UMA ABORDAGEM LÉXICO-SEMÂNTICA DO PAI-NOSSO

Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira (UCSal)

Les langues cheangent sans cesse et ne peuvent fonctioner qu’en ne changeant pas.

Charles Bally[i]

1. Introdução

Se pensarmos na língua como um sistema, e apenas enquanto sistema, iremos imaginá-la estática, pois, segundo Saussurre, o sistema em si  mesmo é imutável; mas se a olharmos como uma realidade histórica intimamente vinculada à vida social dos falantes, despertaremos para a percepção da mudança lingüística, que não é meramente casual.

Imutável é a língua abstrata, a língua enquanto sistema formal limitado à gramática ou ao dicionário. Mutável e mutante é a língua concreta, real, realizada pelos falantes e propensa a receber influências externas. As línguas, portanto, mudam continuamente, embora o falante não se dê conta disto.

Não é a mudança lingüística repentina; antes, pois, é um processo lento e natural. De início, apenas uma variante convive ao lado de uma forma já existente; só a adoção desta variante pela comunidade lingüística caracteriza a mudança. A variação é, pois, condição sine qua non para a mudança; daí, podermos dizer que nem toda variação implica em mudança, mas toda mudança pressupõe uma variação.

As mudanças atingem sempre partes e não o todo da língua, podendo atingir desde a pronúncia até aspectos da organização semântica e pragmática da língua, passando, portanto, pelos níveis morfológico e sintático.

A mudança semântica é abordada na perspectiva da palavra, isto é, como um processo que altera o significado. Na semântica histórica, fala-se de processos que restringem e processos que ampliam o significado. Por meio do estudo etimológico, é possível recuperar, muitas vezes, a seqüência histórica das alterações do significado das palavras.

 

2. O escopo do presente trabalho

Utilizando o texto do Evangelho de São Mateus VI, 6, 8, 9-13, organizado por Klaus Heger no Romanische paralletexte, faremos um estudo léxico-semântico de alguns vocábulos latinos e de alguns dos seus derivados no sardo, no francês, no italiano, no espanhol e no português, analisando as mudanças ocorridas, sobretudo nos conceitos. Antes, porém, cabe transcrever as versões latinas e neolatinas do mesmo texto, extraídas da referida edição:

LATIM ­¾ Cum oras (orabis), intra in cubiculum tuum et clauso ostio, ora Patrem tuum... qui videt in absconso (abscondito) ... Scit enim Pater vester, quid vobis opus (necessarium) sit. Pater noster, qui es in caelis, sanctificetur nomen tuum. Adveniat (veniat) regnum tuum, fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra. Panem nostrum cottidianum (supersubstantialem) da nobis hodie. Et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris. Et ne nos inducas in temptationem, sed libera nos a malo.

Sardo ­¾  Kando pregas, intra in s'appusentu tou et, serrada sa janna, prega a Babbu tou ... qui bidet in segretu... Su Babbu bostru ischit su qui est necessariu a bois. Babbu nostru qui ses in sos chelos, sanctificadu siat su nomen tou. Benzat a nois su regnu tou, facta siat sa voluntade tua, comente in su chelu et in sa terra. Su pane nostru de ogni die danoslu hoe. Et perdonanos sos peccados nostros, comente et nois perdonamus ad sos inimigos nostros. Et nonnos lexas a reure in tentatione, ma liberanos dai male.

Italiano ¾ Quando preghi, entra nella tua cameretta e, serratone l'uscio, fa' orazione al Padre tuo... che vede nel segreto... Il Padre vostro sa le cose di cui avete bisogno. Padre nostro che sei nei cieli, sia santificato il tuo nome. Venga il tuo regno, sia fatta la tua volontà anche in terra com'e fatta nel cielo. Dacci oggi il nostro pane cotidiano. E rimettici i nostri debiti, come anche noi li abbiamo rimessi ai nostri debitori. E non ci esporre alla tentazione, ma liberaci dal maligno.

Francês ­¾ Quand tu pries, entre dans ta chambre et, la porte fermée, prie ton Père... qui voit dans le secret... Votre Père sait de quoi vous avez besoin. Notre Père qui es aux cieux, que ton nom soit sanctifié, que ton règne vienne, que ta volonté soit faite sur la terre comme au ciel. Donne-nous aujourd'hui notre pain de ce jour. Et remets-nous nos dettes (Pardonne-nos nos offenses), comme nos-mêmes avons remis à nos débiteurs (comme nous pardonnons aussi à ceux qui nous ont offensés). Et ne nous soumets pas (laisse pas succomber) à la tentation, mais dé livre-nous du mal.

Espanhol ­¾ Cuando oras, éntrate en tu cámara y, cerrada tu puerta, ora a tu Padre... que ve en secreto... Vuestro Padre sabe de qué cosas tenéis necesidad. Padre nuestro que estás en los cielos, santificado sea tu nombre. Venga tu reino, sea hecha tu voluntad, como en el cielo así también en la tierra. Danos hoy nuestro pan cotidiano. Y perdónanos nuestras deudas, como también nosotros perdonamos a nuestros deudores. Y no nos metas en tentación, mas libranos del mal.

Português ­¾  Quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai ... que vê secretamente... Vosso Pai sabe o que vos é necessário. Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome. Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dá hoje. E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. E não nos conduz à tentação, mas livra-nos do mal”.

 

3. Estudo da mudança semântica das formas

 

LAT. CUM;   sd. Kando; it. quando; fr. quand; esp. cuando;  port. quando.

Em latim arcaico, quom é um antigo acusativo singular neutro ou masculino do relativo indefinido que vai aparecer na composição de quoniam (quom + iam,) e do advérbio quondam (quom + dam). Do ponto de vista morfológico, funciona como preposição de companhia (= com), como conjunção concessiva (= como) e como conjunção temporal, significando ‘quando’ (= em que tempo?, durante o tempo em que).

Ainda em latim, a conjunção concessiva quanquam, antigo acusativo feminino singular do relativo indefinido, talvez origine o primeiro elemento de quando (de quam + do), sendo o segundo a partícula locativa do, que ocorre em donec, advérbio e conjunção) ocorre como advérbio, na acepção de ‘algumas vezes’, posposto a si, ne ou num, sendo empregado em lugar de aliquando.

No período arcaico, empregava-se o quando como sinônimo de cum, com a significação de ‘quando’. Na época clássica, usava-se apenas como advérbio interrogativo ou conjunção causal. Nas línguas românicas, conservaram-se apenas formas derivadas de quando, como conjunções temporais, o que caracteriza um caso de gramaticalização.

 

LAT. ORARE (oras); sd. pregare (pregas); it. pregare (preghi); fr. prier (pries); esp. orar (oras); port. orar (orares).

A forma latina orare, relacionada por etimologia popular a os, oris, designava a pronúncia de uma forma ritual, uma súplica, e originou em português e espanhol o vocábulo ‘orar’, com o mesmo sentido.

Os vocábulos sardo e italiano pregare e o francês prier vêm da forma latina prædicare, que tinha o sentido de ‘dizer antecipadamente, predizer’. Em francês arcaico, utilizava-se mais freqüentemente orer (do latim orare) para exprimir a ação de ‘orar’; prier era usado somente com regente direto (prier Dieu). Após o século XV, orer cede lugar a prier, aparecendo no século XVI com o sentido de proclamar.

A forma passiva pregari, de prædicare, significava em latim tardio ‘falar sobre a forma de sermão’; daí originou-se o sentido do vocábulo português pregar (< lt. vg. precare < lt. cl. prædicare).

 

LAT. CUBICULUM; sd. appusentu; it. cameretta; fr. chambre; esp. cámara; port. aposento.

O substantivo cubiculum vem do verbo cubare, ‘estar deitado, estirado’. Plínio e Cícero usam-no com o sentido de ‘quarto, alcova, aposento de dormir’. Neste sentido, derivam-se em espanhol e português, respectivamente, as formas cubil e covil, que significam ‘sítio onde os animais selvagens se recolhem para dormir’, e o vocábulo português cubículo, usado no século XVI com o sentido de ‘quarto de cama, câmara’, hoje empregado pejorativamente.

Os termos appusentu e aposento, respectivamente, do sardo e do português, advém do latim tardio pousare, que significava, ‘assentar, depor’. No século XVI, passa a significar ‘quarto’. Ainda como derivados da forma latina em português, temos, entre outros, pouso, pousada, aposentado.

O italiano cameretta, o francês chambre e o espanhol cámara vêm do latim camera, originado do grego kamara, que, inicialmente, significava ‘teto abobadado’. Lembrando esse sentido original, temos o vocábulo  português câmara, ‘assembléia política ou comercial’, pelo fato de essas reuniões serem feitas em sala de teto normalmente abobadado.

Ainda como derivada portuguesa de camara, temos a palavra camarada, registrada em 1555 com o sentido de ‘grupo de soldados que comem e dormem juntos’, passando daí, para a acepção de ‘companheiro’, já em 1592. Além dela, camareiro, e três formas derivadas de diminutivo: camarinha, camarim e camarote.

No século IV, já como a forma vulgar camara, o termo latino ganhou o sentido de ‘quarto’, dado por Santo Agostinho; donde o seu emprego como tal em francês, espanhol e italiano. Este último utiliza uma forma que se pode dizer ‘diminutiva’ da forma latina.

A forma camara além de vulgar e atestada no Appendix Probi de Petrônio, é também um eruditismo de autores como Sêneca. As formas românicas podem ter vindo da forma clássica ou da vulgar, porém as formas cámara, do espanhol, câmara, do português e as equivalentes nos dialetos italianos indicam o uso da forma vulgar em quase toda România.

LAT. CLAUDERE (clauso); sd. serrar (serrada); it. serrare (serratone); fr. fermer (fermeé); esp. cerrar (cerrada); port. fechar (fechada).

Derivado do substantivo clausum, i, ‘lugar fechado’, o verbo latino claudere significava ‘fechar, encerrar, cercar, trancar’. Dele, em português, tem-se o derivado clausura.

A forma francesa arcaica clore, do latim claudere, substituiu fortifier no século XII, sendo também substituída, no século XV, por fermer, do latim firmare, ‘tornar firme’, devido a homonímia com as formas do verbo clouer.

As formas sarda, italiana e espanhola derivam-se de serra, ‘ferrolho’; daí, o verbo utilizado no latim tardio serrare.

Segundo o lingüista sueco Gunhar Tilander, a forma portuguesa fechar tem origem no latim fistulare, de fistula, ‘cana de que se faziam flautas, e depois, o mesmo que flauta’. Os trincos primitivos tinham o ferrolho com vários furos, semelhantemente a uma flauta. Já pela forma alongada, já pelos buracos ou furos do instrumento, primeiro surgiu fecho < fistula, depois fechar < fistulare.

 

LAT. OSTIUM; sd. janna; it. uscio; fr. porte; esp. puerta; port. porta.

O latim clássico distinguia porta, ‘entrada da cidade, abertura entre montanhas’, de ostium e janna, ‘entrada da casa’  e fores, ‘entrada do quarto’. No latim vulgar, a forma porta eliminou inicialmente fores, depois ostium, permanecendo em francês, espanhol e português.

A sobrevivência da forma janna em sardo é um argumento a favor da idéia de ser essa a mais conservadora dentre as línguas românicas.

A forma italiana uscio, assim como usclo e uscire (‘sair’), origina-se do latim tardio ustium, do latim clássico ostium, por sua vez derivado antigo de os, oris, ‘boca’.

 

LAT. PATREM, sd. babbu; it. padre; fr. père; esp. padre; port. pai.

Em latim, inicialmente, pater, tris designava um título respeitoso, de valor social, dado aos deuses, em especial a Júpiter, aos heróis, aos antepassados, aos Senadores. Esse título de caráter genérico não envolvia a idéia de paternidade física, expressa por parens, entis; genitor, oris. Da forma pater, tris derivaram-se todas as formas românicas arroladas.

Em português, o vocábulo pai (< lt. vg. ib. padre < lt. vg. patrem < lt. cl. pater) já é encontrado, embora raro, em textos do século XIII, vulgarizando-se a partir do século XVI, em prejuízo do então corrente padre, que já aparece na acepção de ‘pai’ num documento datado de 1075 em variação com uma forma pader.

Nos Diálogos de São Gregório, registra-se padre com o sentido de sacerdote católico, usual a partir do século XVI, hoje exclusivo. Modernamente, há, entre seus derivados em português, palavras como compadre (< lt. vg. compatre), ‘o que compartilha a paternidade’, padrinho, pátria, patrocínio, paterno, patrimônio, patronímico, padrasto, patrologia.

Em alguns falares do espanhol, (os de Andaluzia, Chile e Porto Rico), em lugar de padre, tem grande extensão a forma vulgar paire, donde, o hipocorístico pay: el pay Juan.

Em italiano, patre (século XIII), com valor social e religioso, era substituído pelas formas papa, tata e babbu, nas área da Toscana, Córsega, Umbria e Sardenha, respectivamente, vindas da fala infantil. No italiano meridional e no romeno, utiliza-se tata.

 

LAT. OPUS; sd. necessariu; it. bisogno; fr. besoin; esp. necessidad; port. necessário

Em latim, opus, eris significava ‘obras, trabalhos dos campos’ e formava a locução impessoal “opus necessarium’, correspondente a ‘é necessário, é bom’, em português.

O termo italiano bisogno, ‘necessidade’, procede do verbo bisognare, ‘necessitar’, que se acredita tenha origem no germânico bisônjôn, utilizado em 1517 no sentido de ‘ter cuidado’. A palavra em italiano começou a ser aplicada no século XVI em referência aos soldados espanhóis recém-chegados à Itália por estarem mal vestidos. Nasceu como apodo pelo grande uso que faziam esses soldados da palavra para pedir aos habitantes a satisfação de suas necessidades.

Em português, existe a forma bisonho, dicionarizado com o sentido de ‘indivíduo inexperiente, pouco adestrado em qualquer arte, ofício ou mister; acanhado; recruta’.

No frâncico do século XII, a forma bisonge tinha o sentido de ‘necessidade, pobreza’; daí, bisunnia, ‘coisa necessária’ da donde, o vocábulo moderno besoin.

 

LAT. (AD)VENIRE ((ad)veniat); sd. benzere (benzat); it. venire (venga); fr. venir (vienne); esp. venir (venga); port. vir (venha).

Em latim, não obstante significassem a mesma coisa, havia uma distinção entre os verbos vire e venire determinada pelo aspecto: o deste, indeterminado; o daquele, determinado. Ambos se mantiveram em quase todas as línguas românicas.

Segundo Corominas, em espanhol, a forma venir sofre de empobrecimento semântico em relação à sua variante advenir, uma antiquada grafia latinizante ou um recente galicismo.

Em português, vir e advir têm sentidos diferentes, significando, este último, ‘suceder, ocorrer, sobrevir’.

Nos derivados, acontece uma regressão etimológica, ou seja, o verbo já consagrado vir passa a ter o a(d), como em advento, adventício (‘o que vem de fora, de chegada, de vinda’), adventista, avenida, aventura, aventurado.

 

3. À guisa de uma conclusão

De tudo o que se disse até o momento, confirma-se a mudança semântica das formas latinas do texto selecionado ao longo de sua evolução histórica em direção às línguas românicas, através de processos que ora restringem, ora ampliam o significado original.

As modificações semânticas apreciadas, como toda mudança lingüística, ocorreram gradual e paulatinamente ao longo dos séculos, pressupondo momentos de variação.

Esperamos ter sido este pequeno estudo um contributo ao conhecimento da romanística acerca da evolução semântica do latim e das línguas neolatinas.

 

 

4. Referências bibliográficas:

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LAUSBERG, Heinrich (1962). Lingüística românica. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian.

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[i] Apud Coseriu (1979:15).