios, documentou práticas religiosas e festividades populares. Ele trouxe para a crônica a experiência do repórter que, freqüentador dos salões,

varejava também as baiúcas e as tavernas, os antros do crime e do vício. Subia o morro de Santo Antônio pela madrugada com um bando de seresteiros e ia aos presídios entrevistar os sentenciados.[...] A crônica deixava de se fazer entre as quatro paredes de um gabinete tranqüilo, para buscar diretamente na rua, na vida da agitada cidade o seu interesse literário, jornalístico e humano. (Brito Broca, 247)

Adotando atitude contrastante em relação à mentalidade que se servia da literatura como frívolo passatempo, Lima Barreto, afrontava ostensivamente o establishement, adotando posições contrárias às convenções então imperantes. Estudada por Brito Broca, num livro que se tornou obra de referência obrigatória (A vida literária no Brasil – 1900 (1956)), a vida literária no Rio de Janeiro desdobra-se então em dois cenários distintos: o oficialformal e solene, exibia, nas tribunas do judiciário e do parlamento, opulência de linguagem e riqueza vocabular enorme. Embora com mais sobriedade, a voz oficial fazia-se ouvir igualmente nas sessões da ABL sob o comando de Machado e, mais informalmente, na livraria Garnier. O discurso não oficial corria paralelo nos tempos e espaços de lazer liberados pela urbe modernizada. Era a vida boêmia que se comprazia no brilho fugaz de improvisos e repentes, nas “respostas rápidas e espirituosas às mais diferentes situações” (Mônica, 44),. O Rio, elegante e mundano, deslumbrado com as luzes da belle époque – progresso e modernidade – torna-se ambiente propício ao surgimento de figuras exóticas como o flâneur e o dândi, que circulavam pelas ruas e casas de diversão da metrópole, (botequins, cafés, confeitarias, sorveterias), que então aspiravam rivalizar com as melhores do gênero em Paris e Londres. A moda, oscilando ao sabor do momento, deslumbrava o Rio da belle época, preservando sabores antigos e importando novidades. Em 29/7/07, João do Rio escrevia na Gazeta de Notícias:

– Há 7 pecados mortais, 7 maravilhas do mundo, as 7 idades do homem, os 7 sábios da Grécia, as 7 pragas do Egito... O Rio tem 7 prazeres: o bicho, o maxixe, a vissi d’arte, os meetings da oposição, a polícia, a propaganda [...] e os cinematógrafos.

A chamadacultura da modernidade” instaurada no final do XIX muda a percepção das coisas e do tempo: é preciso fruir as sensações do presente que os dias são fugazes. É de Machado de Assis a observação: “depois da Guerra do Paraguai, nãodúvida de que os relógios andam muito mais depressa”.Mônica Pimenta Velloso acrescenta: “Inovações tecnológicas como o telégrafo sem fio, o telefone, o cinematógrafo, a fotografia, o avião, o automóvel modificam radicalmente a percepção e a sensibilidade humanas.” As transformações do meio e do momento comparecem no texto literário através de um conjunto de traços, tais como: fragmentação do discurso, descontinuidade da narrativa, relevo plástico da imagem, ampliação do diálogo intertextual, diversidade e hibridização de registros de linguagem, concomitância de ritmos e tempos históricos diferentes etc...

O poeta Raul de Leôni anteviu o surgimento de uma nova arte decorrente dessa nova visão do mundo gerada a partir da experiência da vida moderna:

A ciência moderna, provocando uma espantosa aceleração de todos os ritmos da vida exterior, criou, logicamente, para o homem uma necessidade de síntese extrema de todos os movimentos e operações do seu mundo psíquico. Obrigado a viver mais depressa, ele teve de sentir, de pensar e de agir mais depressa, e, em conseqüência, de dar uma expressão mais rápida ao que sente, ao que pensa, ao que faz, ao que vive. Sua arte, para ser uma coisa viva, deverá ser portanto extremamente sintética, intensa, dinâmica, livre, consistindo, quase, em pura sugestão, em que se condense, no recorte de uma imagem, todo um mundo de idéias associadas. Economia de formas. Arte de um homem que não pode perder tempo interior

(Apud Castañon Guimarães, 51)

A nova arte, que então dominou o mundo da arquitetura, pintura, escultura, decoração, cartazes, encadernação, gravura, desenho, ilustrações, em suma, todo o repertório das artes visuais, é conhecido sob o rótulo de art nouveau, denominação do estilo de arte e vida característico da belle époque. Partindo dos livros de B. Champigneulle: A “art nouveau”. São Paulo, EDUSP, 1976; Martin Battersby: Art nouveau. Rio de janeiro, Ao Livro Técnico, 1985; P. Wittlich: Art nouveau 1900. Praga, Polygrafia, 1975, apresento um esboço didático desse estilo. Informações a respeito de sua chegada e implantação no Brasil foram colhidas no livro de Patrícia de Vasconcelos: Interiores. Rio, Sextante, 2002.

O nome Art nouveau surge em 1895 por ocasião da abertura de uma loja especializada em estilo moderno e em 1900 é termo de uso generalizado, aplicado às artes da decoração que entraram em alta atividade na França durante o período de 1890-1900. A expressão designa um estilo decorativo caracterizado pela leveza e assimetria das formas inspiradas em motivos florais, temas da natureza postos a serviço da beleza feminina. Numa época em que os aposentos apareciam atulhados de móveis cercados de peças decorativas, todos os objetos devem mostrar á superfície vida e movimento de modo a agradar os olhos. Um móvel, um tecido, um lustre, uma tesoura, qualquer objeto, deve ser tão digno de atenção quanto uma estátua ou um quadro. Linhas curvas e flexíveis, paredes em tons de rosa ou verde, suaves matizes, traços tênues. O novo estilorelevo a mulheres e flores, consideradas ambas como expressão máxima do que é puro e delicado. A beleza excêntrica e duradoura da arte japonesa, combinada com o que havia de melhor no Roccó francês, dominam o estilo novo e o espírito da arte de decoração francesa em 1893. Na exposição universal de 1889 (centenário da Revolução Francesa), afirma-se o objetivo de unir a indústria com a arte através da exploração de técnicas avançadas de construção, do uso de novos materiais como o ferro, o vidro e a cerâmica, tudo embelezado com adornos esmaltados e envernizados.

Paris, mais do que nunca, era então a cidade dedicada ao prazer. Mulheres extraordinárias como Sarah Bernhardt no teatro, Loie Fuller dançando no Folies Bergère, no Ballet de l’Opéra, Clode de Mérode, “a mulher mais linda da França”, dominavam a cena parisiense e deslumbravam o mundo. Estatuetas em bronze dourado de dançarinas, figuras femininas desnudas e eróticas, gravuras japonesas, vestes esvoaçantes, jóias de ouro e prata, pentes esculpidos em forma de flores ou insetos, salpicados de diamantes, enobreciam o culto da feminilidade. A natureza era a fonte donde se tiravam formas de plantas, de frutas e de flores bem como figuras pré-históricas ou insetos, principalmente a libélula, la libellule, muito querida dos desenhistas da época. Emil Gallé, um dos maiores artistas em vidro de todos os tempos e quase sinônimo de art nouveau estava convencido de que a natureza devia constituir a base da nova escola de desenho e, por isso, escolheu como lema os dizeres inscritos acima da porta do seu ateliê: “Nossas raízes encontram-se dentro das florestas, entre os musgos e perto das fontes” – lema inspirado no pensamento de Moleschott que dizia: “São as plantas que nos unem à terra; elas são as nossas raízes.” Cartazes bastante coloridos eram abundantes e tornou-se moda colecioná-los. A arte da encadernação chegou a extremos como o de ser necessário colocar o livro em uma posição fora do comum para poder ser apreciado. O enfeite de placas metálicas impediam que os volumes pudessem ser colocados em estantes sem danificá-los. Moda na virada do XIX para o XX, o art nouveau completou cedo o seu ciclo e em 1905 o movimento estava praticamente encerrado em Paris, embora algumas manifestações sobrevivessem até por volta de 1914.

O art nouveau chegou ao Brasil por volta de 1900, através de revistas européias e americanas, catálogos de arquitetura e de livros. As revistas brasileiras Renascença, Malho, Careta, Fon-Fon, Íris, A avenida, Pirralho e Kosmos reproduziam os modelos estrangeiros. Nas charges e caricaturas de J. Carlos, Voltolino, Raul Pederneiras, Kalixto e Di Cavalcanti, encontram-se exemplos de adaptação brasileira ao linearismo artenovista. Na virada do XIX e primeiras décadas do XX, um grupo de intelectuais impregnados de uma visão satírico-humorista se congrega e expressa através de caricaturas e sátiras. Mônica P. Velloso:

O humor é um dos sinais mais expressivos da modernidade carioca [...] Pelo seu caráter de impacto, condensação de formas, ilustração do cotidiano e agilidade na comunicação, apresenta-se como uma linguagem identificada com as demandas da modernidade.

Mônica estreita conexão entre caricatura e modernidade.” Mas, além das revistas, chegavam da Europa, particularmente da França, produtos industrializados e materiais de construção e decoração, como ferro, mármore, madeira, louças, vitrais e porcelanas. O novo estilo foi adotado no Brasil como a última moda, convivendo, freqüentemente, com composições ecléticas, que misturavam linhas arquitetônicas modernas com os elementos característicos dos estilos históricos (neoclássico, renascentista, rococó etc). Raro, afirma Paulo Santos, é o prédio do centro da cidade do Rio de Janeiro construído por volta de 1910 cujas grades não sejam art nouveau. A linha serpentina com o típico vergalhão quadrado de ferro, submetido a caprichosos movimentos, recebia nas extremidades motivos florais. Embora os interiores dos edifícios nem sempre acompanhassem os estilos das fachadas, os ambientes, nas casas reformadas, eram decorados com riqueza e exuberância, em que entravam cerâmica, azulejos, vidros, lambris, lustres e vários objetos importados. Os ferros das escadas, dos vitrais, das clarabóias e dos guarda-corpos ostentavam ramos de lírios, violetas e íris de inspiração art nouveau. A luz filtrada pelos vidros coloridos das clarabóias e dos vitrais, valorizava a decoração. As linhas curvas e as formas vegetais eram largamente usadas nos entalhes de madeira dos móveis e vitrines. As confeitarias estavam na moda, recebendo para o chá ou o lanche a sociedade rica e elegante. As mais bem freqüentadas eram a Paschoal, o Braço de Ouro, a Déroche, o Café Paris e o Café Rio. O mobiliário e os elementos usados na decoração, como vitrais, espelhos, e gradis de inspiração francesa, atendiam aos padrões de exigência das classes mais altas.

A Confeitaria Colombo, criada em 1894, passaria por várias reformas até atingir o auge do requinte e da fama na década de 1920. Em 1894 a maior parte dos intelectuais boêmios transferiu-se da Pascoal para a Colombo. Emílio de Menezes batizou sua mesa, onde compunha seus sonetos, de “gabinete de trabalho”. A roda da Colombo era freqüentada também por políticos, altos funcionários, empresários e capitalistas, que geralmente pagavam as contas dos boêmios. A sua importância como ponto de reunião cresceu depois que o poeta Olavo Bilac e seus amigos tornaram-se presenças assíduas na casa. A reforma de 1912, transformando a antiga sala num amplo salão feericamente decorado, fez dela o templo do estilo art nouveau.. A clarabóia de vidros coloridos ainda hoje projeta no salão uma luminosidade especial, ampliando-se nos reflexos dos espelhos de cristal que cobriam as paredes laterais. Cristais belgas, molduras de jacarandá talhadas por Antonio Borsoi transpiravam espírito moderno através de formas decorativas que pareciam crescer naturalmente, formando um todo harmônico. A nova Colombo, inaugurada em 1913, era o ponto chique do chá das cinco. As melhores famílias, indo às compras, não deixavam de fazer seu lanche na Colombo. Depois das seis e até as oito, as cocotes substituíam as famílias, contagiando o ambiente com sua alegria e agitação.

Se é verdade que o art nouveau conforma o ambiente e invade todas as formas de expressão do período, é de supor que também se estendeu ao domínio da literatura. José Paulo Paes, em dois capítulos de Gregos e baianos (1985), estuda a presença de componentes artenovistas na literatura brasileira da época numa perspectiva que não a das histórias literárias. Depois de afirmar que o art nouveau é um estilo de época comum à arquitetura, pintura, desenho, e artes aplicadas à decoração, como mobiliário, vitrais, adereços, tipografia, ilustração, vestuário, cartazes a encadernação bem como à poesia e à prosa de ficção, estendendo-se ainda à filosofia, à ética e ao comportamento. Arte típica da belle époque, longo interregno de paz que vai de 1870 à primeira guerra mundial, durante o qual, prosperou uma rica sociedade burguesa, brilhante e fútil, amante do luxo, do conforto e dos prazeres. Na literatura, o traço típico desse estilo seria a escrita artística, a écrite artiste dos irmãos Goncourt na França, de Oscar Wilde na Inglaterra e de Raul Pompéia no Brasil. Então, o escritor aburguesado destrona a figura do boêmio e dá lugar ao dândi. João do Rio, nome literário de Paulo Barreto, elegantemente trajado com seu chapéu-coco, monóculo e polainas, suas ficções mescladas de observações da vida cotidiana e de elementos de invenção fantástica, suas crônicas em forma de reportagens e enfeitadas com palavras inglesas e francesas, representaria socialmente o papel típico do dândi e literariamente o do escritor artenovista. Nas tentativas de fixar elegâncias e vícios mundanos da belle époque, figuram ao lado de João do Rio, romancistas como Afrânio Peixoto (A Esfinge), Theo Filho (Dona Dolorosa), Benjamin Costallat (Guria), Hilário Tácito (Madame Pomméry). A esfinge (1911) – pintura minuciosa do alto mundo carioca, dos salões aristocráticos, do meio diplomático e político, da sociedade elegante que vai veranear em Petrópolis, conquista o mundo feminino e colhe êxito mundano. O essencial do romance consistia nos quadros do ambiente do Rio da belle époque quando a Capital se modernizava e procurava em tudo imitar Paris. Antípoda do dândi, Lima Barreto dirige-se aos subúrbios em busca dos estratos onde vive a cultura popular. Para ele a flânerie será motivo de reconhecimento das discrepâncias sociais da cidade. Faz do passeador Gonzaga de Sá o flâneur que percorre ruas e bairros para flagrar momentos distintos e fixar paisagens a partir de ângulos inéditos. Alheio aos requintes da escrita artística, interessa-lhe mais captar o quotidiano com suas asperezas e sinalizar as pegadas históricas impressas na paisagem urbana. Caracterizando o personagem peloabuso que fazia da faculdade de locomoção”, acompanha.

Gonzaga de Sá [enquanto] andava metros, parava em frente a um sobrado, olhava, olhava e continuava. Subia morros, descia ladeiras, devagar sempre, e fumando voluptuosamente, com as mãos atrás das costas, agarrando a bengala. (V – O passeador, 63)

Ia em procura de sobrados, das sacadas, dos telhados, para que à vista deles não se lhe morressem de todo na inteligência as várias impressões, noções e conceitos que essas cousas mortas sugeriram durante aquelas épocas de sua vida.

Reformulando o voyeurismo do flâneur, Gonzaga de Sá, se afasta do puro diletantismo que caracterizava o tipo, para encarnar nele o papel do historiador ambulante que, tendo memorizado os mínimos detalhes da cidade, iria fazer-lhe a história oral, animando-a numa narração plástica, “pontilhada de graça, de considerações eruditas, de aproximações imprevistas.” A prosa seca, despojada dos artifícios de efeito sedutor, coloca Lima Barreto à parte de prosadores esteticamente requintados como Raul Pompéia e João do Rio. Contemporâneo desses autores e imerso na atmosfera belle époque, o autor do Policarpo desafina em relação ao tom dominante.

Raul Pompéia, o primeiro a praticar entre nós a escrita artística, também chamadaprosa de arte”, antecipa a moda do estilo adornado e construído com vistas a surpreendentes efeitos. Para Pompéia a linguagem tem de ser eloqüente para ser artística e, tanto na prosa quanto no verso, o grande fator de relevo são as imagens plasticamente trabalhadas e sensivelmente ritmadas. Atingindo quase a indistinção entre poesia e prosa nas Canções sem metro, em O Ateneu metáforas e imagens contundentes “ornamentam” o seu estilo. O livro foi anunciado em 8/4/88, como romance inteiramente moderno, sem intriga, de pura observação e finura crítica passando por temas escabrosos com a delicadeza e o tato de um consumado artista. A narrativa se compõe à maneira de um mosaico formando um conjunto de quadros que, embora integrados no todo, valem por si mesmos. Abre a série a imagem apoteótica do Ateneu em dia de gala tendo à frente a figura caricata de Aristarco, autopromovido a maior promotor da educação nacional. O último quadro, antiteticamente oposto ao primeiro, mostra o colégio em ruínas depois de destruído por incêndio criminoso. Aristarco, arruinado, é agora a imagem da derrota: “aquilo não era um homem, era um de profundis”. Permeando o discurso ficcional, a galeria de retratos de adolescentes internos, desfile de paixões, invejas, traições e amizades. De permeio insinuam-se três figuras femininas: Melica, a filha do diretor, que gostava de visitar o colégio para derramar com altivez, mistura de sexo e hierarquia, e despejar os seus desdéns sobre a idolatria de trezentos corações apaixonados. Ângela, a criada canarina, quesob a viseira impenetrável do pudor”, “rodava em explosão o sabah das lascívias”. E Ema, esposa do diretor, que se aproxima de Sérgio com ternura de mãe e a sensualidade de uma alucinação erótica. Narrado em primeira pessoa, o texto é dado a partir do ponto de vista de Sérgio adulto rememorando as experiências dos dias de internato. A perspectiva memorialista é responsável pelo tom lírico, nostálgico e melancólico. Numa primeira crítica do livro, Araripe Júnior afirma que “Sérgio não é Sérgio. Sérgio é um composto de transfigurações dolorosas.” Perspectivas caleidoscópicas combinadas na composição do todo, conferem a’O ateneu posição singular na história do romance brasileiro. “Primeiro romance psicológico”, disse dele Araripe, a que não se pode deixar de acrescentar: primeiro exemplar da escrita artística à maneira impressionista dos Goncourts, primeira sátira implacável à violência das instituições fechadas como a praticada contra adolescentes no internato do colégio, revelação de extremos de sensibilidade ante os valores melódicos e plásticos da língua literáriafenômeno de hiperestesia – como o mesmo Araripe denominou essa “exageração da função artística”.

em Adelino Magalhães e Graça Aranha, a marca artenovista deve ser localizada no efeito estético visado. No primeiro, rotulado de impressionista, transparece o processo de captação fragmentada do instante, lampejos de inventividade moderna ornada de neologismos e hipérboles gritantes. O Canaã de Graça Aranha é um romance de tese de ranço racista em que ao nativo, “rebento fanado de uma raça que se ia extinguindo”, contrapõe-se à energia dos colonos alemães. Da síntese de ambos surgirá, de acordo com a visão do autor, o “futuro povo”. Tanto em relação vitalismo nietzschiano quanto ao fascínio encantatório da terra transparece o espírito art nouveau, que se materializa em determinadas cenas de efeito feérico como a de Maria adormecida na floresta, corpo coberto de pirilampos acesos, homólogo brasileiro daquelas misteriosas mulheres revestidas de pedrarias de Gustav Klim, o maior pintor vienense no período áureo do Império Austro-húngaro. Assim, traços que Afrânio Coutinho aponta como características do impressionismo, Paes identifica com a voga artenovista, que, segundo o ponto-de-vista que defende, cobriria tanto a prosa quanto a poesia da época. De Pompéia a Euclides, de Augusto dos Anjos a Adelino Magalhães. O eterno feminino, agora sob as aparências da mulher moderna, liberta dos preconceitos e das convenções vigentes, chega com a Lola de A capital federal de Arthur Azevedo e Madame Pomméry de Hilário Tácito a extremos da prostituição de alto bordo. Traço relevante desse tipo de narrativa é a dissolução de fronteiras entre os gêneros literários, estabilizados desde a retórica clássica. Lima Barreto descreve:

O livro de Hilário Tácito obedece a esse espírito e é esse o seu encanto máximo: tem de tudo. É rico e sem modelo; e, apesar da intemperança de citações, de uma certa falta de coordenação, empolga e faz pensar. Vale sobretudo pela suculenta ironia de que está recheado, ironia muito complexa, que vai da simples malícia ao mais profundo humour, em que assenta afinal o fundo de sua inspiração geral. (Impressões de leitura, 116)

O verbalismo ornamental culmina em Rui Barbosa, Coelho Neto e Euclides da Cunha. Nesses autores a exuberância léxica, a solene empostação retórica, a caça de efeitos visuais e auditivos lembram a pletora de elementos decorativos nos interiores artenovistas, repletos de alfaias, bibelôs e móveis caprichosamente enfeitados. Num pequeno artigo de jornal (4 páginas), intitulado “Pornéia” e publicado em 12/12/1899, Rui Barbosa usa vinte sinônimos de prostituta, nunca repetindo a mesma palavra e empregando sempre termos eruditos.(Cf. zabaneiras,Vênus, Afrodite, crápula, rascoas, traviatas, michelas, marafonas, Madalenas, Dalilas, hetairas, perdidas, meretrizes, barregã, prostitutas, odaliscas, rameiras, messalinas, cortesãs, frinéias, ralé venérea)

Os sertões, além da opulência verbal, busca a fusão da ciência com a literatura que se era ambição do romance naturalista, em Euclides ganha a força expressiva da descoberta pessoal de uma natureza atormentada e violenta. Pode-se, no entanto, ver nessa composição um traço próprio do art nouveau que aproximava natureza e cultura, elaborando produtos técnicos inspirados em formas naturais. Mas o verbalismo alcança também a poesia. Nem é preciso ir aos parnasianos para identificá-lo. Basta lembrar a conhecidaAntífona” de Cruz e Sousa em que os adjetivos rolam em avalanche: alvas... brancas... claras.. vagas... fluidas... cristalinas... errastes... mádidas... indefiníveis... trêmulas... estremas... serenos... flébeis... soluçantes... volúpicos... sutis... suaves... mórbidos... radiantes... dispersos... inefáveis... edênicos... aéreos... etc., etc. O recurso ao vocabulário científico da época, expressivamente utilizado na “prosa de arte” de Euclides, pode também ser identificado na poesia de augusto dos Anjos. Adensando-lhe a expressão lírica, o vocabulário exógeno combina perfeitamente com a dramaticidade do seu discurso. No ensaio “A costela de prata de A. dos Anjos”, Anatol Rosenfeld vale-se da expressão de Adornoexogamia lingüísticapara designar a conexão da terminologia clínico-científica com o ambiente poético, a montagem do termo técnico no contexto tradicional. Ante o impacto dessa poesia, tanto o ser humano quanto a linguagem metafórica se desagregam desmascarando a superfície harmônica e açucarada do pacato mundo burguês. No mundo de A. Dos Anjos, o verme é o operário das ruínas, o luar é “da cor de um doente de icterícia”; a luaparalelepípedo quebrado”, os astros reduzem “os céus [...] a uma epiderme de sarampo”. Neste mundo reina a “matilha espantada dos instintos”, o calçamento copia “a polidez de um crânio calvo” e a sombra transforma-se empele de rinoceronte”. (1969: Texto / contexto, 261).

Paes lembra que o art nouveau não foi apenas aquelesorriso da sociedade” proposto por Afrânio Peixoto, na belle époque carioca de Pereira Passos. Isso porque, no artenovismo brasileiro, além da literatura-sorriso de que as crônicas sociais e os romances mundanos de João do Rio são a ilustração mais acabada, havia uma literatura-esgar com o seu gosto mórbido e cruel. Tal pendor para a morbidez vinha do decadentismo literário fin de siècle e é assumido integralmente por Augusto dos Anjos.“Poeta do hediondo”, AA, em franca ruptura com o sediço bom gosto parnasiano-simbolista, cultivava o “horrendo mau gosto”. O anseio de penetrar na intimidade das coisas, aquela “pátria da homogeneidade”, evocada emDebaixo do tamarindo”, aproxima-se das estruturas sintéticas das formas animais em processo de dissolução, “química feroz dos cemitérios” celebrada nos versos de “Os doentes”. Ainda o signo da morte, o poeta lança mão de uma linguagem metafórica impregnando o texto de um vocabulário oriundo da biologia, anatomia, microbiologia, é a “bacteriologia inventariante” do “Monólogo de uma sombra”, para induzir o leitor ao efeito de estranhamento, próprio dos inovadores antiacadêmicos. O ornamentalismo verbal oriundo de uma pletora cientificista da linguagem, longe de denunciar aparato decorativo de superfície, consubstancia uma visão poética desencantada e angustiante do mundo. Como se sabe desde Max Weber, o mundo desprovido de magia e dessacralizado, essa visão desencantada do mundo marca de modo indelével a modernidade. A confiança na ciência e a no progresso material viriam, de alguma forma, compensar a perda de referências e valores transcendentes. De uma parte, o ceticismo melancólico e de outra, o cientificismo utópico. O macabro patético explorado por AA vinha de Baudelaire que, visitando recorrentemente o tema da morte em As flores do mal, gravou na memória da posteridade, em imagens repugnantes, a visão desencantada do poeta. No poema “Uma carniça”, essa estética de choque chega ao extremo de se deter na contemplação de um corpo de mulher apodrecendo na rua, à luz de uma “bela manhã radiante”.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saíam negros bandos

De larvas, a correr como líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

O legado macabro de Baudelaire, traduzido pela primeira vez entre nós por Teófilo Dias, repercutiu vivamente na poesia brasileira da primeira geração simbolista como se pode ver em muitos poemas de Cruz e Souza como nos versos: Múmia de sangue e lama e terra e treva / podridão feita deusa de granito (Múmia); Vala comum de mortos que apodrecem, / esverdeada gangrena (Tédio) / Vermes, abutres a correr pedaços / da carne deletéria.(Tédio); Olhos que foram olhos, dois buracos / agora fundos, no ondular da poeira... / Nem negros, nem azuis e nem opacos. Caveira! (Caveira); Mas ah! Quanta ironia atroz, funérea, / imaginária e cândida (Princesa); és igual a uma simples camponesa / nos apodrecimentos da Matéria! (A ironia dos vermes).

Num texto de duas páginas de prosa poética, Gonzaga Duque elege o sapo como imagem grotesca do poeta:

Ah! Triste vivente, asqueroso batráquio, horrendo sapo!... que doce alma de poeta tu possuis! Bom e simples animal, solitária e inofensiva criatura, ninguém te quer, ninguém te ama, porque és feio, és feíssimo, tens o aspecto nojento de uma bostela, e porque não ofendes, e porque não seduzes, a maldade dos homens, que é a normalidade humana, te repele, te injuria, te assassina! [...] És sapo! Sapo! Irmão dos desgraçados que se amamentaram na Desgraça, igual aos infelizes que nasceram da Infelicidade, enxotados, batidos, infamados, porque ninguém os quer ouvir, ninguém os quer amparar!... / A tua pele é negra e horrenda,a tua forma enoja, os teus gestos, os teus movimentos, a tua obscuridade irritam... não, não podes ter um,a alma, não podes ser bom. És mau e estúpido. Por quê? Porque és sapo, unicamente sapo!... sapo!... (in Panorama do movimento simbolista brasileiro, I, 202-3)

Essa vertente que Mário de Andrade definiria mais tarde como o “belo horrível” emerge com força e inaugura um processo de inversão poética em que os pólos comparecem com sinal trocado: o sublime é degradado e o grotesco, sublimado. Postos na gangorra, o poeticamente enobrecido decai, enquanto o vulgar e prosaico é promovido a níveis superiores de consideração. A subversão coloquial-irônica provoca curtos-circuitos, adequando a intensidade lírica ao sermo humilis mesclando vocábulos procedentes de estratos distintos da língua. O sapo e o charco usurpam agora o lugar do sabiá e da palmeira que os românticos tinham emblematizado. A inovação verifica-se particularmente em alguns poetas isolados e resistentes a enquadramentos formais. Na tradução de Pedro Kilkerry do poema Le crapaud de Corbière, justamente o sapo, “essa contra-imagem que percorre o Simbolismo e vai desaguar em Bandeira” (Sebastião Uchoa Leite: Crítica clandestina, 100), pode ser tomado como súmula dessa inversão de valores poéticos. A dessublimação de sabiás e rouxinóis ocorre explícita nos versos: “Mas, olha-o, sem asa, é um poeta pelado / O rouxinol da lama [...] – E o sapo, não sou eu?” (in Augusto de Campos: Re-visão de Kilkerry, 81) De Baudelaire a Corbière, de Cruz e Sousa a Kilkerry, no entanto, vai uma grande distância, abrangendo um percurso de transformações poéticas de dimensões inéditas. A vertente mais radical do Simbolismo, identificada com o estilo coloquial-irônico – registro dominante na poesia de Corbière e Laforgue – pode, entre os nossos simbolistas, ser rastreada nos textos de Pedro Kilkerry, Marcelo Gama, Gilka Machado, Maranhão Sobrinho, Mário Pederneiras. Além de Augusto dos Anjos, temos meia dúzia de autores, atuantes e inovadores, cuja lembrança vem preencher a tal de lacuna assinalada por historiadores e críticos literários: a precariedade da poesia durante o chamado Pré-Modernismo. Desenvolvendo a idéia de que no período “a posição mais desconfortável cabe certamente à poesia”, Júlio Castañon Guimarães (in Sobre o Pré-Modernismo, 83-102) recapitula juízos negativos como o de Alfredo Bosi: “ que, sem meios-termos, refere-se à “geral caducidade da poesia pré-modernista”; de Luciana Stegagno Picchio, segundo a qual “de um ponto de vista estilístico, a denominação Pré-Modernismo cabe melhor aos prosadores que aos poetas.”(História da literatura brasileira, 52); de José Paulo Paes, que considera que “as suas marcas [do Pré-Modernismo] não são significativamente visíveis na poesia.”. A quase unanimidade de tais julgamentos parece não levar em conta uma plêiade de poetas dos mais inventivos do período que, por se terem afastado radicalmente dos padrões vigentes, tornaram-se de difícil assimilação e permanecido por muito tempo excluídos do círculo dos eleitos, condenados que foram à “treva inferior” dos “poetas malditos”. Caso típico é o do maranhense Maranhão Sobrinho. Circulando entre o seu estado natal e a Amazônia, ele gozou em vida de prestígio e fama regional tendo sido considerado pelos seus contemporâneos como o maior poeta da época (1879-1915) no Norte. Autor de alguns textos desabusados que vão de encontro ao gosto então imperante, aqui e ali deparamos com notas dissonantes e atitudes provocativas prenunciando certas posturas da década de vinte. É o caso do poemaPoetas malditos”, expressão inventada pelos simbolistas franceses, onde ao longo de sessenta versos, Maranhão revive o tema do satanismo emplacado pelos românticos, agora reformulado e transposto para um registro sarcástico e auto-irônico. Parodiando Dante, Maranhão desce à “Treva Inferiorpara contemplar o “horror da satânica orgiaentre gritos, imprecações, o delírio dos condenados “que as chamas retalhavam”. Mas o registro mais revelador da intenção do poema está no encontro com a família de poetas de sua eleição. “Nas grutas do Demônio”, ele encontra Tristan Corbière “cantando umas canções remotas”. estavam também Desbordes e Mallarmé, Rimbaud e Villiers de L’Isle-Adam. O último verso, tornado famoso, fecha o poema com o alexandrino formado de uma única palavra, seis vezes repetida: “Satã! Satã! Satã! Satã! Satã! Satã!”. Satanizando literalmente o alexandrino, medida de ouro para os parnasianos, Maranhão parodia e exorciza um dos ícones sagrados da poética oficialmente reconhecida e cultuada pela elite letrada de então.

Sinal distintivo dos poetas malditos, o coloquial-irônico, que será a marca pessoal da lírica do Bandeira pré-modernista e também modernista, assenta como uma luva nesses poetas. Em ensaio revelador, Sebastião Uchoa Leite mostra como Marcelo Gama se destaca do conjunto dos simbolistas pelo tom coloquial-irônico, pela observação do cotidiano urbano, pelo espectro vocabular que incorpora estrangeirismos (snob, flirt, chic) e coloquialismos da época (casquilho, janota, peralvilho). Em três poemas longos – “Rua da Azenha”, “Noite de insônia”e “Mulheres”– em que o poeta sai do intimismo convencional e deriva para a observação do cotidiano urbano, o crítico uma ponte para o modernismo. Especialmente emMulheres”, solto na Avenida, o olhar do poeta se move curioso e crítico À curiosidade do voyeur se associa o deambular do flâneur por entresnobs e Apolos de pulseira” extraindo do desfilar de banalidades o “maravilhoso assunto” Vejam a ousadia de prosaísmo nestes versos aparentemente banais:

Por isso às três da tarde e às vezes antes,

desconhecido entre desconhecidos,

levo para a Avenida uns ares importantes

e afinado o quinteto dos sentidos.

O flâneur, seguindo as passantes com olhar dissecador, muda a ótica em relação ao protótipo angelizado ou satanizado da mulher, flagrando-a na quotidianidade contingente, material, ambígua e imperfeita:

Olho-as, remiro-as de alto a baixo, sigo-as

dispo-as, ponho-as em pose, impassíveis e brancas,

ora qui desvendando imperfeições ambíguas

de atafulhadas ancas,

ora ali descobrindo, entre êxtase e surpresa,

formas definitivas de beleza.

O universo semântico é novo e a linguagem preciosista, corrompida com estrangeirismos e expressões vulgares. Datado de 1909, pouco depois de inaugurada a Avenida Central, o poemaMulheres” ultrapassa o legado da visão hierática do epigonismo parnasiano assim como as evocações místicas do Simbolismo, prenunciando a irrupção modernista da década seguinte.

Ernâni Rosas é outra encarnação estranha de poeta maldito do simbolismo do começo do século XIX. Chamando atenção para a singularidade de sua obra, Andrade Muricy identifica nele a precedência divinatória do Surrealismo, dada “a sondagem vertiginosa das regiões subterâneas do espírito” e suas afinidades com os poetas portugueses Mário de Sá-Carneiro e Luís de Montalvor (Panorama, III, 36). A sua linguagem fulgura de imagens deslumbrantes, neologismos e inovações sintáticas:

Floresci, como a cor de um Poente de escarlata! (O meu ruivo destino). Pareces caminhar magnetizada, / sob um chover de estrelas e de rosas... / pelo florir da Luz quimerizada / surges de um mar de nuances misteriosas... (Alucina-te a cor). Inesperadamente, entardeci! (Quem és tu, loba). O Sonho-Interior que renasceste / era o Poema dum Lírio do Deserto, / o vinho d’Outras -Almas que bebeste / fatalizou o meu destino incerto... (O Sonh-Interior). A Tarde em lírios nos cinge / Para o longe que a deslumbra...(À tarde o poente desfia). Autor de uma obra pequena, de sabor raro e repassada de repentinas iluminações(Muryci,36), Rosas ainda hoje nos surpreende com ousadias como estas: Senti-Me arrebatar por teus segredos, / escravo do teu Elo imaterial... / Coluna envolta à vida dos teus dedos...(Quem és tu, loba).Sonho em Cristal teu corpo de Champagne? / mansa luz que morrendo sem alarde, / não sol de crepúsculo, que a estranhe...(Depois de te sonhar). O segundo terceto do soneto À Tarde o poente desfia...

desarticula a linearidade sintática, acavalga imagens e trava compacto o sentido do texto: Cintilos d’Astros, Poema! / Diluir d’Opalas, Jardim... / De Salomé: o Diadema! Salomé, figura emblemática do pré-modernismo belle époque irá retornar em Silêncios: “E a hora é Salomé sob aplausos de Luz.” Em “contam que o teu olhar urde”, pratica com a desenvoltura e maestria de um Bandeira, por exemplo, o verso livre.

Bem típico da melancolia fin de siècle é a que encontramos no penumbrismo ou poesia crepuscular que continua ativo no primeiro Bandeira, tanto em Cinza das horas(1917) enquanto em Carnaval (1919), persistindo ainda na dicção de Ritmo dissoluto. É o que se pode ver no Epílogo do primeiro.

Eu quis um dia, como Schumann, compor

Um Carnaval todo subjetivo:

Um Carnaval em que o motivo

Fosse o meu próprio ser interior...

 

Quando o acabei — a diferença que havia!

O de Schumann é um poema cheio de amor,

E de frescura, e de mocidade...

E o meu tinha a morta morta-cor

Da senilidade e da amargura...

— O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...

No volume Re-visão de Kilkerry, Augusto de Campos, resgatando a poesia desse autor que, tendo disseminado textos em jornais e revista, sem ter deixado sequer um livro publicado em vida, destoou do conjunto e abre novos horizontes para a poesia simbolista brasileira:

Kilkerry traz para o Simbolismo brasileiro um sentido de pesquisa que lhe era, até então, estranho, e uma concepção nova, moderníssima, da poesia como síntese como condensação: poesia sem redundâncias, de audaciosas crispações metafóricas e, ao mesmo tempo, de uma extraordinária funcionalidade verbal, numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas. [...] Em Kilkerry a dicção poética atinge uma contenção [...], um despojamento, uma consciência artística e artesanal raramente logrados na poesia brasileira. (p.11)

Mas, destacando como a grande figura Augusto dos Anjos e repetindo iniciativas no sentido de identificar a verdadeira face da poesia pré-modernista em autores resgatados – Pedro Kilkerry, Marcelo Gama, Maranhão Sobrinho, Gilka Machado – e mesmo Bandeira, acaba-se por contornar a questão do Simbolismo por onde efetivamente todos eles passam. Não bastasse o registro de Andrade Muricy que os inclui a todos no seu Panorama do movimento simbolista brasileiro (1952), convém ainda assinalar a adequação dos poemas simbolistas à moldura das revistas art nouveau da época, o refinamento da sensibilidade e o sofisticadíssimo requinte da linguagem, traços perfeitamente afinados com a moda belle époque. Clive Scott em Symbolism, decadence and impressionism, observa que o final do século XIX era pródigo em nomes para designar aquele momento literário, enfatizando exageradamente as diferenças entre eles. Hoje, mais claramente, pode-se ver múltiplas afinidades. E detecta o que seria seu traço fundamental: “O Simbolismo contém em si mesmo a passagem de estética romântica para a estética ironicamente moderna.” (Apud Castañon, 60) Sem forçar a barra, poderíamos transferir esse traço para a estética pré-modernista enquanto abre passagem para o Modernismo. Tal movimento, de resto, havia sido assinalado por Andrade Muricy no primeiro volume do Panorama, onde propõe uma correção radical à maneira como a historiografia e a crítica literária tinham considerado o simbolismo brasileiro. Em vez de situá-lo a partir do prestígio do campo do parnasianismo, o gráfico do seu desenvolvimento segue a linha de um semicírculo que, emergindo do Romantismo, inscreve-se no semicírculo maior do Parnasianismo para, mais adiante, depois de descer abaixo da linha de superfície onde o Parnasianismo morre, emergir no espaço do Modernismo. A interpretação do gráfico afirma que

A renovação de valores poéticos, iniciada por Baudelaire, nela confirmado pela influência de Edgar Poe, manifesta-se sob influxos vários: de Verlaine, de Mallarmé, de Rimbaud. A vaga de fundo, o maremoto estético tingiu-se das cores requintadas daquele fin-de-siècle. Naquele crepúsculo do século das luzes, que foi positivista, cientificista fanático, adorador totêmico das próprias invenções e descobertas, naturalista e ideológico, descendente de Jean-Jacuqes Rousseau, acenderam-se luzes outras, de cores delicadas, raras, luzes de espiritualidade e de misticismo.(Muricy: op. cit. I,17-8)

Pelo que vimos a respeito do estilo art nouveau, Muricy parece ter sumarizado, no trecho acima, as propriedades artenovistas do simbolismo brasileiro. Invocada a “renovação de valores poéticos”, ali comparecem as “cores requintadas” da belle époque, cores “delicadas, raras” acesas por luzes outras, “luzes de espiritualidade e misticismoque, procedendo de Cruz e Sousa e Alphonsus Guimaraens, renascem em Cecília Meireles, Jorge de Lima e Murilo Mendes. Sobre o fundo desse horizonte, projetam-se inovações técnicas como a descoberta do verso livre, que vai desaguar nosritmos inumeráveis” de Bandeira, e ainda a flexibilização da forma fixa do soneto, a fluidez do verso decassílabo e do alexandrino assim como o amaciamento de contornos da rigidez parnasiana e a ampliação de horizontes que libertam a visão do poeta para ousadias inéditas. As mais preciosas jóias dessa magnífica coroa encontram-se reunidas nos Últimos sonetos de Cruz e Sousa dentre as quais cabe destacar alguns modelos de perfeição como: Caminho da glória, De alma em alma, O grande momento, Cárcere das almas, Supremo verbo, Único remédio, Crê, O soneto, Asas abertas, Invulnerável, Cavador do infinito, Sorriso interior, Triunfo supremo.

Com a lâmpada do sonho desce aflito

e sobe aos mundos mais imponderáveis,

vai abafando as queixas implacáveis,

da alma o fundo e soluçado grito.

 

Ânsias, Desejos, tudo a fogo escrito

sente, em redor, nos astros inefáveis.

Cava nas fundas eras insondáveis

o cavador da trágico Infinito.

 

E quanto mais pelo Infinito cava

mais o Infinito se transforma em lava

e o cavador se perde nas distâncias...

 

Alto levanta a lâmpada do Sonho

e com seu vulto pálido e tristonho

cava os abismos das eternas ânsias!

O soneto se move em espiral em torno de uma única idéia: a ânsia do infinito. Os 14 versos decassílabos se encadeiam numa espécie de moto continuo, sem hiatos, sem pausas, sem repouso, sem conclusão. Nada de chave de ouro com que os parnasianos adoravam concluir seus sonetos. Aqui o último verso é mais um acorde do tema dominante lançado nos versos iniciais, retomado nos subseqüentes e integrado num conjunto harmonioso. De imediato, vem à mente a forma ideal da sonata: expressão de uma idealidade transcendente que visa à perfeição.

 

À guisa de introdução ao livro Art nouveau 1900, P. Wittlich diz que entre os anos oitenta do XIX e o início da I Guerra Mundial, a arte européia passou por uma subversão (bouleversement) que pôs fim ao domínio da concepção realista da imagem artística e deu lugar a concepções diferentes que mudaram a percepção e a compreensão do universo. Por volta de 1900, a arte se apresenta como um mosaico. O individualismo extremado da época apregoado por filósofos como Nietzsche goza de grande prestígio e repercutia extraordinariamente entre os artistas. Ele exprimia a vontade da participar no desenvolvimento social, pois o entre-dois-séculos foi um período de crise geraltanto social quanto espiritual. Decorrente do processo de industrialização, alastra-se na esfera política, ideológica, intelectual e artística a impressão de rupturas de superfície com elos em relação a camadas profundas da história e da alma humana. Um ceticismo convicto é fonte de melancolia e denuncia a fragilidade dos sonhos, ilusões e utopias. Mudanças na arte provocadas pelo desejo de liberdade abala as tentativas de impor domínio da situação mediante pletora de ornamentação. Para visualizar esquematicamente as correlações da ação no campo da arte, o autor desenha um triângulo semiológico em que ficaram as três componentes que ele considera as mais sintomáticas do programa da arte por volta de 1900.

S

 

O                   N

1. Naturalismo: acuidade óptica, senso do detalhe, tendência ao conhecimento empírico e imediato da realidade. Influência de Zola, da literatura científica e da pintura quase materialista do impressionismo. Os impressionistas orientavam a atenção do espectador para o mundo cotidiano, ordinário e banal, para a vida em sua energia natural. A luz torna-se o tema fundamental e o último Monet culmina com a fusão de impressões misteriosas com os fundamentos da existência.

2. Ornamentalismo: Na extremidade da orientação decorativa, a noção de “estilo” no fim do XIX e início do XX estava intimamente ligada ao problema do ornamento. Via-se nele a função social da arte. Os objetos decorativos com suas curvas e arabescos graciosos sobrepõem-se às barreiras entrearte nobre” e “arte vulgar”, entre artelivre” e arte “aplicada” o que lhe permite penetrar nas esferas da vida cotidiana.

3. Simbolismo: A arte do fim do XIX e começo do XX continha aspectos secretos e esotéricos. Esse lado misterioso – o mais importante – unido à corrente da época encontra sua expressão mais integral. Os manifestos literários do Simbolismo invocam a noção de “idéiaque, para os simbolistas não tinha significação racionalista nem representava uma noção de filosofia sistemática. Davam-lhe interpretação metafísica mais concreta que a dos filósofos. O emprego relativamente livre deixa entrever um sentido de magia e da “alquimia do verbo”.Mallarmé, o maior representante do Simbolismo, traduzia a concepção simbolista do mundo e condensava sua contribuição à arte moderna com estas palavras:

Referir-se a um objeto pelo seu nome é as suprimir três quartas partes do prazer de fruição do poema que consiste na felicidade de adivinhar pouco a pouco; sugeri-lo, eis o que sonhamos. É o uso perfeito desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou, inversamente, escolher um objeto e desprender dele um estado de alma por uma série de decifrações. (Divagations: 1896)

Pode-se correlacionar essa relação do objeto com estados subjetivos com as correspondências de Baudelaire: A Natureza é um templo,”[...] um bosque de segredos”, onde “Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.” Podemos ainda invocar o correlato objetivo de Eliot – expressão usada pelo poeta-ensaísta para denominar a correlação de imagens concretas tiradas do mundo exterior a estados de alma imponderáveis e fugidios. A idéia, assumindo forma de imagem, é concebida como pensamento em processo de autoconstituição. A definição de Mallarmé encerra os componentes duplos da ação simbolista: introspecção, sugestão poética encantatória, de um lado, interesse material, respeito ao suporte ou o medium da expressão artística. O objeto simbolista se refere a esses dois pólos e, não obstante a heterogeneidade das manifestações artísticas, a arte desse período se apresenta como um sistema coerente. Essa perspectiva abre para a possibilidade de inscrever o simbolismo no espaço do pré-modernismo ou estilo art nouveau. (op. cit. 9-14)



 

 


 

[1] O Professor Doutor Ivo Barbieri justifica a apresentação o texto sem as notas e referências bibliográficas  e sem uma cuidadosa revisão por causa da pressão do tempo e do coordenador, com o qual pôde reaver o contato na quarta-feira, dia 3 de março.