Chica da Silva: o outro lado do mito

Adelto Gonçalves

Chica da Silva e o contratador dos diamantes; o outro lado do mito, de Júnia Ferreira Furtado. São Paulo, Companhia das Letras, 403 págs., 2003.

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Nascida escrava no arraial do Milho Verde, no Tejuco, de pai português e mãe africana, em data incerta, entre 1731 e 1735, Chica da Silva manteve uma vida em concubinato por 17 anos com o desembargador João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes, e levou uma vida próxima das mulheres brancas da sociedade mineira.

 

Na década de 1970, ocorreu o auge da sexualidade no cinema brasileiro, resultado da revolução sexual que libertava a mulher dos estereótipos que a mantinham presa à imagem do recato e do confinamento no lar. Em 1976, Cacá Diegues dirigiu o filme Xica da Silva, com base em livro que João Felício dos Santos escrevera naquele mesmo ano. Talvez por isso a Chica da Silva que aparece no filme, na pele da atriz Zezé Mota, seja apresentada como uma mulher, acima de tudo, sedutora e "devoradora" de homens, que inspirava sexo a quem a via debaixo de uma peruca loira e roupas deslumbrantes.

Agora, a pesquisadora Júnia Ferreira Furtado, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, que produzira outros estudos importantes sobre as Minas Gerais no século XVIII, publica a magnífica obra Chica da Silva e o contratador dos diamantes para mostrar que os livros escritos principalmente com base na tradição oral nos enganaram mais uma vez. Para tanto, levantou extensa documentação em arquivos portugueses e brasileiros.

Nascida escrava no arraial do Milho Verde, no Tejuco, de pai português e mãe africana, em data incerta, entre 1731 e 1735, Chica da Silva manteve uma vida em concubinato por 17 anos com o desembargador João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes, e levou uma vida próxima das mulheres brancas da sociedade mineira. Quando foi arrematada por João Fernandes de Oliveira, que lhe daria alforria em 1753 e lhe deixaria imensa fortuna em propriedades e escravos, Chica da Silva havia sido mãe de Simão Pires Sardinha, personagem que aparece nos autos da devassa sobre a chamada Inconfidência Mineira de 1789.

Com João Fernandes, teve mais treze filhos entre 1755 e 1770, o que significa que passou a maior parte do tempo grávida. Convenhamos que, diante desse fato historicamente comprovado com documentos, fica difícil associá-la ao estereótipo de sensualidade que a imaginação de seus pósteros criou.

O pai do desembargador João Fernandes de Oliveira, que dera o seu nome completo ao filho, era natural de Santa Maria de Oliveira, termo da Vila de Barcelos, no arcebispado de Braga. maior de idade, ainda na primeira década do século XVIII, partira em direção ao Brasil, seguindo boa parte de conterrâneos, na maioria solteiros e sem perspectivas, que, à época, a economia à beira do Minho, baseada principalmente na agricultura, estava em crise.

Do Rio de Janeiro, logo João Fernandes seguiu para Vila Rica, atual Ouro Preto, e, depois, para a Vila do Ribeirão do Carmo, hoje Mariana, atraído pelas notícias acerca das descobertas auríferas. Dedicou-se à mineração e, quando a fortuna começou a lhe acenar, comprou a fazenda da Vargem. Logo, tornou-se um homem de negócios, expressão que designava aqueles que, donos de grandes capitais, investiam no setor atacadista, o comércio por grosso, emprestavam dinheiro a juros e arrematavam o direito de cobrar em nome da Coroa impostos de entradas de mercadorias, dízimos, de passagem de rios e outros.

À sombra protetora do Estado, esses negociantes construíam fortunas, que sempre repassavam menos do que arrecadavam e, quando pressionados, conseguiam, na base da corrupção, a conivência do governador e capitão-general, do ouvidor e do procurador da Real Fazenda, as maiores autoridades numa capitania da América portuguesa.

pessoa importante no Tejuco, casado com uma senhora natural do Rio de Janeiro, João Fernandes de Oliveira, em 1739, habilitou-se a esse tipo de atividade, participando da concorrência para a exploração no Distrito Diamantino. João Fernandes saiu vencedor da arrematação, mas diziam que não passava de um preposto do governador Gomes Freire de Andrade, um testa-de-ferro, como diríamos hoje. Aliás, essas arrematações sempre foram jogos de cartas marcadas em que todos sabiam de antemão quem seriam os vencedores.

Um dos homens mais ricos de seu tempo, o agora sargento-mor João Fernandes de Oliveira mandou seu primogênito, com 13 anos de idade, nascido em 1727 no Tejuco, estudar em Portugal, primeiro no seminário de São Patrício, em Lisboa, e depois na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra. Formou-se em 1748, mas, embora tenha requerido licença para advogar, nunca exerceu a profissão.

Em 1751, seu pai, viúvo, levara os demais filhos para residir em Lisboa, junto à Horta Seca, em frente à residência do conde de Vila Nova. No Reino, o sargento-mor batalharia politicamente para continuar à frente do Distrito Diamantino e, ao arrematar o quarto contrato que entraria em vigor em janeiro de 1753, preferiu continuar em Lisboa e mandar o filho para cuidar diretamente da exploração dos diamantes no Tejuco. Assim, teria tempo de sobra para exercitar o tráfico de influências no Paço.

Foi em 1753, pouco depois de chegar ao Tejuco e assumir suas funções, que o desembargador João Fernandes de Oliveira adquiriu de Manuel Pires Sardinha, por 800 mil réis, a escrava parda Chica, sem que se saiba os motivos que o levaram a fazer o negócio. Se a comprou com o objetivo torná-la sua companheira, não se sabe, mas, poucos meses depois, provavelmente amantes, o desembargador registrou a carta de alforria de Chica, uma atitude pouco comum à época entre os proprietários mineiros. Desde então, ela passou a assinar-se Francisca da Silva de Oliveira.

Para um homem jovem e rico como o desembargador, com certeza, não faltariam pretendentes entre as filhas das famílias da elite do Tejuco. A historiadora lembra, com muita propriedade, que o ouvidor Caetano da Costa Matoso, que deixou famoso códice que leva o seu nome, dizia à época que a história da região sempre esteve ligada às negras e mulatas forras que, como Chica da Silva, submetiam os homens brancos aos seus desejos. Com idade que variava de 18 a 22 anos, Chica, quando conheceu João Fernandes, então com 26 anos, certamente, exibia a beleza das mulheres oriundas da Costa da Mina, com pele mais clara por causa do sangue português.

Em 1754, como lembra a historiadora, Chica, livre e com o sobrenome Silva incorporado, era proprietária de casas e escravos, "vivendo na maior ostentação, e senhora de uma grossa casa, à lei da nobreza e com muita riqueza", como se no processo de habilitação de seu filho, Simão Pires Sardinha, à Ordem de Cristo, feito em Lisboa. Ao que tudo indica, o casamento entre João Fernandes e Chica da Silva não foi convencional porque a sociedade hierárquica do século XVIII impedia a legalização de matrimônio entre pessoas de origens e condições tão desiguais.

Em 1770, quando o sargento-mor morreu, João Fernandes teve de retornar a Portugal porque Isabel Pires Monteiro com quem o pai casara no Reino teria se aproveitado da saúde debilitada do marido para praticar uma série de atos lesivos ao primogênito. João Fernandes nunca mais veria Chica da Silva, mas a deixara numa situação extremamente confortável. Havia sido um administrador excepcional, aumentara bastante a fortuna iniciada pelo pai, mas sempre foi considerado homem de extrema confiança de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal.

Na Corte, já casado com Isabel Pires Monteiro, dois anos depois do terremoto de 1755, o sargento-mor mandou levantar um grande sobrado, de construção magnífica, com onze janelas com suas sacadas de ferro batido no segundo piso, na rua de Buenos Aires, à Lapa, em local privilegiado, de onde se podia ver as águas do Tejo. Hoje totalmente reformada, a casa da Lapa é ainda um testemunho do poder econômico do sargento-mor e seu filho.

Na Corte, João Fernandes contou com a colaboração do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, então conde de Oeiras, amigo íntimo de seu pai, para colocar a madrasta num convento. Mas, com a morte de dom José I e a derrocada política do marquês de Pombal, veio a viradeira: a madrasta saiu do convento e continuou a exigir uma grande participação na fortuna deixada pelo marido. João Fernandes morreu em 1779, na morada da rua de Buenos Aires. Havia instituído o morgado de Grijó para os seus filhos com Chica da Silva e a contenda pelo inventário seguiria entre seu filho João Fernandes Grijó e a filha de Isabel Pires Monteiro, morta em 1788.

Francisca da Silva de Oliveira morreu em sua casa senhorial, no arraial do Tejuco, em 1796. Cercada de todas as pompas, foi enterrada na igreja da Irmandade de São Francisco de Assis, que congregava apenas a elite branca do local. Como observa a autora, havia seguido à risca os modelos cristãos de devoção e transmitiu aos filhos ensinamentos sobre os atos essenciais dessa fé, encaminhando as filhas para um convento e filiando-se às irmandades cristãs, onde atuou nas mesas diretoras, depois da partida de João Fernandes.

O mito negativo de mulher megera, perdulária, bruxa, "devoradora" de homens nasceria muito depois, em meados do século XIX, quando Joaquim Felício dos Santos, em suas Memórias do Distrito Diamantino, descreveu-a, sem qualquer base documental, como uma mulher de "feições grosseiras, alta, corpulenta", que trazia "a cabeça rapada e coberta de uma cabeleira anelada em cachos pendentes".

No Tejuco do século XVIII, porém, nem era costume que as mulheres usassem perucas. Dos inventários de mulheres do Tejuco, forras ou livres, perucas nunca foram constaram, embora entre homens houvesse quem usasse esse ornamento. João Felício dos Santos, sobrinho-neto de Joaquim, ao escrever o romance Xica da Silva, em 1976, sem se preocupar com pesquisas mais aprofundadas, voltaria a cometer o mesmo erro, equívoco que haveria de continuar na adaptação feita pela antiga Rede Manchete para uma telenovela em 1997, sem nenhum compromisso com a realidade do século XVIII.

Para Júnia Ferreira Furtado, Joaquim Felício dos Santos, membro da elite branca preconceituosa do século XIX, foi incapaz de compreender a atração que exerciam as mulheres de cor.