Orfeu

Geraldo R. Pontes Jr.
UERJ- IL

Pensar que a ressurreição do Cristo presta-se a um paralelo com  o mito grego de Orfeu, anterior àquele, é consagrar, na aproximação, o estatuto de mistério do discurso religioso e a simbologia da morte como acesso ao reino do espírito, por um lado, ou a um rito de passagem e iniciação.

Tendo passado desapercebido – ou quiçá propositalmente esquecido - pelo classicismo teatral, a semelhança com a narrativa bíblica pode tornar-se a referência mais evidente entre nós ao orfismo, que figurou na Antigüidade como uma das três tradições religiosas e lendárias, ou seja, como o conjunto de seitas ligadas ao ascetismo e ao mistério, sendo as outras duas as dionisíacas (de ritos canibais) e as ptagóricas (praticadas pelas elites). Na literatura brasileira, a retomada do mito de Orfeu se dará inicialmente pela Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, escritor com passagem por toda uma reflexão católica.

Na França, até antes de Jean Cocteau, a situação desta lenda, à margem dos cânones literários clássicos, explica, em Orfeu, seu caráter não olímpico, diferentemente dos mitos originários das outras tradições. Portanto, contrariamente à relação lendária de Orfeu com uma literatura dramática canônica, no Ocidente da História Moderna, que aconteceu praticamente a partir do resgate de tradições olímpicas e dionisíacas, apresentamos aqui a sua inserção nas vanguardas do modernismo – o teatro francês e o brasileiro –, resgatando sua tradição como caminho para pensar as realizações cinematográficas resultantes de suas adapatações. Assim, o aspecto estético da releitura textual e da contextualixação cultural dá às obras o contorno tipicamente moderno. Orphée, de Jean Cocteau, mais do que representar o mito, contextualizado no mundo moderno (talvez a França da década de 40, mas sobretudo qualquer época ou lugar, como quiser o espectador, diz o narrador no início do filme), faz uma releitura do mesmo em perspectiva ainda tributária do Surrealismo, com predominância do elemento onírico no direcionamento dos sentidos. No filme, realça-se a questão do destino tanto na dicotomia (em vias de abolição) entre vida e morte quanto na criação do poeta, que pretende buscar um sentido novo para a arte, em consonância com a ótica das vanguardas. O mito se dilui, absorvendo aspectos da lenda de Eros e Psique, nas questões literárias francesas surrealistas, apontando para este conflito da permanência da herança clássica francesa na era da vanguarda, na estética da modernidade.

Sua forma moderna se concretiza em meio a visões anti-convencionais de um drama – a lenda acaba não constituindo um conflito dramático claro em Cocteau: a dessacralização da paixão de Orfeu por Eurídice apagada agora no cotidiano do casal (seja porque o poeta persegue a poesia que a morte vem lhe trazer – “Je traque l’inconnu” -, seja pelas reações iradas de Orfeu aos caprichos conjugais de Eurídice, uma vez que o novo que a arte representa para ele se afasta do cotidiano, encarnado em Eurídice, na sua representação de esposa, de vida conjugal, do casamento). No encontro das diferentes personagens com a morte que, personificada,  influencia as ações de cada um, metaforiza-se a passagem de uma vida a outra, desvalorizando o sentido central de uma vida terrena, para manter a ambivalência - ou o livre trânsito - de descer aos Infernos e deles voltar, como experiência, propõndo novo enfoque artístico nas intuições do poeta, nas suas relações com a significação estética, ou a razão de ser da poesia 

Além disso, propõe uma temporalidade cíclica distinta da cronológica, agora não apenas relativa ao projeto de vida, mas inerente ao ciclo de transformação que a violência dos fatos apressam nos versos perseguidos por Orfeu (atentar para o próprio fato de a máquina oferecer os versos a Orfeu, que passa assim a ser falado pelo inconsciente e atormentado pelo simbólico, em íntima relação com a psicanálise).

Para desfazer as amarras da simples representação - e eu diria reapresentação - do mito, Cocteau cria o sonho de Eurídice, invertendo situações, resgatando Orfeu de uma segunda descida dos Infernos, graças à ajuda da sua própria Morte, o que possibilita o distanciamento do filme quanto ao veredito definitivo ao destino das personagens, no mito. Esta leitura põe em estreita relação com as vanguardas o universalismo de Orfeu, como conseqüência de privilegiar sua reflexão sobre o destino e a vida, e de enfocar a arte do poeta como sua própria vivência.

            No início do filme a referência lendária se aproxima de uma versão semelhante a Eros e Psique, uma vez que a narração nos conta que Orfeu não mais podia ver Eurídice, após buscá-la nos Infernos – da mesma forma, Psique não podia conhecer Eros, o único que ousou apaixonar-se por ela, por igualar-se a beleza de Psique que todos temiam. Se a contextualização sócio-histórica fica em aberto – “quanto a saber onde e quando se passa a história, isto é privilégio das lendas. Como você quiser” – culturalmente falando, as transformações dizem respeito a uma proposta surrealista de viver a arte. A estética surrealista francesa ofereceu o terreno propício para o resgate de Orfeu: a ambivalência em que tudo se mantém na obra (vida e morte se alternam, assim como desejo inconsciente e consciência do desejo), alargando os sentidos e inovando quanto à retomada dos clássicos que, no século XVII  só pode se consagrar sob a fórmula da fatalidade trágica.

            A inversão opera a lógica discursiva no Orfeu de Cocteau: o poeta encontra primeiramente com sua Morte antes de morrer ele mesmo e ser ressuscitado por aquela, ao presenciar o acidente de um poeta popular, Jacques Segeste; a Morte, personificada, levando Segeste aos Infernos, pede para que Orfeu, anônimo no meio da multidão, os acompanhe. No caminho, onde se desvia do hospital, Orfeu ouve as primeiras mensagens no rádio do carro, que farão parte de sua busca poética: “O silêncio vai mais rápido em marcha à ré. Três vezes. Repetindo. O silêncio vai mais rápido em marcha à ré. Três vezes. Atenção! Escutem! Um único copo d’água ilumina o mundo. Duas vezes.”

            Como o poeta chega assustado à porta dos Infernos, a morte pergunta a Orfeu se ele está dormindo. A referência ao sonho é sintomática tanto da aproximação entre a lenda no filme e a de Eros e Psique, quanto deste elemento estético tão constante nas referências surrealistas e da psicanálise freudiana, na época. Isto é reforçado logo após a deposição do corpo de Segeste no chão pelos guardas, quando a morte pergunta a Orfeu, ao vê-lo pasmo: “O sr. realmente está dormindo!” Ao que Orfeu retruca: “É muito curioso.” De estranho a curioso, Orfeu indaga a respeito daquilo tudo – porque não paramos no hospital, onde estamos, porque viemos até cá. A morte lhe diz para aceitar seus sonhos, é o papel daquele que dorme.

Eurídice assume a simbologia do cotidiano, e por isso representa a continuidade da vida conjugal, a esposa. Em retorno do desaparecimento nos Infernos à casa, Orfeu encontra Eurídice sendo consolada pelo delegado e por Aglaonice, a presidente de um clube de mulheres – a Liga das Bacantes, onde Eurídice era servente. Irritado com a chefe das Bacantes, Orfeu a expulsa, mas Eurídice lhe chama à atenção, pois Aglaonice representa um perigo. O insólito, que Eurídice quer compreender em sua ausência súbita, gera o desentendimento entre o casal, que se estenderá por causa da ausência de lógica das novas atitudes de Orfeu – será preciso que Heurtebise acalme Eurídice ao entrar dizendo-se o motorista da senhora que atropelou o rapaz. No corte surrealista, é o início da paixão de Heurtebise por Eurídice. E inicia-se a busca de Orfeu, que só pode se dar fora do espaço do lar - Orfeu desce à garagem, e põe-se a trabalhar dentro do carro de Heurtebise, cujo rádio emite as frases enigmáticas em mensagens telegráficas. Logo, o eixo da casa desloca-se para o carro, onde outras discussões terão lugar, representando a dicotomia entre a atenção que Eurídice não tem de seu marido e o significado maior da vida de Orfeu na busca por um sentido enigmático da linguagem e da poesia – transcrito possivelmente naquelas palavras, que ele divulga logo em jornais uma manhã. Orfeu considera que encontrou um novo caminho, quando explica a Eurídice, irritado: “Minha vida estava começando a estragar, apodrecer. Você não compreende que a mais banal destas frases é mais surpreendente que meus poemas. Daria minha obra toda por uma única destas frases. Persigo o desconhecido.” Alerta para o fato de que não se dar conta do sentido das frases é considerar-se morto – o que remete a uma interpretação surrealista da vida como algo que ultrapassa os sentidos comuns, o plano comum, como uma busca que via mais além, e como a tentativa de fazer da vida a própria arte. A sucessão de metáforas se desencadeia no diálogo:

Heurtebise – Desconfie das sereias.

Orfeu – Sou eu que as encanto.

Heurtebise – Sua voz é a mais bela, contente-se com isso.

As frases do rádio anunciam apenas números e Eurídice não pode achar isto poético. Orfeu retruca que não se trata de achar poético ou não, a questão está além.

            A morte é um dos aspectos da Lei da existência nesta obra e está intimamente ligada ao erotismo, no sentido psicanalítico (ela remete ao registro do desejo tentando vencer o do simbólico; para tanto, ela se deixa seduzir pela lógica dos homens – ela é seduzida por Orfeu – e, personificada em uma mulher, torna-se, aos olhos de Eurídice, sua rival). Para entender bem essa transfiguração da Morte, remeto à segunda descida de Orfeu aos Infernos, quando aquela, personificada, reitero, diz a Segeste, ao ver Orfeu retornar com Heurtebise, penalizada, que começa a compreender o que é o tempo para os homens e o que sofrem por terem de esperar. Isto metaforiza sua concepção como a do desejo atemporal do homem, que ainda tem de enfrentar os embates do tempo contra si. Quando finaliza-se essa descida de Orfeu aos Infernos para resgatar Eurídice, o poeta encontra-se na verdade com aquilo que o atrai, sua própria morte -  a atração, por chegar à sedução, explicita-se claramente na transformação de Tânatos em Eros.

O enigma do desejo é remexido na atmosfera meio vivida, meio sonhada, meio lendária, o que se percebe na suspensão permanente de Orfeu, atento apenas à orientação da vida como orientação de sua paixão: é assim que quer saber da Morte quem é a Lei nos Infernos, que submete a própria Morte. A reposta desta tem a ver com a concepção do simbólico da psicanálise freudiana-lacaniana, onde o sujeito é falado pelo inconsciente e “censurado” – ou inserido na cultura -  pela Lei: “trata-se de algo mais forte que todos nós, que dá ordem no eco da montanha, nas folhas ao vento, uns crêem que ele pensa em nós, outros que nos pensa, e ainda outros que somos o seu sonho, um sonho ruim”. A rede de metáforas se desencadeia muito bem no filme: Tânatos era filho da noite e irmão do sono. Desde seu retorno, Orfeu recebe visita da Morte à noite, enquanto dorme – e sonha. Em vez de ir à polícia depor quanto à acusação de plágio dos versos de Segeste pela Bacante Aglaonice e por um grupo de fãs de Segeste, que o acusam de ter roubado e matado o poeta, ele sai do carro à procura da Morte. Ela escapole em cada esquina em que ele a vê passar. Esse jogo de buscar e esconder mantém a suspensão de Orfeu na intriga da realidade, sempre adiando o compromisso entre os mortais.

            A explicação da Lei pela Morte serve de consolo a Orfeu que não mais quer dela separar-se. Mas, pedindo que ele não tentasse compreender o que está aquém da compreensão, ela inicia um trabalho de envio de Orfeu de volta, para que ele chegue ao encontro de Eurídice, agora definitivamente salva, na trama fílmica, de qualquer condição. A separação dos dois faz valer a frase do narrador em off: “A Morte de um poeta deve sacrificar-se para torná-lo imortal” – aí se remete à ambivalência dos sentidos latentes na estética surrealista.

            Outro aspecto desta revelação é que desde o primeiro contato com a Morte, Orfeu ouve as mensagens que medeiam sua vivência, no encontro com o mistério, e sua poesia. As frases assumem a lógica – ou falta da mesma – da poesia surrealista. Já no primeiro encontro com a Morte, uma discussão se desencadeia da recusa de Orfeu, que acaba sintonizando o rádio, que lhe ensina algo importante neste mistério: “Seria melhor se os espelhos refletissem mais. Três vezes.”

            A frase não é apenas uma primeira pista para Orfeu entender que daquele quarto da morte, Segeste, ressuscitado, passará pelo espelho para o outro lado da vida. Mais do que isto, a metáfora do espelho se revela em outra cena. O entendimento das mensagens vai remetendo sempre a um conhecimento afastado do senso comum a respeito do enigma da vida e da morte. Para tentar entender a obstinação de Orfeu por estas palavras, Eurídice, pretendendo buscar ajuda, é atropelada. A morte, entrando no quarto pelo espelho para buscar Eurídice encontra em Heurtebise um pretenso obstáculo: este tenta impedi-la perguntando-lhe se ela tem ordens para executar aquilo. Irritada ela o acusa de estar apaixonado por Eurídice. Ele retruca que ela já se encantou por e seduziu Orfeu, o que também não lhe era permitido.

Orfeu, desesperado, aprende com Heurtebise que o corpo da esposa no leito é apenas uma forma da  morte, e que tudo é falso, pois Orfeu conhece a Morte pessoalmente. Sem se dar conta da referência concreta de Heurtebise, o poeta diz que apenas falou da morte, com ela sonhou e a cantou em seus versos. Assim acreditava conhecê-la, mas não a conhecia. Heurtebise revela que os espelhos são as portas pelas quais a morte vai e vem, convidando-o a descer: “No mais, olhe toda sua vida em um espelho e você verá a morte trabalhar como uma abelha em uma colméia de vidro”. Concluindo, Heurtebise lhe diz que Eurídice habita em outro mundo para o qual o convida a segui-lo, mas Orfeu quer buscar tanto a morte quanto Eurídice.

A descida aos infernos representa o repassar a vida na Zona detrás do espelho, onde se entra para descer aos Infernos. A respeito diz Heurtebise: “a vida demora a morrer e ali se vê passarem as lembranças dos homens – passam pelo caminho personagens que cruzaram com Orfeu em vida - e a ruína de seus hábitos”. Heurtebise sugere que essas lembranças é que levam à morte (dupla metáfora).

O Inferno se representa por uma sala de julgamento onde a Morte é condenada, juntamente com Hertebise por sua paixão por Orfeu e Eurídice, respectivamente. A morte argumenta que as leis que regem o outro mundo são muito diferentes do deles. Ao encontrá-la, Orfeu se dá conta que encnatou a Morte e por ela se apaixonou – o que encerra a simbologia do resgate de Eurídice, como um sonho do poeta sobre seu próprio sentimento de Amor e Morte.

Hipnotizado, após o retorno, enviado pela Morte, de volta ao quarto, Orfeu devolve as luvas que o transportaram para Heurtebise voltar, e a situação de Orfeu e Eurídice é como o acordar de um sonho desta, remetendo a Eros e Psique:

-         E. - você estava me vendo dormir?

-         O. - Sim, meu amor.

-         E. - Estava tendo um pesadelo horrível.

 

Sonho, vida, morte, as dimensões de representação de Orfeu, assim como os mitos que se entrelaçam nesta versão, formam uma cadeia de multiplicação metafórica, onde os sentidos se organizam. O texto se escreve na ambivalência constante do significado, visando sempre, mesmo se indiretamente, a significação.

Bibliografia:

CARVALHO, Sílvia M. S. Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: Ed. da UNESP, 1990.

CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont / Jupiter, 1982.

COCTEAU, Jean. Orphée. Filmado em 1949.

GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine. Paris: PUF, 1961.

MORAES, Vinícius de. Orfeu da Conceição. Rio: Livraria São José, 1960.