A pretensa noiva de Bocage

Adelto Gonçalves

 

Esboços e perfis/horas do tempo (memórias e fantasias). Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 319 págs, 2003.

 

Na verdade, a histórias sobre noivas de Bocage não se deve dar também muito crédito. Artur d´Ávila Lobo e Fernando Mendes, que publicaram o romance popular A verdadeira paixão de Bocage (Lisboa, O Século, 1926), também ressaltaram um possível amor do poeta por Maria Cecília Leonor de Castro, mulher casada, baseados numa epístola de Eurindo Nonacriense, nome arcádico de José Tomás da Silva Quintanilha.

 

Sob a presidência de Alberto da Costa e Silva, ex-embaixador do Brasil em Portugal, a Academia Brasileira de Letras (ABL) vem reeditando, na coleção Afrânio Peixoto, uma série de livros de autores que pertenceram à instituição, mas que andavam esquecidos - muitos até com certa justiça porque seus textos ficaram velhos, para não dizer embolorados, de difícil leitura, que, se alguma valia ainda têm, é porque, em uma ou outra linha, pode-se sentir algum reflexo de um Brasil - quase sempre, um Rio de Janeiro - que não existe mais.

Esse é um pouco o caso de Lúcio de Mendonça (1854-1909), considerado o fundador da ABL, de quem a Casa relança agora num só volume Esboços e perfis (1889) e  Horas do bom tempo (1901), com o subtítulo Memórias e fantasias,  reunindo pequenos dramas cotidianos de uma classe média ainda em formação, seus amores e sua luta pela sobrevivência. Poeta e ficcionista, Lúcio de Mendonça foi um daqueles funcionários públicos que viraram escritores ao final do século XIX, como Machado de Assis, que, aliás, prefaciou o seu primeiro livro de poemas, Névoas matutinas, lançado em 1872, quando o autor era ainda um jovem de 18 anos.

Nascido em Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, Mendonça criou-se em São Gonçalo do Sapucaí, no interior de Minas, onde fez os estudos preparatórios, como se dizia naquele tempo. Em 1878, formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, seguiu para o Rio de Janeiro, onde foi nomeado delegado da Inspetoria Geral da Instrução Pública da Província de Minas Gerais no distrito de São Gonçalo do Sapucaí e eleito para a Câmara, exercendo a vereança até 1885. Depois, transferiu-se para Valença, no Rio de Janeiro, passando a advogar e a colaborar em vários jornais da Corte. Após a proclamação da República, em 1889, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi por essa época que, freqüentando a redação da Revista Brasileira, dirigida por José Veríssimo, teve a idéia de criar a ABL.

Mas o que interessa aqui é a passagem de Lúcio de Mendonça por São Gonçalo do Sapucaí. Dessa época, o intelectual recorda, em artigo que publicou na revista Kosmos, do Rio de Janeiro, em janeiro de 1906, que conhecera por volta de 1864 a viver num casarão em Santo Isidro, nos arredores de São Gonçalo do Sapucaí, Maria Vicência, que teria sido noiva do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805). Infelizmente, este artigo não consta dos livros reeditados agora pela ABL.

"Vegetava a um canto, caolha e sórdida, quase mentecapta, mas ainda famosa pela desenvoltura bocagiana dos ditos e das anedotas", recordou. Com base em afirmações de um sobrinho de Maria Vicência, João Bressane (ou Bersane), Mendonça contou que Maria Vicência teria viajado para o Brasil em companhia do pai António Bersane Leite na comitiva que acompanhou o príncipe regente em 1807 em sua fuga, diante da iminente chegada das tropas invasoras do comandante francês Junot.

A esta informação, porém, não se deve dar muito crédito, até porque, se Bersane era em 1805 escrivão das décimas, não há explicação para a sua inclusão na comitiva do príncipe regente. Estudo de 1997 do professor e arquiteto Nireu de Oliveira Cavalcanti, da Escola de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense, com base em documentação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, garante que da seleta comitiva não participaram mais de 500 pessoas - apenas nobres e altos funcionários régios -, contestando informações anteriores de que com a família real em 1807 teriam deixado Lisboa oito, 12, 15 e até 20 mil pessoas. Deve ter vindo para o Brasil em tempo posterior.

O irmão de Antônio Bersane Leite, João Leite de Oliveira Bersane, segundo o acadêmico Lúcio de Mendonça, já residia em Campanha, ao Sul de Minas, onde pai e filha se radicaram. Depois da morte do pai e do tio, Maria Vicência teria ficado em companhia dos sobrinhos até que casou com o coronel José Francisco Pereira que, já entrado em anos, pouco viveria em sua fazenda de Ouro Fala. Viúva, Maria Vicência mudou-se para São Gonçalo, até que, "já com um olho vazado e murcho, foi residir com as sobrinhas em Santo Isidro, onde faleceu a 29 de junho de 1868, com cerca de cem anos".

Na verdade, a histórias sobre noivas de Bocage não se deve dar também muito crédito. Artur d´Ávila Lobo e Fernando Mendes, que publicaram o romance popular A verdadeira paixão de Bocage (Lisboa, O Século, 1926), também ressaltaram um possível amor do poeta por Maria Cecília Leonor de Castro, mulher casada, baseados numa epístola de Eurindo Nonacriense, nome arcádico de José Tomás da Silva Quintanilha.

Tempos posteriores a esses amores passageiros, Bocage teria tido uma paixão avassaladora por Maria Margarida, filha de Manuel Constâncio, lente de anatomia e cirurgião do Hospital Real. Constâncio, que era médico da Câmara de sua majestade desde 1786,  morava na rua do Loreto, entre a rua do Norte e a das Gáveas, no primeiro andar de uma casa em frente às ruínas do que fora o palácio dos marqueses de Marialva, que ocupava todo o atual largo de Luís de Camões, no Bairro Alto.

A hipótese de Bocage, algum dia, ter curtido paixão por Maria Margarida, porém, não está fincada em documentos. Como observou Jacinto do Prado Coelho, desenvolveu-se uma longa teoria sobre mulheres cantadas por Bocage sob diversos disfarces, mas nem sempre o poeta referia-se a alguém por quem nutrisse paixão. Ainda com base em suas produções, concluiu-se que o poeta, em muitas ocasiões, fez da poesia o seu ganha-pão, escrevendo poemas de circunstâncias para celebrar aniversários e outros acontecimentos ou lamentar mortes. Muitos versos seriam de encomenda.

Como aqueles em que se refere a Marília, mulher de Gregório Freire Carneiro, o amigo que "mil vezes" teria salvado "do pego da indigência o triste vate". Ou aqueles em que se refere a "Armânia bela", mulher de seu amigo Francisco de Mendonça Arrais e Melo. De tudo isso, o que se pode concluir é que nenhuma mulher marcou lugar definitivo no coração do poeta que, inclusive, em versos censurados do poema A água estagnada, chegou a definir o matrimônio como "prisão". Mas quem quiser saber mais que aguarde o meu livro Bocage: o perfil perdido, que sai em setembro pela Editorial Caminho, de Lisboa.