GRANDE SERTÃO: BRASIL

Adelto Gonçalves*

 

Grandesertão.BR, de Willi Bolle. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 480 págs., 2004, R$ 44,00.

imprensa@editora34.com.br

 

Do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em algum lugar, ficou registrado o seu pensamento de que (dos conciliábulos que redundariam na fracassada conjuração mineira de 1789) faria uma meada que nem em cem anos seria possível desenredar. Sua meada já ultrapassou dois séculos e parece longe de ter sido não só desenrolada como compreendida pelo menos por alguns articulistas de hoje, que, inconformados com a extorsão tributária promovida pelo governo a empresas e pessoas físicas, insistem em atribuir à anunciada derrama a razão da conspiração mineira de 1789, quando o que motivou o movimento foi a situação crítica em que estavam alguns arrematantes dos contratos de entradas, que haviam arrecadado impostos sem repassá-los para a Coroa, enfiando o produto da arrecadação nas próprias algibeiras.

 

Queriam se ver livres do governo de Lisboa, é verdade, mas, principalmente, porque, com isso, livravam-se também das dívidas. A derrama, que, de fato, era um achaque tributário, na verdade, só funcionaria como senha, pois os cabeças da conspiração pretendiam aproveitar a insatisfação da arraia-miúda com a derrama para deflagrar um movimento que beneficiaria principalmente grossos devedores, gente que podia muito bem ser comparada aos banqueiros dos dias atuais.

Mas é claro que afirmar isso tira o glamour dos nossos inconfidentes, ainda mais que o principal “motor” da conspiração — palavra que consta dos códices da época —, aquele que teve a idéia inicial da rebelião, foi mesmo Joaquim Silvério dos Reis, um dos primeiros a construir fortuna sob a sombra do Estado em solo que seria brasileiro. Esperto, quando percebeu que o plano não iria dar certo, pulou para o outro lado, mas a verdade é que nunca enganou as autoridades coloniais.

Não é só na História que há meadas à espera de quem se dedique a desenrolá-las. Na Literatura também. Ainda agora acaba de chegar às livrarias o livro Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, do professor Willi Bolle, que abre novas perspectivas para a interpretação de Grande Sertão: Veredas, romance de João Guimarães Rosa (1908-1957) publicado em 1956. Ao partir da idéia de que o livro de Guimarães Rosa ganha em complexidade quando lido como uma reescrita crítica de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), Bolle defende que ambas as obras “são discursos de narradores-réus-e-testemunhas diante de um tribunal em que se julgam momentos decisivos da história brasileira”.

Nascido em 1944 perto de Berlim, Willi Bolle é desde 1977 professor de Literatura Alemã na Universidade de São Paulo, onde defendeu tese de livre-docência sobre Walter Benjamin (1892-1940) e a cultura da República de Weimar. Já publicou, entre outros, Fórmula e fábula: teste de uma gramática narrativa, aplicada aos contos de Guimarães Rosa (1973) e Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin (1994). Para escrever Grandesertão.br, fez várias viagens ao Norte de Minas Gerais, onde começa o sertão, cujo eixo é o rio São Francisco com seus afluentes, o coração do Brasil.

Em seu estudo, o professor mapeia toda a rede de relações existentes entre Grande Sertão: Veredas e os principais ensaios de interpretação do Brasil, desde a obra euclidiana até os estudos fundamentais de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Antonio Candido, Celso Furtado, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro, que considera ensaios de formação.

Ao comparar Grande Sertão: Veredas com os ensaios sociológicos e historiográficos daqueles autores, Bolle chega à conclusão de que a obra rosiana é um romance de formação (Bildungsroman), não no sentido convencional em que costuma ser entendido, ou seja, um gênero centrado no indivíduo, em oposição ao “romance social”, mas no sentido de que o autor, por meio da invenção da linguagem, propõe-se a pensar o país.

É o que sugere Bolle: ler Grande Sertão: Veredas como um “romance de formação” do Brasil, um retrato sem retoques do país, mas também um romance da formação do indivíduo dentro de um projeto mais arrojado: “a construção de uma cultura coletiva, incorporando as dimensões políticas de esfera pública, da cidadania e dos conflitos sociais”.

Para Bolle, aspectos centrais do romance, como a narração labiríntica e em forma de rede, o sistema de jagunçagem e, sobretudo, o pacto de Riobaldo com o diabo podem ser lidos sob uma nova luz. Sua tese principal, porém, é que o romance de Rosa é o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes subalternas, o que constitui um sério obstáculo para a verdadeira emancipação do País.

Segundo o professor, o pseudodiálogo entre o narrador sertanejo, Riobaldo, ex-jagunço e, agora, latifundiário, e o interlocutor letrado, um “doutor” da cidade, mas que pode ser também o diabo em pessoa — na verdade, um extenso monólogo, já que a outra parte não intervém —, é uma encenação irônica, com papéis invertidos, da falta de diálogo entre as classes sociais. “O descaso dos donos do poder para com o povo humilde, em que pesam quatro séculos de escravidão, representa um imenso atraso para a emancipação efetiva do país”, diz o crítico.

Bolle cita um texto de 1972 de Walnice Galvão, As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande Sertão:Veredas (São Paulo, Perspectiva), em que a estudiosa chega à conclusão que o romance de Guimarães Rosa se é, por um lado, “o mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira, por outro também é a mais profunda e mais completa idealização dessa mesma plebe”.

O autor, porém, contesta a afirmação de que Guimarães Rosa idealiza a plebe, citando um trecho de Grande Sertão: Veredas: “Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias....”

Diz Bolle, com razão, que esta passagem pode ser até interpretada como uma crítica à representação da sociedade sertaneja em Euclides da Cunha. Para o autor, na realidade, o romance de Guimarães Rosa é uma antítese às idealizações e, com isso, “uma crítica contundente ao livro precursor que, este sim, forjou uma linguagem idealizada do sertanejo”.

Também na opção pelo instrumental da escrita Bolle descobriu muitas divergências entre Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, lembrando que enquanto o primeiro grifa as expressões que destoam da norma culta, como era comum à sua época, o outro procura deslocar-se para “dentro” da linguagem do povo. Eis aqui a grandeza de Guimarães Rosa: “com centenas de fragmentos de discursos, o labiríntico sertão passa a ser um espaço virtual constituído de linguagem”, observa Bolle, com argúcia, destacando que, assim como o “Homem da Multidão” no conto de Edgar Allan Poe, também o protagonista-narrador de Grande Sertão:Veredas se mantém sempre no meio do povo e, enquanto se desloca, uma imensa rede de falas dos sertanejos o acompanha.

É claro que há muitas diferenças entre Os Sertões e Grande Sertão: Veredas, até porque, como diz Bolle, o olhar de Rosa é o exato oposto das vistas euclidianas do alto: é uma visão rasteira. Ou seja: enquanto o ensaísta-engenheiro sobrevoa o sertão como num aeroplano, o romancista-diplomata caminha por ele por uma estrada-texto, compara Bolle, recorrendo a uma imagem de Walter Benjamin (1892-1940).

Sem se preocupar com anacronismos, Bolle considera Rosa um precursor da Internet, que intuiu as revolucionárias tecnologias da informação, pois construiu o seu romance em forma de rede, tornando-o um labirinto em que uma imagem ou frase pode constituir um link para outra cena ou página, desdobrando-se quase ao infinito. Daí, o título Grandesertão.br, que procura aproximar o romance da nova linguagem representada pela rede mundial de computadores, um hipertexto que configura uma “narração-em-forma-de-rede”.

Para Bolle, Guimarães Rosa, ao contrário de Euclides da Cunha, trata o povo não como um objeto de estudo e de teorias, mas como sujeito capaz de inventar e narrar sua própria história. Nascido a partir de um manancial de estórias que Rosa recolheu da boca do povo sertanejo, Grande Sertão: Veredas é o romance do “fazendeiro endemoninhado” Riobaldo que, apesar de ter crescido muito materialmente, assumindo-se como um dos donos do poder, “não faz senão confirmar a sua origem, na medida em que incorpora uma multidão de estórias paralelas em forma de casos, expressando assim uma concepção multifocal e polifônica da História”, como diz Bolle, sem esconder que se baseia nas teorias do crítico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975).

Como observa o autor, o regime vigente no sertão de Guimarães Rosa é o da sociedade patriarcal, ainda muito forte no Brasil tanto no campo como nas grandes cidades, caracterizada pelo pleno poder do grande proprietário ou grande potentado sobre os seus agregados, cuja condição oscila entre “homens livres” e servos. Os símbolos dessa ordem são as casas-grandes, diz Bolle, esquecendo-se talvez de que nas grandes cidades os símbolos são as fortalezas em que se escondem os grandes delinqüentes de colarinho branco que sabem como arrombar os cofres públicos sem deixar vestígios ou os grandes traficantes de drogas, que, em alguns casos, andam disfarçados atrás de cargos eletivos.

A rigor, o mundo retratado por Guimarães Rosa ainda está longe de extinto. Diz Bolle que, para os homens de armas do sertão, o prestígio de um latifundiário, chefe de jagunços, é proporcional ao número de pessoas que ele matou (ou mandou matar). A lei natural, a lei da violência, é, como observa Riobaldo, a lei que rege aquela sociedade.

Aquela? Não por acaso volta e meia os meios de comunicação “descobrem” entre políticos brasileiros, alguns com assento até no Congresso, quem ainda pratica o trabalho escravo em suas propriedades rurais. Mas é só quando esse político contraria eventuais donos do governo que alguém “vaza” informações a seu respeito para a imprensa.

Então, a população letrada — aquela que ainda lê jornais e revistas — descobre que o Brasil do século 21 ou o de Guimarães Rosa, com exceção de algumas circunstâncias, ainda é o mesmo que Euclides da Cunha viu em Canudos e retratou n´Os Sertões. Se calhar, ainda é o mesmo que, em 1789, viu o alferes Tiradentes pagar com a vida por uma conspiração urdida por poderosos que, para se verem livres de dívidas, não hesitaram em mascarar seus interesses particulares por trás dos ideais de liberdade dos mazombos. Como se vê, o povo brasileiro já era enganado antes de o Brasil existir como nação.

Que Guimarães Rosa fez de Grande Sertão: Veredas um microcosmo de um Brasil que não só insiste em não morrer como se prolifera de maneira assustadora, não foi Bolle o primeiro a descobrir. Mas que sua interpretação é uma das mais ousadas que surgiram nos últimos anos, não há dúvida. A partir da revolucionária leitura feita por Bolle, muitos outros estudos deverão aparecer, pois o enigma de Grande Sertão: Veredas ainda está longe de decifrado. É mais uma meada a desafiar o tempo.