Genet, uma vida fora do comum

Adelto Gonçalves

 

GENET: UMA BIOGRAFIA, de Edmund White. Rio de Janeiro, Editora Record, 782 págs., 2003.

record@record.com.br

 

Jean Genet levou uma vida de aventuras, depois de ter sido uma criança que, abandonada pela mãe, foi criada por camponeses numa região pobre da França. Nada explica o seu sucesso na escola nem o êxito que, mais tarde, obteria como escritor. Mandado para uma colônia penal extremamente rigorosa, não teve mais que um aprendizado formal. Valeu-lhe, isso sim, o interesse pelos livros despertado muito cedo e que o levou, adulto, a praticar numerosos furtos em livrarias. Tudo em nome da cultura.

 

Poucas biografias de autores consagrados foram tão bem escritas e tão bem apuradas do ponto de vista jornalístico como esta que Edmund White, professor da Universidade de Princeton, escreveu do teatrólogo e romancista francês Jean Genet (1910-1986). Escrita de maneira inteligente, sem preconceitos, Genet: uma biografia, publicada originalmente em 1993 nos Estados Unidos e que sai agora no Brasil pela Editora Record, não traça um meticuloso perfil de uma das personalidades mais controvertidas da cultura francesa como também ergue um extenso mural dos movimentos culturais do século XX, que, obviamente, passaram todos por Paris.

Jean Genet levou uma vida de aventuras, depois de ter sido uma criança que, abandonada pela mãe, foi criada por camponeses numa região pobre da França. Nada explica o seu sucesso na escola nem o êxito que, mais tarde, obteria como escritor. Mandado para uma colônia penal extremamente rigorosa, não teve mais que um aprendizado formal. Valeu-lhe, isso sim, o interesse pelos livros despertado muito cedo e que o levou, adulto, a praticar numerosos furtos em livrarias. Tudo em nome da cultura.

Depois de anos de serviço militar no Oriente Próximo, Marrocos e na França, Genet viveu um período de vagabundagem na Espanha, especialmente em Barcelona, e no Leste e Norte da Europa. Na Checoslováquia, deu aulas de francês para uma mulher casada, judia refugiada da Alemanha, para quem escreveu seis cartas longas e sentimentais. Como observa White na introdução, nada indicava que, apenas quatro anos depois, o seu autor iria se transformar num dos mais originais romancistas do século.

De 1942 a 1947, Genet escreveu seus cinco romances, dos quais quatro cabem no gênero "autoficção" em que mistura as aventuras que viveu no bas fond das várias cidades por onde passou. Em todos os livros alterna uma voz narrativa altamente literária com diálogos mais ásperos.

Para seu biógrafo, seria de se esperar que esse tipo de literatura fosse praticado por um esteta de classe média alta como Marcel Proust ou por um médico letrado como Louis Ferdinand Céline, mas nunca por um marginal como Genet. Espantoso, reconhece White, é que tivesse tido a necessária autoconfiança, nos níveis pessoal e cultural, para a empreitada.

Tudo isso foi logo reconhecido pelo filósofo ateu Jean Paul Sartre que o chamou de "São Genet" com indisfarçável ironia num longo ensaio de 1951, que serviu como prefácio para as Obras completas de Genet, publicadas pela Gallimard incluindo textos expurgados de seus primeiros livros. O monumental texto de Sartre, "Saint Genet, ator e mártir", acabou por catapultá-lo para a fama e o reconhecimento pelo establishment intelectual da França.

Depois de ter escrito cinco romances, Genet passou um período de sete anos de depressão até que se descobriu como dramaturgo, escrevendo três peçasO balcão, Os negros e Os biombos em apenas dois anos. Segundo seu biógrafo, essas peças coincidem com a época de seu caso amoroso mais feliz, com Abdallah, um equilibrista de origem árabe, que haveria de se suicidar, levando o próprio Genet a também tentar o suicídio.

a década de 1960 foi, para Genet, de esterilidade artística bem como a de 1970, quando decidiu virar ativista político, defendendo os direitos dos trabalhadores imigrantes da França, do movimento dos Panteras Negras nos Estados Unidos e, por fim, dos palestinos. A não ser por artigos e entrevistas ocasionais para a imprensa, pode-se dizer que quase não criou nesse período até à morte em 1986.

Um mês depois, porém, o público francês se surpreendeu com o seu livro de lembranças O prisioneiro do amor em que se mostra interessado por história, arquitetura, política e até por mulheres, o que havia evitado na ficção.

Na introdução, White diz que "poucas pessoas podem achar que um dissidente sexual e políticoum homem acusado de matar seus companheiros e de defender a traição, de criar escândalo e perpetrar pornografia poderia dar exemplo aos outros, mas esta biografia mostra como uma transformação dessas pode ser realizada". De fato, Genet teve a sorte de ser biografado por um grande escritor, que resumiu uma vida fora do comum numa biografia igualmente rara.