O
neocolonialismo de Sousândrade
Adelto Gonçalves
A visão do ameríndio
na obra de sousândrade, de Claudio
Cuccagna. São Paulo, Editora
Hucitec, 2004, 213 p.
lerereler@terra.com.br
Já
não
é pequena a
fortuna
crítica do poeta
Joaquim de Sousa Andrade, ou
Sousândrade (1832-1902), espalhada por jornais e revistas,
mas livros
dedicados à sua
obra
não passam de
meia
dúzia — os
principais
são ReVisão
de Sousândrade, de Augusto e Haroldo
de Campos (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982), e Sousândrade:
vida
e obra, do
norte-americano
Frederick G. Williams (São Luís, Edições Sioge, 1976), tese
de doutorado apresentada à Universidade de Wisconsin sob
a orientação de Jorge de
Sena. Há ainda os
estudos
de Luiza Lobo, Mont´Alverne Frota e Terezinha Tagé, este
uma dissertação de
mestrado
apresentada à Universidade de São Paulo em
1982 que,
infelizmente,
ainda está inédito
em livro.
Agora, essa
fortuna
crítica acaba de ser
enriquecida com a publicação de A visão do ameríndio na obra de Sousândrade, de Claudio Cuccagna, estudo originalmente
apresentado em 1996
como
tese de laurea italiana em Literatura Brasileira à Faculdade de Letras e Filosofia
da Universidade La Sapienza de Roma.
O livro
faz uma nova
leitura
da visão do
ameríndio
na obra do poeta,
mostrando que a
crítica
até agora,
ao apresentar Sousândrade
como
um intelectual
do Romantismo defensor
do
índio diante
da secular exploração
da conquista e da colonização,
deixara de lado
um
aspecto importante:
o de que o
autor
sempre propôs ao
indígena
uma forma colonizadora
alternativa,
ou seja, uma forma
de submissão a ser
gerida diversamente das do passado, mas, de
qualquer modo,
sem lhe
reconhecer direito
à autonomia.
Em
outras palavras: há uma clara intenção
neocolonialista na política
indigenista defendida por
Sousândrade.
Cuccagna ressalta,
porém, a diferença
entre
a postura de Sousândrade e a do escritor argentino Domingo
Faustino Sarmiento, famoso por seu conceito de civilização
versus barbárie
— hoje
reabilitado
no contexto da
atual
crise da
civilização
ocidental. Para
o argentino, o bárbaro era um obstáculo ao avanço do progresso e da cultura
nas extremas e extensas regiões meridionais da república.
Enquanto Sarmiento inclinava-se por uma política
de extermínio e segregação dos povos autóctones,
Sousândrade defendia que o indígena deveria ser
conquistado de um
ponto
de vista religioso-moral, numa visão semelhante
à do padre
espanhol
Bartolomé de las Casas, autor de Historia de las Índias, publicada pela primeira vez em
1875-1876, à distância de
três
séculos de sua
composição.
Como
reconhece Cuccagna, não se poderia esperar mais de um membro da classe dominante ocidental,
que acreditava na
superioridade
indiscutível dela e
que,
afinal de contas,
não conhecia adequadamente o índio nem estaria muito interessado em
ouvir suas
reivindicações.
Afinal, exigir
que tivesse
postura
semelhante à dos indigenistas de hoje seria, por
certo, incorrer
em anacronismo.
Nada
disso, porém, impediu Sousândrade de
escrever o poema
“O Guesa”, uma das obras mais ambiciosas produzidas na América Latina cujo herói é inspirado numa lenda
dos muíscas, povo
pré-colombiano
que viveu em
terras que
hoje pertencem à Colômbia. Um ritual desse
povo previa a
escolha
de um menino
a ser conduzido ao templo
solar de Sogamoso, onde
era educado e
preparado
para a imolação. No fim, o jovem
guesa era sacrificado pelos xeques, os
sacerdotes, que, a
exemplo do que
acontecia em algumas populações mesoamericanas antigas, arrancavam o coração de suas
vítimas para
oferecê-lo simbolicamente como alimento ao sol.
Depois de
levantar
as fontes em
que Sousândrade mergulhou
para
inspirar-se na história do guesa, de
Ferdinand Denis a Marie César Famin, ambos
franceses, Cuccagna observa que o poema, profundamente
autobiográfico, narra as vicissitudes vividas pelo poeta durante périplo que fez
ao redor do
continente
americano. Dessa viagem
itinerante nasceu uma obra rica em descrições paisagísticas, especialmente
em relação
aos Andes e à região amazônica, e de observações
sobre a história
política, social
e religiosa das
nações
americanas.
Para
o italiano Cuccagna, não só no Brasil, mas
também nas áreas
hispano-americana e
norte-americana,
não houve
intelectual
capaz de dar vida, em uma única obra, a
uma visão
pan-americana
como Sousândrade. De fato, a obra
sousandradina antecipa não só as intuições
e as produções dos
intelectuais
modernistas hispano-americanos, inclusive essa moderna
experiência de
epopéia
que o é “Canto
General”, do chileno Pablo Neruda, ganhador do Prêmio Nobel, como também a
dos brasileiros,
já
que só
meio século
mais tarde
o Brasil ingressaria na fase modernista, quando Manuel Bandeira,
Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e
outros
utilizariam em
trabalhos
experimentais conceitos e formas que
Sousândrade já empregara.
Nascido na
fazenda
de Nossa Senhora
da Vitória, em
Alcântara, no Maranhão, Sousândrade estudou
Engenharia
na Sorbonne, em Paris, e esteve uma temporada em
Londres, de onde saiu a pedido do governo
inglês por ter falado contra a monarquia e,
particularmente, a Rainha
Vitória. Viveu com a
filha
em Nova
York, época em
que trabalhou nos
treze cantos do
seu
poema “O Guesa” e teve a oportunidade de acompanhar um governo
republicano em ação.
Embora elogiasse a
nação
norte-americana
por
seu
desenvolvimento
e pela
liberdade
de seu
sistema, condenou fortemente
as suas distorções
econômicas e injustiças sociais, deixando essa visão
registrada no canto X do “Guesa”, especialmente na parte
conhecida como
“Inferno de Wall Street”.
Retornando a
São
Luís em 1885, após
breve temporada
no Chile, Sousândrade dividiu seu tempo entre a poesia e a luta
contra a monarquia. Republicano,
distribuiu terras
para
os seus ex-escravos
quando
da proclamação da República e foi
nomeado o primeiro
intendente
de São Luís,
ou
seja, o primeiro
administrador
republicano da cidade.
Como
jornalista, Sousândrade teve intensa participação nos
jornais do Maranhão, o que, de certa forma, explica a clareza
e a fluidez de seu
texto
a uma época em
que a maioria
de seus
contemporâneos
preferia utilizar uma
linguagem
empolada. Em O
Federalista, ao final
do século, escreveu
vários artigos
em defesa
da criação de uma
universidade
em São
Luís. Mas a
primeira
universidade do Brasil, a Universidade de São
Paulo, só viria
quase
40 anos
depois,
enquanto a do Maranhão teria de esperar mais de 60 anos. |