A VIDA DE BOCAGE
REFERÊNCIA IMPRESCINDÍVEL
ESTA BIOGRAFIA DO POETA,
CUJO CENTENÁRIO VAI SER COMEMORADO EM 2005

António Cabrita

 

Bocage, o perfil perdido, de Adelto Gonçalves Caminho, 2003, 480 págs., 29,93 euros

 

Não sei se Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) era bilharista. A sê-lo alinharia pelos que se comprazem na complexidade do jogo às três tabelas, arredio a submeter-se às triangulações mais clássicas e lineares — a acreditar no vaticínio do seu arqui-inimigo José Agostinho de Macedo: “É um génio incapaz de simetria!” De facto, não se pode dizer do Elmano Sadino — o seu nome arcádico — que, como Shakespeare, Mozart ou Picasso, fosse artista, capaz de captar, sintetizar ou magnificar tudo o que a sua época lhe oferecia. Há um anacronismo muito português que o fere, um engenho que lhe minou a obra até ao achamento de si. Para a época clássica, a natureza do gosto era submetida a leis universais e invioláveis e seria necessário romper com demasiadas coisas para assomar no plano estético a subjectividade que culminaria no Romantismo.

 

Bocage, por exemplo, fez a gesta, mas tal como Ovídio, que traduziu, procurou nos lugares a reminiscênciahistórica”. Foi essa a ilusão que o traiu, a raiz do seu desencontro com os lugares — velados pelos mitos. Vai ao Brasil, à Ilha de Moçambique, a Goa, a Damão, a Macau, perseguindo a irradiação de Camões, sem se abrir à experiência.

O despojamento de Bocage, tanto dos mitos como dos aplausos que tão facilmente arrebatava nos botequins e salões dos árcades, obriga-lo-á a efectuar dois movimentos redutores. após esse desengano trágico pôde o poeta alcançar o kairos, a oportuna conjugação com o agora e com os lugares. a sua visão, expurgada do peso canónico, se abre finalmente à subjectividade, ao seu ineditismo.

O barroco começara a separar o autor e a obra, o arcadismo acentuou a “esquizofrenia”. Bocage, após ter sofrido na pele a exacerbação dos mitos, regressa à pequena ficção de si: foi onde foi grande.

Bocage, o Perfil Perdido, do brasileiro Adelto Gonçalves, é uma biografia deliciosa, exaustiva e rigorosamente documentada. Neste momento, constitui o melhor plinto para a efeméride que se cumpre a 2005, quando se perfazem 200 anos sobre a morte do vate. O autor é jornalista, escritor e professor universitário, e entre outros livros tinha assinado uma biografia, Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, com a qual ganhou o Prêmio Ivan Lins de Ensaios, da União Brasileira de Escritores e da Academia Carioca de Letras; sendo ainda autor de um romance saído em Portugal: Barcelona Brasileira. Bocage..., um livro de fôlego, notável, que nos leva a atravessar o século XVIII português e se estende aquém e além das balizas cronológicas do poeta, faz o esforço de colocar este em contexto — e é desde uma referência imprescindível.

O livro aponta primeiro à genealogia, à história do avô materno francês, Gil l´Hedois du Bocage, corsário de genica, que acosta a Lisboa com uma apresada carga de relógios e acaba por prestar serviços à Coroa, como o de garantir a inexpugnabilidade do Rio de Janeiro, contra uma esquadra francesa. Adelto descreve com sabor, numa prosa que sabe ser informativa sem estar enxaguada e que, sem abandonar a densidade requerida, entretém. A investigação foi aturada e traz novidades: fixa com provas e argumentação inabalável o local de nascimento do poeta, na Rua das Canas Verdes; exuma o drama da família por causa da prisão do pai, José Luís Soares de Barbosa, durante seis anos na cadeia do Limoeiro; desfaz a ideia-feita de uma disputa amorosa entre Bocage e o irmão pelo coração de Gertrudes; revela os dias de miséria vividos pela irmã, Maria Francisca, após a sua morte, e descreve os sobressaltos que lhe minaram o espólio (entre os quais a possível sonegação de muitos originais por J. Agostinho de Macedo); betuma com dados e documentos uma série de lacunas que persistiam. Depois segue o passo do poeta com a virtude de, como se diz na contracapa, o emoldurar nostempos em que viveu” — a queda do marquês de Pombal, a acção de Pina Manique, a campanha do Rossilhão, além de nos dar um retrato do quotidiano de Lisboa.

Complementa ainda o livro um vasto acervo documental, reproduzido em fac-símile, e fotografias das casas onde foi parido e morreu aquele que ditou na hora do fim: “ Bocage não sou!... À cova escura/ Meu estro vai parar desfeito em vento...” Felizmente que não, como o comprova esta biografia, de muito longe a melhor, do vate setubalense.