VARIABILIDADE NA TRAJETÓRIA DO PORTUGUÊS: UMA ABORDAGEM FUNCIONAL

Mariangela Rios de Oliveira (UFF)

Sebastião Josué Votre (UFF)

FUNCIONALISMO E VARIABILIDADE

De acordo com o paradigma funcionalista da gramaticalização (Martelotta et alii, 96; Givón, 95; Heine et alii, 91) à medida que ocorre a generalização de um determinado uso lingüístico, há tendência de que o mesmo passe do âmbito do discurso, em que há liberdade de escolha, para o nível da gramática, em que se verifica sua fixação, diminuindo ou mesmo cessando a possibilidade de variação com outra(s) forma(as).

Nessa trajetória unidirecional, do léxico à gramática, da referência concreta à abstrata, da eventualidade à sistematização, as mudanças não são absolutas nem pré-determinadas. A gramaticalização é um critério geral de mudança, um continuum, um processo histórico articulado em níveis não restritivos.

Dessa forma, a variabilidade tem abrigo na teoria funcionalista com que trabalhamos. Longe de representar problema teórico-empírico, a variação lingüística é interpretada como um estágio do processo de gramaticalização. Ela é entendida como formas em competição no plano sincrônico, formas estas que, por razões imprevisíveis, em algum momento da história da língua, iniciam ou cessam a concorrência entre si.

Conforme o princípio do uniformitarismo (Labov, 74; Romaine, 82), as tendências de variação atuais correspondem a processos semelhantes aos que se verificaram no passado e aos que tenderão a se verificar no futuro, evidenciando o caráter contínuo das trajetória dos usos lingüísticos. Essa perspectiva analítica, que contempla diacronia e sincronia, tratando-as integradamente, é a chamada abordagem pancrônica, não dicotômica, que assumimos neste estudo acerca da variabilidade.

Os princípios de regularização gramatical, segundo Hopper (91), incluem:

a) Divergência: as formas da língua assumem novos significados em certos contextos, enquanto retêm antigos sentidos em outros;

b) Especialização: as formas da língua tendem a fixar seu uso nos estágios finais de regularização, reduzindo ou cessando, então, a possibilidade de variação;

c) Decategorização: as formas da língua estão propensas a perder ou neutralizar marcas morfológicas e sintáticas de categorias primárias (lexicais) e a assumir marcas de categorias secundárias (gramaticais);

d) Persistência: as formas da língua mantêm relação com seu sentido lexical original; essa relação torna-se progressivamente mais opaca com o processo de regularização ou convencionalização gramatical;

e) Camadas: dois ou mais itens ou construções da língua podem competir num mesmo campo semântico em momentos variados de sua trajetória, segundo alternativas funcionais ou estilísticas à disposição dos usuários.

Dos cinco princípios apresentados, todos aplicáveis aos fenômenos de mudança com variação, o último – camadas – representa a alternativa teórica mais adequada para dar conta dos processos e estados de variabilidade. Segundo tal proposição, as diferentes camadas de forma coexistem durante períodos indetermináveis, têm idades distintas, devido à entrada diferenciada no uso lingüístico, e podem ser complementares, competitivas ou relativamente redundantes. Neste último caso, configura-se o que a tradição lingüística rotula como variação.

As formas mais recentes podem ser mais longas do que as mais antigas, a exemplo de a gente / nós e vou sair / sairei, ou podem ser de mesma dimensão, como meia / meio e mim / eu.

Não podemos admitir a hipótese funcional mais ingênua de necessidade comunicativa como motivadora do surgimento da nova forma. Por outro lado, assumimos que, num primeiro momento, utilizou-se um mecanismo de transferência, por semelhança contextual, para fazer com que uma mesma forma pudesse incorporar uma nova função. Progressivamente, essa nova função acabou por fixar a marca formal específica, passando a competir com a marca original. De acordo com essa perspectiva, afirmamos que não há coincidência total, no plano do conteúdo, entre as formas ditas variantes.

 

VARIABILIDADE NA TRAJETÓRIA DO PORTUGUÊS

 

Passamos a apresentar e a comentar sucintamente alguns fenômenos exemplares de variação na língua portuguesa. De acordo com a fundamentação teórica aqui apresentada, as camadas em análise encontram-se distribuídas pelas fases da história do idioma, na ênfase do continuum como traço marcador da variabilidade rumo à convencionalização.

No tratamento das questões diacrônicas, pautamo-nos na série de seis volumes, organizada por Segismundo Spina, História da língua portuguesa. Os exemplos do uso sincrônico são levantados do Corpus Discurso & Gramática – A língua falada e escrita  na cidade do Rio de Janeiro; esta coletânea é composta por textos orais e seus correspondentes escritos, produzidos pela comunidade estudantil carioca na década de noventa, da classe de alfabetização infantil ao último período universitário.

Nos primeiros séculos do idioma, ainda na fase do galego-português, podem-se citar como variantes alguns pares de vocábulos cujo termo mais recente se motiva pelo contato com as literaturas francesa e provençal. Assim, encontramos provençalismos nos primeiros itens dos pares entendedor / namorado, mege / médico, cor / coraçon, cousimento / discrição, sem / senso e prez / preço.

O artigo, por sua debilidade articulatória ou sua posição proclítica, funde-se com o nome a que se relaciona, num processo de reanálise gerador das formas correspondentes: aleijão < a+lesione, arraia < a+raia, ameaça < a+minacia, maluta < uma+luta.

No século XV e meados do século XVI, palavras latinadas concorrem com palavras de nossa lingoagem, segundo a prosa didática de D. Duarte. Essa  concorrência estabelece variações como as seguintes, cuja primeira forma, considerada mais erudita, os gramáticos aconselham que seja evitada, em nome da expressão de modo claro e correto: avysamentos / conselhos, yra / sanha, odio / malquerença e occiosidade / priguiça.

Segundo a mesma orientação, D. Duarte procura distinções entre os sentidos semelhantes de tristeza, pesar, nojo, aborrecimento e suidade (saudade) ou entre avisado, percebido, previsto e circunspecto.

Em 1536, na primeira gramática da língua portuguesa, Fernão de Oliveira comenta termos desusados, dicções velhas naquela época, como ogano (este ano), samica(s) (porventura) e algorem (alguma coisa).

Os substantivos em _mento, ­_ança e ­­_ença, muito comuns nos autores do século XV, passam por processo de substituição a partir do século XVI. Algumas dessas formas alteram o significante: (des)falicimento / falta e lembramento / nembrança, lembrança; outras caem em desuso: leixamento / deixar e aqueecimento / acontecimento. Por outro lado, o processo de derivação sufixal continua gerando novos pares concorrentes,  como: posicionamento / posição, enfrentamento / confronto ou posteamento / colocar postes, este último sem uso nos dias atuais.

Em termos sintáticos, pleonasmos e repetições estão presentes na fase arcaica do português de forma marcante. Assim, encontramos na língua escrita dessa fase estrutura hoje consideradas redundantes ou mais próximas à modalidade falada, como: sua deffenssom delles, e despois pelos seus delle mesmo Rey, oge este dia, dor que ninguem non entende, dentre outras.

Na segunda metade do século XVI e século XVII, a língua enriquece seu acervo lexical. Por força da atuação dos gramáticos, o português disciplina suas estruturas e passa a competir com outro idioma românico – o espanhol, na expansão para além do território ibérico. Motivados pelos ideais renascentistas, uma série de latinismos semânticos são introduzidos no português, acarretando a formação de variantes como as seguintes, em que os termos iniciais representam as inovações referidas: idade / vida, parentes / pais, partes / regiões, claro / ilustre, levar / levantar, numeroso / melodioso e ainda ser / haver. Hoje, esses termos têm especializado mais seu uso, reduzindo a margem de variabilidade.

Com as grandes navegações e o intercâmbio comercial com outros povos, a língua portuguesa incorpora considerável elenco de empréstimos. Formam-se, por exemplo, as séries concorrentes chatinar / mercadejar e beniaga / mercadoria, nas quais o primeiro termo é de origem árabe.

Em território brasileiro, o léxico português se enriquece com termos de origem indígena e africana. Alguns desses termos passam a competir com formas vernáculas, conforme os pares variantes a seguir, em que a palavra inicial representa um africanismo: moleque / velhaco ou menino, cafundó / longe, além e caçula / filho mais novo.

No século XVII, as estéticas do cultismo, na poesia, e do conceptismo, na prosa, mudam a acepção de termos concorrentes, criando variações do tipo: dilatar / arremeter, beber / nadar, desatar / desvanecer-se; reabilitam acepções cultas latinas, com a formação de pares como: traduzir / levar ou transportar, desígnio / desenho, reduzir / voltar a levar e absolver / terminar; lançam mão dos chamados termos de época, motivando as duplas breve / efêmero e caducar / encanecer, dentre outras.

O século XVIII representa o período em que se dá o embate entre o velho e o novo, entre a tradição e a modernidade na língua portuguesa. Gramáticos, eruditos e escritores não conseguem chegar a um acordo acerca de muitos empregos lexicais. Numa das Conferências discretas e eruditas, por volta de 1696, o frade Rafael Bluteau  cita empréstimos, ou palavras pendentes, justificados por três razões: indigência, elegância e decência. Desta forma, recuperam-se significados genuínos dos termos iniciais dos pares: projeto / desenho, destacar / tirar parte da tropa, animosidade / insolência e chaminé / fogão; importam-se palavras contra plebeísmos indecentes, como o termo grego pirilampo, em substituição à forma cagalume.

Nessa época, Luís Antônio Verney sugere que se importe para explicar melhor o que queremos. Propõe então pensar como termo mais genérico do que os concorrentes considerar, meditar, examinar ou ajuizar; critica a atitude preconceituosa para com o nome porco, substituído no uso mais formal por perífrases do tipo gado mais asqueroso ou carne suína.

Nas Reflexões sobre a língua portuguesa, Francisco José Freire, ou Cândido Lusitano, faz preciosos comentários acerca da variabilidade no período. Alguns arcaísmos informados pelo autor como palavras que murcharam na idade presente sobrevivem até hoje no idioma, ampliados por novas acepções; é o caso de agrura, antes impureza e  hoje aspereza, dissabor ou amargura; derradeiro, considerado vulgarismo na época, e feitiço, antes coisa fingida e hoje sortilégio. José Freire cita também palavras freqüentes na fala, embora não usadas pelos gramáticos, casos que podemos considerar como típicos de variação, representados pelos seguintes pares, cujo termo inicial era o de maior aceitação popular: atestar / testificar, ator / representante, depredar / saquear, emprego / ocupação e imune / isento. Note-se que até hoje esses termos iniciais têm uso consagrado. O autor também comenta outro grupo lexical marcado pela variabilidade; trata-se daquele das palavras preteridas pelos gramáticos e que ocorrem em escritores de prestígio, ocasionando as duplas: conspecto / presença, demérito / desmerecimento, evento / sucesso e meta / baliza, dentre outras. José Freire coloca-se contra os excessos dos puristas e as leviandades dos tolerantes; numa atitude conciliadora, legitima formas até hoje bastante usuais, como conduta / procedimento e intriga / enredo.

Por outro lado, a prática dos escritores também informa acerca da variabilidade lingüística. Segundo Jacinto do Prado Coelho, os autores lusitanos continuavam, em pleno século XVIII, presos fortemente à tradição clássica portuguesa. Matias Soares, por exemplo, utilizando-se de processo de derivação semântica, adota palavras no antigo sentido vernáculo, como apenas por dificilmente, a custo; descer, por descender, derivar; ou ainda o termo documento por regra.

O contraste do vocabulário poético está no vocabulário prosaico. A linguagem da sátira, muito cultivada no período, consagra termos populares  do tipo cachaço / pescoço gordo,  chorume / riqueza; e chulos, como fregona e zoupeira / prostituta.

No século XIX, a língua portuguesa tem seu acervo lexical ampliado substancialmente. São latinismos, arcaísmos, vulgarismos, tupinismos, africanismos, empréstimos, neologismos, dentre outros, muitos dos quais  fruto da incrementação do movimento literário romântico.

Os latinismos, enquanto tradição oriunda do século XV, motivam variações como tuba / trombeta e gládio / espada. Os arcaísmos, fruto da evocação romântica do passado, originam pares variantes; Gonçalves Dias  adota os termos arcaicos praticar / conversar, arrear / enfeitar e mesquinha / infeliz, dentre outros; Machado de Assis utiliza peitar / subornar, grão / grande e mor / maior.

Inúmeras expressões populares, adotadas até hoje, se consagram com os romances do século passado, confirmando as variações: arrenegar / amaldiçoar, empacar / parar, carola / beato e escabriado / desconfiado. Os regionalismos, marcas da afirmação nacional, ganham destaque no período; eles podem ser termos em vias de desuso, como manducar / comer, mofino / doente ou trabucar / trabalhar; alterações de motivação fonética do tipo cadê / que é de; ou ainda palavras de domínio mais geral, acentuando os pares concorrentes: secundar / responder, imundície / grande quantidade, tico / pedaço, embromador / enganador, tanger / conduzir e assuntar / pensar.

Os empréstimos, em grande maioria de origem francesa, ainda com grafia original, ganham espaço nas obras da época, que acabam por legitimar o uso importado. Citemos alguns pares: début / início, estréia; élite / o melhor de uma sociedade ou grupo; chic / elegante, fino; cocotte / meretriz e rendez-vous / encontro amoroso.

Na trajetória de consolidação da norma brasileira do português, chegamos ao século XX. A expressão lingüística caminha para um novo tempo. O advento da Semana de 22, na busca da identidade nacional em seus múltiplos aspectos, aí incluído o relativo à língua; a influência norte-americana na cultura mundial, com a incorporação de inúmeros termos de origem inglesa; o boom da comunicação, com a valorização da modalidade falada, a emergência dos estudos da oralidade e de manifestações escritas não literárias são apenas alguns dos traços definidores desse novo tempo.

A variabilidade continua a marcar o continuum lingüístico português. Em inúmeros contextos e níveis ela se manifesta. Examinemos algumas dessas camadas.

No léxico, nosso já referido corpus de análise tem revelado grande número de formas concorrentes, principalmente pela garantia de comparabilidade dos canais falado e escrito. A modalidade surge, pois, como um possível fator de motivação de tais usos diferenciados. Nesse sentido, ela representa precioso argumento a favor da não correspondência total das variantes. É o que se verifica nos pares a seguir:

§ fala: ... desde o começo a equipe de som...

§ escrita: Desde o princípio os técnicos da equipe de som...

 

§ fala: ... e queimei a parte todinha de trás... fiquei com uma bolha lá...

§ escrita: Fiquei um tempo com uma bolha d’água nas nádegas...

Como podemos observar, as estruturas organizadas na escrita encontram-se em estágios mais avançados do processo de regularização ou convencionalização gramatical,  com especialização de seu uso na modalidade referida (princípio e nádegas). Já suas correspondentes na oralidade (começo e parte todinha de trás) encontram-se em fase mais inicial desse processo, principalmente a segunda forma.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam: Benjamins. 1995.

HEINE, B. et alii. Grammaticalization. Chicago: The University of Chicago Press. 1991.

HOPPER, P. On some principles of grammaticalization. IN: TRAUGOTT, E. & HEINE, B (org) Approaches of grammaticalization. Vol. I. Amsterdam: Benjamins. 1991.

HOPPER, P. & TRAUGOTT, E. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press. 1993.

LABOV, W. On the use of present to explain the past. IN: Proceedings of the 11th International Congress of Linguistic. 1974.

MARTELOTTA, M. et alii (org) Gramaticalização no português do Brasil: uma abordagem funcional. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1996.

ROMAINE, S. Socio-historical linguistic: its status and methodology. Cambridge: Cambridge University Press. 1982.

SPINA, S. (org) História da língua portuguesa. Vol. I ao VI. São Paulo: Ática. 1987.

TRAUGOTT, E. & HEINE, B (org). Approaches to grammaticalization. Vol. I e II. Amsterdam: Benjamins. 1991.

VOTRE, S. & RIOS DE OLIVEIRA, M. Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ. 1995.