O POÉTICO NA CARICATURA:

“A PROPÓSITO DOS TRINTA BOTÕES” 
De ALUÍSIO AZEVEDO

Nadja Carvalho
Pós-graduanda em Comunicação e Semiótica, PUCSP/UFPB

1. Apresentação

Neste trabalho examinamos a presença do poético na caricatura “A Propósito dos Trinta Botões”, com a qual Aluísio Azevedo fez a sua estréia, em 1876, na imprensa ilustrada do Rio de Janeiro. A abordagem do tema, no entanto, resulta de uma averiguação inicial, assinalada por algumas indagações: O que é poético na caricatura? De que maneira são reveladas as marcas do poético? O que distingue a estratégia de leitura do poético?

Fornecemos um rápido esboço do episódio que, de certo, instigou a criação da caricatura de Aluísio Azevedo, sem a preocupação de estabelecer um itinerário histórico-social da sua criação, até mesmo por acreditar que o exame da expressão poética na caricatura não precisa estar vinculado ao tempo, ao acontecimento social. O contexto que suscita a criação da caricatura contribui com informações, ajuda a  conferir significados, dessa maneira, as referências históricas ou comunicacionais não nos dizem nada do poético que a caricatura possa contemplar.

Destacamos elementos e combinações que constituem a composição da caricatura selecionada, procurando ressaltar a configuração do poético em conformidade com o alcance da nossa percepção sensível. Procuramos levar em conta os artifícios poéticos de similaridade engendrados em alegorias, simbologias e enigmas, dessa maneira, o poético sugere uma violação das regras sociais (sejam morais, éticas, costumes, hábitos etc.), em vigor na época.

Ao final, examinamos a presença do poético na caricatura. Tomamos como ponto de partida o ato de sentir o poético, o que significa não perder de vista a sua liberdade em relação a realidade, na medida em que impõe uma ultrapassagem da figuração referencial. É no âmbito da representação denegada, na sua formulação de distorção, deformidades ou diferenças da natureza, que acreditamos poder distinguir ou demarcar a aparição do poético.

 

2. O Episódio

Sobre o tema da caricatura que Aluísio Azevedo escolheu, Josué Montello (1944; 247) acredita ter sido inspirado no episódio ocorrido com o caricaturista português Rafael Bordalo Pinheiro. O autor faz referência à habilidade do caricaturista com a sátira política e lhe atribui a causa da irritação do senador Barão de Lavradio, ao declarar, na Câmara, que “... o Brasil acolhia de bom grado os portugueses quando eles vinham de jaleca de briche de trinta botões oferecer-lhes o seu braço e o seu trabalho, mas que não precisava de janotas que ainda por cima  lhe pagavam  a hospitalidade com a agressão e com o escândalo”.

Conforme Josué Montello (1944: 248), Bordalo Pinheiro ofereceu a réplica ao discurso do senador quando apareceu, na rua do Ouvidor, “...enfiado grotescamente num casaco de mescla, sério, grave, sisudo e abotoado espetacularmente por trinta enormes botões dourados!” O autor acrescenta que, Bordalo Pinheiro chegou ao Rio de Janeiro em 1875. Na ocasião, colaborou com a “Revista Fluminense”, ilustrou “O Mosquito” e, em seguida, publicou o jornal de caricaturas “O Besouro”. O fato é que, em tão pouco tempo, Bordalo Pinheiro atraiu animosidades entre políticos e também entre caricaturistas de outros jornais.

Os periódicos ilustrados comentaram o episódio e entre os principais jornais de caricatura da corte, em 1876, Josué Montello (1944: 248) aponta “O Mequetrefe”,  “O Mosquito” e “O Fígaro”,  no qual Aluísio Azevedo fixou o seu ângulo na questão.  A ação da sua caricatura “A Propósito dos Trinta Botões” ilustra a problemática da presença do estrangeiro na economia brasileira, além da exploração do povo brasileiro, numa alegoria do neocolonialismo português. 

 

3. Os Trinta Botões

Colocamos em destaque a primeira caricatura de Aluísio Azevedo com o título “A Propósito dos Trinta Botões”, acompanhado da legenda “Antes do Crisol e depois, ou à chegada, e alguns anos depois”, publicada no jornal “O Fígaro”, nº 20, Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1876. A nossa intenção é identificar de que maneira, em sua imagem, título e legenda, são reveladas as marcas e traços do poético.

 

3.1. Título e Legenda

Ao observarmos o título “A Propósito dos Trinta Botões” vamos verificar que não há nada nele que remeta à imagem e vice-versa, a impressão que temos é a de puro contra-senso. No entanto, a titulação enigmática não é gratuita, ela faz referência indireta a um episódio da época, revela através de marcas simbólicas um certo contexto de ocorrências. Assim, o seu reconhecimento analógico requer uma identificação referencial, capaz de aclarar o sentido metafórico que possa conter.

O título nos fornece a pista dos “trinta botões”, conforme já foi dito, retoma o caso criado pelo Barão de Lavradio (Senador) que protestou contra as caricaturas de Bordalo Pinheiro, em discurso da época: “jaleca de briche de trinta botões” (cf. Montello, 1944: 247). Vale acrescentar que o termo “jaleca”, no feminino, já sugere ironia, refere-se a um tipo de casaco semelhante a uma jaqueta em tecido de lã (“briche”) com a qual os portugueses costumavam se vestir, tanto é que o termo “jaleco” chegou a ser apelido de português.

A legenda “Antes do crisol e depois, ou à chegada, e alguns anos depois” mantém uma relação mais próxima com a imagem, mesmo assim a referência feita ao “crisol” só se completa quando tomamos conhecimento da réplica de Bordalo Pinheiro, vestido num casaco de mescla “abotoado (...) por trinta enormes botões dourados” (cf. Montello, 1944: 248).

O “crisol”,  vaso utilizado na depuração do ouro, situado na parte superior do forno, faz referência à cor dourada dos botões e, ao mesmo tempo, retoma e reconstrói as acusações do Barão de Lavradio, quando faz uso da expressão “janotas” para criticar a “agressão” e o “escândalo” na forma com que certos portugueses retribuíam à hospitalidade brasileira (cf. Montello, 1944: 247). A título de lembrete, o termo “janota” não se refere apenas à maneira de se vestir no rigor da moda, mas sobretudo faz referência ao excessivo apuro no trajar, com ostentação.

 

3.2. Imagem

A composição da cena, aparentemente tripartida, apresenta três momentos interligados da sociedade de seu tempo: à esquerda, a chegada de portugueses pobres ao Brasil, com seus corpos franzinos, roupas gastas e bagagens nos ombros; à direita, os portugueses ricos já instalados no Brasil, com suas enormes barrigas, roupas refinadas, surgem como comendadores ou nobres; e, ao centro, a exploração do povo brasileiro representado na figura do índio.

Ao examinarmos a caricatura, descobriremos a representação alegórica do Brasil como um forno que enriquece estrangeiros às custas do trabalho dos brasileiros. O forno de lenha é substituído pelo Brasil, mas também pode ser substituído por um forno de padaria, sugerindo o português proprietário de padaria, de pastelaria, ou de qualquer outro estabelecimento comercial.

A figura do índio, povo natural do Brasil, estabelece forte contraste com o português neocolonizador. O índio é substituído pela exploração do seu trabalho. A postura corporal do índio diante do forno, inclinado para frente em direção à esquerda, possibilita a visão de quem chega, do trabalho que tem pela frente; nunca a visão de quem sai ou do resultado de seu trabalho. A postura automatizada pelo manuseio do fole reforça a idéia de sacrifício, decorrente do trabalho que lhe é imposto.

Vejamos, ainda, na composição da cena, a configuração de elementos específicos em suas formulações substitutivas:

·Taliscas de madeira destinadas ao fogo (matéria prima);

·Fole que ativa a combustão ou que limpa a cavidade do forno (ferramenta de trabalho);

·Chaminé escurecida pela fuligem da fumaça (funcionamento em curso);

·Cadinho ou crisol, vaso que resiste ao fogo, utilizado em laboratório para a depuração de ouro (moeda, fortuna);

·Ângulo de entrada no forno, obscurecido por ausência de paisagem (miséria, pobreza);

·Ângulo de saída do forno, adornado com casarão sombreado por árvores (bem, riqueza);

·Comenda em forma de colar no pescoço do português (insígnia de comendador, distinção honorífica);

·Forno que possibilita a transformação da pobreza                em riqueza (alusão ao Brasil);

·Índio que executa o trabalho (alusão ao povo          brasileiro).

Esses elementos apontam possibilidades de sentido poético, em seu conjunto, fixados por uma alegoria que representa objetos ou pessoas – sob a forma de figuras deformadas – para expressar uma outra idéia. O recurso alegórico do poético pode ser observado na deformidade da imagem visual (que exagera, distorce, desfigura) e, ao mesmo tempo, na deformidade da imagem mental (que altera, trapaceia idéias do senso-comum).

A alegoria da deformidade exagera um traço pessoal ou um episódio, no entanto, não deixa de ser repentina e cheia de surpresas em suas idéias de ridicularização. O princípio poético da similaridade e da equivalência, no uso da deformidade alegórica, subverte o estabelecido para, em seu lugar, implantar o imprevisível. Nesse sentido, a deformidade realça e cria o ridículo na cena imaginada e, assim, faz recordar o ridículo do episódio que remonta.

Vale acrescentar que essa alegoria da deformidade, sob os contornos do simbólico, conduz uma expressão irônica de sentimento crítico atribuído à presença do português na economia. As associações, daí decorrentes, podem compreender: aquisição de riquezas, condecorações obtidas, benefícios concedidos aos afortunados, entre outras. O encadeamento associativo é múltiplo, fragmentado. Certamente insinua, sugere, mas, por outro lado, não define, não impõe ordem; seja no desenho ou na titulação, podemos verificar uma espécie de ruptura que afasta o sentido comum, usual e instaura o poético.

Na caricatura “Os Trinta Botões”, conforme observamos, há uma variedade de elementos e combinações visuais entrelaçados a outros textuais, que realçam o lado perceptível de pessoas, objetos ou do episódio sugerido, mas principalmente deixam avistar a fantasia, a imaginação, o sonho, em sua extensão poética. O motivo-chave, na composição da cena, pode ser percebido em seu metamorfismo poético do português pobre transformado em rico comendador. Assim, o poético que conseguimos vislumbrar: encanta por sua fantasia, surpreende por tudo aquilo que nos possibilita sentir.

 

4. A Modelagem Poética

É no âmbito da plasticidade caricatural que o poético deve ser observado, na modelagem formal daquilo que lhe é singular, distinto, extraordinário. Se a arte figurativa da caricatura pode representar um contexto social ou uma época, a visão expressiva do artista pode promover e provocar o poético, na relação analógica com o objeto que designa. (cf. Jakobson, 1995: 129)

A formulação da deformidade, capaz de enquadrar alegorias, simbolismos, invenções enigmáticas, constituem uma configuração sensível que interessa ao poético. Dispor do exagero, figurar o ridículo, despertar o risível, é fazer sentir um tipo de beleza plástica específica da caricatura.

Estamos falando de uma beleza que não recusa nem o feio nem o grotesco, acoberta certa deformidade insinuada na natureza, mas não lhe faz o gosto ou a vontade, procura levar vantagem e exceder com o exagero, transfigurar e transformar, sobretudo lançar mão da imaginação.

A imagem deformada, sob o ponto de vista do caráter poético, emprega um tipo de beleza afastada da forma comum, usual, corriqueira, por efeito de analogia. Dessa maneira, podemos sentir a beleza que a feiúra da forma possa sugerir – física ou moral – pouco importa. O poético desperta um estado de sentimentos, sem que nos seja imposto rastrear um tipo de ordenação do mundo natural.

A formulação do poético, na caricatura, é da ordem de uma representação denegada, não estabelece compromisso com o registro direto ou o reflexo passivo de uma pessoa, animal ou coisa, de uma cena ou episódio, conduz um processo plástico que não respeita a lógica da natureza.

Em poesia, a projeção de uma “gramática” analógica atua sobre a gramática lógica. (cf. Pignatari, 1989: 17) Na plástica da caricatura, podemos dizer, a projeção da deformidade plástica atua sobre a natureza disforme.

Fragmentos do mundo objetivo são desmentidos, contestados na impressão subjetiva do artista. Assim, a projeção de sentimentos do artista assegura o jeito poético de “ser”, de não querer “dizer”, de não querer “representar”, de não querer acordo com o “objeto”.

Há uma tendência expressionista na caricatura, uma forma subjetiva de sobrepor-se ao aspecto convencional ou objetivo do mundo exterior. O poético na caricatura não pressupõe uma atitude de resignação diante da representação e, sim, uma espécie de rebeldia que nos surpreende e encanta.

 

5. Bibliografia

CHALHUB, Samira. Funções da Linguagem. São Paulo: Ática, 1997.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Poética. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1995.

MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo, Vida e Obra: (1857 – 1913). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, Banco Sudameris – Brasil; Brasília: INL, 1987. p. 95 – 143.

MONTELLO, Josué. Histórias da Vida Literária. Rio de Janeiro: Nosso Tempo, 1944. p. 241 – 50.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1989.

_________. A ilusão da contiguidade e breve aceno a uma teoria do quase-signo. In: Semiótica e Literatura. São Paulo: Cultrix. 1987.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

Rafael Bordalo Pinheiro – O português tal e qual: da caricatura à cerâmica. O caricaturista-curadoria de Emanoel Araújo - São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996. p. 30 - 56.

LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. 

Rio de Janeiro: José Olympio, Vol. 4, 1963. p. 1. 667 – 694.

 


A PROPÓSITO DOS TRINTA BOTÕES

Antes do crisol e depois, ou à chegada, e alguns anos depois, de Aluísio Azevedo.

O Fígaro, nº 20, Rio de Janeiro, 13-05-1876.

Fonte: Lima, Herman. História da Caricatura no Brasil (1963). p. 1.682-683.