VARIAÇÕES MELÓDICAS NA VOZ DE GRANDE INTENSIDADE

Domingos Sávio Ferreira de Oliveira (UFF/UNI-RIO)

INTRODUÇÃO

                A voz humana é uma aquisição do ser humano, pois não existe um órgão fonador propriamente dito. Sua produção é possível a partir da conjunção de vários órgãos dando origem ao Sistema Fonador. Assim, pode-se definir a fonética articulatória ou fisiológica como o estudo da adaptação para a fala de órgãos cuja função primeira está relacionada à manutenção da vida. A segunda função está vinculada à fisiologia da fonação que é uma adaptação à função fonatória de órgãos que desempenham outras funções vitais como a respiração e a deglutição. E, a partir da atuação harmoniosa e sinérgica dos órgãos mencionados, ter-se-á a formação do som vocal.

                De acordo com Malmberg (1983) “a fonética, em sentido amplo, lato sensu, é o estudo da expressão da linguagem como forma (funções) e como substância (sons). Em sentido restrito, stricto sensu, a Fonética é o estudo da substância da expressão (sons) e a Fonologia, o da forma (relações). São os dois aspectos da expressão que devem ser considerados pelos estudiosos da linguagem humana[1]”. Para este artigo, foi explorada mais a substância da expressão uma vez que se decidiu por uma análise da percepção auditiva baseada nos métodos da fonética auditiva.

                Estudou-se a entoação do grito, do gemido e do choro, fatos extra-lingüísticos[2], na voz “fingida” do ator. São manifestações vocais inarticuladas, mas, ricas de emoção. A respeito da validade e importância de estudos dessa natureza, eis as palavras de Troubetzkoy (1964: p.24-25):

 

...os procedimentos fonológicos de apelo devem ser, por sua vez, cuidadosamente distinguidos das expressões naturais de sentimento mesmo se estas são artificialmente fingidas. Que o falante gagueje sob o efeito da angústia ou da emoção (fingida ou real) ou que ele interrompa seu discurso por soluços, isto não tem nada a ver com a fonologia. Na verdade, trata-se de sintomas que aparecem mesmo em manifestações extra-lingüísticas... entoações de origem emocional aparecem também freqüentemente em expressões extra-lingüísticas (em gritos indeterminados e inarticulados), de maneira que as emoções concretas que elas provocam podem ser claramente reconhecidas. Pelo que parece, essas entoações extra-lingüísticas que provocam emoções apresentam a mesma estrutura de altura e intensidade que as palavras que têm a mesma nuança emocional; aliás, isto jamais foi estudado de uma maneira bem precisa”.

   

 

1. RESULTADOS OBTIDOS DAS ANÁLISES DAS CURVAS MELÓDICAS

 

GRITO

 

                O grito se caracteriza por freqüências e intensidades mais elevadas em relação ao choro e ao gemido. Há, também, uma duração maior de freqüências e intensidades altas nas respectivas curvas. Isto quer dizer que as freqüências altas do mesmo modo que as intensidades altas, ocupam um tempo de duração bem marcado e grande.

                O espectro do grito se opõe aos espectros do gemido e do choro, por apresentar uma alta freqüência e uma alta intensidade.

 

GEMIDO

 

                Observa-se uma variação regular e constante, sem grande diferença de oscilação, durante toda a realização da curva.

                Com a intensidade também ocorre uma realização de alternâncias, embora a oscilação na curva da freqüência seja mais caracterizada (de freqüências altas e baixas). Há, ainda, uma variação que se dá dentro de uma gama de freqüências não muito grande, e até certo ponto, de forma ritmada.

 

CHORO

 

                A  partir dos dados colhidos parece que se pode ter como característica do choro a manutenção da curva da entoação numa gama limitada de freqüências. A variação de Fo[3] no choro é bem menor do que no gemido.

                Observa-se, também, que a intensidade do choro dos dois informantes é menor do que a intensidade do grito.

 

2. DISCUSSÃO E SÍNTESE 

 

                As variações das curvas da freqüência e da intensidade dos sons grito, choro e gemido estão de acordo com as intenções teatrais e vocais estabelecidas pelos dois informantes. Colheram-se as amostras pretendidas sem ter a obrigação de estabelecer um padrão “idêntico” de emissão dos dois falantes. Solicitou-se, sim, que as emissões fossem produzidas com densidade e em alto volume. As curvas da entoação e da intensidade obtidas dos sons em questão fornecem dados quantitativos em hertz e decibéis, respectivamente, permitindo uma interpretação relativa das características sonoras próprias ao falante. Percebeu-se que, no choro, a curva da entoação se mantém dentro de uma gama de freqüências médias se for comparada com a mesma curva para o grito que apresenta uma notável variação de freqüências, indo do nível baixo ao nível alto. Essa curva do choro comparada com a do gemido apresenta um nível mais alto, uma vez que a curva do gemido mantém-se em nível baixo. Quanto à curva da intensidade para o choro, de um modo geral, apresenta valores em decibéis inferiores aqueles alcançados pelo grito, porém, superiores aos do gemido. Deve-se considerar, aqui, a influência do emocional sobre o comportamento vocal do indivíduo. O som, proveniente do choro, revela características fonatórias adequadas ao estado psicológico do sujeito, pois, neste tipo de emissão, observa-se uma movimentação corporal contida que resulta em maior contração dos órgãos articulatórios.

As configurações das regiões glótica[4] e supraglótica[5], observadas através dos exames laringológicos realizados por fibra óptica flexível[6], retratam fielmente a expressão vocal chorosa. Nesta observa-se, como lembra Philippe Martin (1997), a falta de controle fisiológico do indivíduo sobre a emissão vocal que está realizando e a grande inter-relação entre os estados psico-fisiológico e os resultados da fonação.

                Os traçados acústicos do grito dos dois informantes registraram as freqüências mais elevadas em relação às do choro e às do gemido. Observou-se, também, que a duração dos pontos mais elevados da curva de Fo no grito realiza-se num maior espaço de tempo se comparada a das curvas do gemido e do choro. Essa subida do fundamental de Fo no grito relaciona-se ao estado emocional do emissor, uma vez que há da parte do indivíduo o desejo de manifestar uma agressão, o que resulta em explosão vocal. O grito é uma manifestação sonora que exige forte constrição glótica e supraglótica, demandando grande esforço articulatório da parte do emissor.

                O gemido foi o som que apresentou o traçado acústico mais regular e constante durante todo o tempo de sua realização. Isto pode ser explicado pelo tipo de voz que, normalmente, utiliza-se neste som: um tremor caracterizado por variações mais ou menos constantes da freqüência da voz. Do ponto de vista psicológico, o indivíduo está sofrendo, está triste. Este estado influi no comportamento dos órgãos fonadores. Assim, a glote e as cavidades supraglóticas apresentam, nesse caso, uma menor tensão muscular, um afrouxamento geral, se comparada à sua configuração para o grito e o choro.

                Constatou-se, a partir dos dados obtidos, que os espectros do gemido e do choro têm algumas semelhanças entre si uma vez que apresentam variações de Fo sem grandes oscilações se comparadas as do grito. Esta constatação sugere que o choro pode se “dar por uma continuação da técnica do gemido”.

                A partir do estudo introdutório que se realizou a respeito das amostras espectrográficas dos sons grito, gemido e choro, obtiveram-se algumas conclusões importantes para aqueles que se dedicam à preparação vocal no teatro. Por exemplo, as oscilações das curvas da freqüência, observadas através das diferenças em hertz, revelam a variação do movimento das cordas vocais.

                Através dessas análises, é possível estabelecer juntamente com a participação do ator os melhores níveis de entoação em que ele deverá atuar, a fim de obter o máximo de aproveitamento de sua capacidade vocal e ressonantal sem que fique prejudicada sua atuação no palco.

                A observação das curvas da intensidade é mais um instrumento que pode auxiliar muito no controle da amplitude vocal no espaço cênico. Pelas análises das referidas curvas, o ator pode ser conscientizado a respeito do esforço vocal utilizado, prevenindo-se assim, contra futuros danos vocais. Distúrbios da voz podem impedir a utilização de vocalizações supra-segmentais, prejudicando a eficácia da comunicação.

                Essas pesquisas, em Fonética Experimental, da variação da intensidade, permitem avaliar o limite máximo em decibéis da potência da voz que deve ser utilizada em benefício da saúde vocal e da atuação do ator.

                Uma outra informação que merece ser destacada diz respeito à inter-relação que existe entre as curvas da entoação e da intensidade. A intensidade normalmente aumenta à medida que a freqüência varia para o agudo. Mesmo concordando com esta premissa, em geral, percebe-se nas análises feitas que as variações da freqüência foram mais marcantes do que as oscilações da intensidade. Esta observação introduz uma outra questão bastante interessante ao estudo da voz no teatro, isto é, a possibilidade de explorar diversas tonalidades vocais, procurando manter um nível de amplitude sem grandes variações, pois observou-se que, geralmente, os atores de teatro aumentam a intensidade da voz praticamente na mesma proporção que a altura.

                Um outro ponto que pode ser estudado através das análises das curvas da freqüência e da intensidade relaciona-se à inflexão da voz, visto que a natureza do traçado acústico possibilita um estudo científico das inflexões utilizadas em um determinado momento da trama pelo ator. Pode-se até mesmo inferir, como já se aludiu anteriormente, algumas deduções relativas ao conteúdo emocional do intérprete, através da variedade de suas inflexões. A observação de picos elevados e consecutivos em uma determinada curva de entoação, implica, certamente, em emissão explosiva e vigorosa.

                O profissional dedicado ao aprimoramento vocal do ator precisa conhecer e dominar conteúdos concernentes não só à anátomo-fisiologia da fonação, como também, à acústica dos sons da fala. Pelo primeiro conhecimento, poderá facilmente determinar alterações vocais que são indícios de uma falta nos ajustes dos órgãos articulatórios. Pelo conhecimento da análise física dos sons da fala, poderá estabelecer de forma científica, a inter-relação entre os níveis articulatório e acústico, permitindo uma análise do nível psicológico.

                O presente artigo confirma a necessidade do conhecimento do espaço cênico que o preparador vocal precisa ter. Nunca se deve esquecer que a linguagem falada requer envolvimento espacial e sonoro, a fim de despertar o famoso fenômeno de “presença” no teatro. Para Roubine (1990) “esse fenômeno acontece, em parte, porque o espectador se acha como atravessado pelas vibrações dessa voz...” Portanto a falta desse conhecimento, ao nosso ver, faz da preparação vocal do ator um simples procedimento teórico e mecanicista.

 

CONCLUSÃO

 

                Observou-se no decorrer das pesquisas bibliográficas, da análise dos espectros dos sons estudados e da prática pedagógica adotada em sala de aula, que não se pode definir um nível de intensidade ideal para o ator, porque essa varia de acordo com o contexto e a circunstância teatral.

As pesquisas também demonstram que o ator que está em exercício de ensaio constante deverá se conscientizar dos cuidados que precisa ter com sua voz, principalmente, se está realizando tons agudos e sons de grande intensidade.

                Evidencia-se, também, a importância da técnica vocal para o ator, assim como a necessidade de conhecimentos concernentes às artes cênicas que devem ter os profissionais que atuam no aprimoramento e desenvolvimento da voz profissional no teatro.

                Embora os resultados alcançados sejam bastante satisfatórios, as conclusões a que se chegou a respeito do grito, do gemido e do choro em grande intensidade serão aprimoradas pela continuação de pesquisas futuras.

                Acrescenta-se, finalmente, que as informações aqui encontradas são o produto de vivência aliada à teoria, tendo como objetivo atender à preparação do ator em relação à voz de grande intensidade.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

FÓNAGY, Ivan (1983, 1991) La Vive Voix. Essais de Psycho-Phonétique.  

         Paris, Bibliothéque Scientifique Payot.

 MACHADO, Mirian da Matta (1993) Cadernos  de  Estudos Lingüísticos.

         Campinas, (25): 1-173, Jul./Dez. 1993.

MALMBERG, Bertil (1974) Manuel de Phonétique Générale. Paris, Picard.

MARTIN, Philippe (1996) WinPitch:  Fo en Temps Reel sous Windows 3.1 

          In:  XXI  Journées D’Étude Sur La Parole,  Avignon 10-14 Juin 1996,

          pp. 437-440.

MARTINET, André (1985) Elementos de Lingüística Geral.  Lisboa,  Sá da

          Costa Editora.

QUILIS, Antonio (1979) Fonction Linguistique de L’Intonation. Travaux de

          de L’Institut de Fhonétique de Strasbourg, nº 11, pp. 79-108.

ROUBINE, Jean-Jacques (1990) A  Arte do Ator. Rio de Janeiro, Jorge Za-

          har Editor.

TROUBETZKOY, N.S.  (1964)  Principes de Phonologie.  Tradução  de  J.

          Cantineau. Paris, Librairie C. Klincksieck.



[1] Cadernos de Estudos Lingüísticos 25, p.12 (Org. por Mirian da Matta Machado)

[2] Fato extra-lingüístico: é aquele que não pertence ao sistema da língua.

[3] Fo: freqüência fundamental

[4] Região Glótica: espaço na laringe que consiste da abertura entre as cordas vocais.

[5] Região Supraglótica: região sobre as cordas vocais; vai do bordo superior das cordas vocais à cartilagem epiglótica (limite superior da laringe).

[6] Exame que permite a inspeção do interior da laringe em fonação.