Confrontos Lingüísticos no Pré-Modernismo Brasileiro:
Lima Barreto versus Coelho Neto

Maurício Silva (Usp)

   É uma realidade já exaustivamente enfatizada o fato de Lima Barreto e Coelho Neto serem dois autores representativos da oposição entre concepções literárias que sustentavam nossa Belle Époque literária. Com efeito, não são poucos os críticos que aludem a este contraste, a fim de apresentar o período de modo mais preciso, mais próximo da maneira como ele realmente se manifestava. Não importando se os estudos sobre a época sejam de natureza puramente literária (A. Bosi), de caráter meramente histórico (J. Needel) ou um simples estudo de teoria literária (D. Schüller), poucos são os autores que perdem a oportunidade de confrontar os dois romancistas em questão.1 Isso sem falar nos inúmeros pequenos ensaios sobre o período que enfatizam sobremaneira esse mesmo contraste.

   Não obstante essa diversidade de alusões, parece haver uma curiosa homogeneidade de perspectivas sob a qual o problema é abordado, quase todos os estudos optando por analisar a oposição referida a partir de uma ótica claramente social e ideológica. Mesmo quando se busca revelar um pretenso contraste estético entre os romancistas, o que se enfatiza é, mais uma vez, a concepção literária de ambos: raramente procura-se analisar até que ponto estas oposições têm correspondência efetiva na fatura literária dos mesmos, isto é, qual o grau de realização prática de suas respectivas concepções literárias.

   Fugindo a essa tendência e fazendo um caminho de certa forma inverso àquele que até então a crítica do período procurou fazer, tentaremos aqui dar maior realce à fatura literária de Lima Barreto e Coelho Neto, ressaltando o que há de mais contrastante na prosa dos dois romancistas - a linguagem - e adotando suas posições teóricas e concepções literárias apenas como subsídio à nossa análise. O caminho é inverso exatamente na medida em que, até agora, buscou-se utilizar a produção especificamente ficcional dos dois escritores como mero auxílio à análise de suas posições ideológicas e estéticas. Neste sentido, não são poucos os estudos teóricos que, desprezando o que há de mais particularmente literário nesses autores, restringem-se a abordá-los sob uma perspectiva que pouco deve à sua ficção e muito à sua opinião.

   Particularmente no que se refere à linguagem empregada pelos dois romancistas em questão, devemos lembrar que é mais do mero acaso o fato de a crítica contrapor, exaustivamente, a expressão gramatical empregada por Lima Barreto em seus escritos àquela utilizada por Coelho Neto. De fato, gramaticalmente falando, os dois autores parecem se opor não apenas no que se refere aos seus propósitos manifestos, mas também no que concerne à construção lingüística. Sabemos que o começo do século foi uma época de particular efervescência gramatical,2 em que a expressão lingüística sofria intensa pressão dos guardiães da língua portuguesa, a todo instante prontos para apontar eventuais falhas gramaticais, que iam da grafia incorreta de um vocábulo à colocação inadequada de um pronome. Como instituição oficial da literatura brasileira, a Academia Brasileira de Letras tinha uma particular preocupação com esse debate,3 o que acabava por contagiar praticamente todos os seus integrantes, nomeadamente os mais notórios, como o próprio Coelho Neto. Não nos causam espanto, neste sentido, as sintomáticas palavras que o escritor maranhense - ao saudar, num discurso realizado na mesma Academia em 1926, o estudioso francês Paul Hazard - proferiu em favor da linguagem correta e apurada:

 

"A Academia Brasileira de Letras é a séde onde se cultiva a língua nacional (...) A linguagem, vós bem o sabeis, Sr. Professor, e prégais, é a Religião da Pátria (...) A nossa tem nesta Casa umas das suas officinas de depuração e polimento. Aqui é ella pacientemente trabalhada, joeirada, lapidada e conservada".4

 

   Uma visão completamente oposta da língua tinha Lima Barreto, para quem esta deveria cumprir sua função comunicativa, independentemente de fatores gramaticais, os quais considerava de somenos. Neste sentido, travou uma luta insana contra os gramáticos e a linguagem "pacientemente trabalhada" por estes. Mais de uma vez se referiu à inépcia daqueles que pretendiam encerrar, à força, a expressão lingüística nos moldes nem sempre justos da gramática:

 

"Já houve, entre nós, o pedantismo dos gramáticos que andou esterilizando a inteligência nacional com as transcendentes questões de saber se era 'necrotério' ou 'necroteca', 'telefone' ou 'teléfono' (...) Não me preocupo com essas cousas transcendentes de gramática e deixo a minha atividade mental vagabundear pelas ninharias do destino da Arte e das categorias do pensamento".5

 

   A questão ligada à grafia dos vocábulos, aliás, era uma das principais preocupações dos representantes da literatura oficial, em função das quais podia-se estabelecer a própria qualidade do autor. É significativo o contraste que as palavras acima transcritas estabelecem com uma passagem de um romance de Coelho Neto, em que uma das personagens afirma categoricamente:

 

"Ha aqui almas tão displicentes que até negam historia ao paiz tão desconhecido na sua grandeza que ainda não conseguiu registar o nome na lista das nações por não saber, ao certo, se o ha da graphar com s ou com z. Absurdo dos absurdos! Crime de lesa patria!". 6

 

   Não seria demasiada ousadia afirmar que, certamente, esta era uma opinião que o próprio autor do romance endossaria sem hesitar.

   O purismo gramatical presente na prosa de Coelho Neto deve-se, entre outras coisas, à sua exagerada preocupação com o falar escorreito, com a escrita apurada e com sua devoção formal. Mas é possível também - como ocorria com João do Rio, outro ilustre representante da literatura oficial7 - que houvesse uma preocupação com o público lusitano de suas obras, sucesso inconteste junto aos leitores e à crítica em Portugal, além de terem sido editadas pela livraria Chardron, do Porto. Já o célebre desleixo limabarretiano é objeto de inúmeras interpretações, sendo a mais aceita aquela que vê neste seu desapego à gramática uma atuação deliberada, no sentido de combater os cânones gramaticais da época e se destacar pela diferença, e, não, pela similitude lingüística. Neste sentido, ao empregar uma linguagem marcada pelo desleixo intencional, Lima Barreto estaria indo contra não apenas tudo aquilo que a estética oficial representava, mas também contra o próprio poder político-social que a retórica oficial acabava detendo. Ao menos é o que pensam alguns de seus estudiosos, para quem o autor carioca "demonstrou que o domínio de certos homens sobre os seus semelhantes se processa através da diferenciação lingüística e da lei gramatical (...) Lima Barreto examinou e interrogou o problema da linguagem e da gramática tornadas instrumentos de classe, de repressão e opressão, e destinadas a não permitir que os homens se exprimam plenamente, e convivam harmoniosamente, mas a impedir que o façam".8

   Com efeito, estas observações têm plena correspondência na realidade lingüística, que reconhece a manifestação de poder por meio do domínio de uma linguagem culta,9 mas principalmente nas idéias e opiniões de Lima Barreto, que não poucas vezes enxergou a linguagem apurada como índice de um poder constituído. Por isso, recusou-se a empregar uma linguagem purista, em franca oposição ao comportamento lingüístico de Coelho Neto, preocupado a cada instante em não cometer nenhum deslize gramatical, o que poderia significar um forte abalo na sua reputação de autor lingüisticamente correto. Como resultado preliminar do quadro aqui esboçado, poderíamos afirmar, sem perigo de incorrer em erro crasso, que enquanto Lima Barreto estava mais preocupado em estabelecer alguns parâmetros gramaticais que pudessem apontar para a conformação de uma língua mais próxima da realidade cotidiana do Brasil, Coelho Neto continuava ferrenhamente apegado a um evidente lusitanismo gramatical, opinião aliás que vai ao encontro de alguns estudos específicos sobre a linguagem pré-modernista.10

   Essa divergência de perspectiva tinha correspondência na fatura de ambos os autores: de um lado, Coelho Neto coloca-se como um cultor preclaro da expressão gramatical perfeita; de outro lado, Lima Barreto coloca-se como um defensor exaltado da absoluta liberdade gramatical. O resultado disso tudo pode ser percebido nos seus respectivos romances, sempre lingüisticamente cuidados em Coelho Neto:

 

"críticos, entre nós, são párvenas que se querem impôr à força de escandalos (...) Alguns dos taes Taines, como lhes chamas, mal lêem por cima (...) A mim é pelos vocabulos que me aggridem";

 

e, via de regra, gramaticalmente desleixado em Lima Barreto:

 

"tinha havido  missa e o trovador  assistiu a  saída (...) Era o médico do lugar, morava, porém, fora, na sua fazenda, e viera de 'aranha' com sua filha, Nair, assistir o ofício religioso (...) Gozava, portanto a fulminante vitória de Ricardo".11

 

   É evidente que tais exemplos não corroboram definitivamente nossa opinião a respeito da discrepância gramatical que existe entre os dois autores, servindo, antes, como tênues indícios dessa diferença, que, aliás, estende-se por toda a produção ficcional dos mesmos, como a crítica vem ressaltando com relativa freqüência. De qualquer maneira, salta aos olhos o contraste entre o uso correto da gramática por Coelho Neto, com uma pontuação adequada, uma colocação pronominal escorreita (usando, inclusive, um objeto indireto enfâtico), uma conjugação verbal ajustada; com a negligência gramatical de Lima Barreto, que apenas neste pequeno trecho, pontua duas vezes erroneamente (não separa por vírgula duas orações com sujeitos diferentes e uma conjunção intercalada) e comete, também duas vezes, um lapso de regência verbal (com o verbo assistir).

   Mas não é exatamente nas questões de natureza gramatical que podemos perceber uma oposição maior entre a linguagem de Coelho Neto e a de Lima Barreto. Mais do que a gramática, é o estilo empregado pelos dois romancistas que nos irá revelar definitivamente a possibilidade de confronto entre os mesmos.

   Neste sentido, é possível perceber que, da mesma maneira que em Lima Barreto verifica-se um certo desleixo para com a gramática, o romancista carioca apresenta uma prosa marcada pelo descuramento estilístico: na verdade, como ele mesmo confessou mais de uma vez, o que lhe importava era, antes, a exposição de fatos, temas e motivos ligados à realidade social circundante, sendo o modo como isto é feito apenas um detalhe. Nesse mesmo sentido, a preocupação de Coelho Neto com a gramática desdobra-se numa acentuada preocupação com o estilo, quase sempre rebuscado e ornamental, e pouco preocupado com aspectos conteudísticos. Semelhante realidade levaria Alfredo Bosi a uma constatação perspicaz sobre esta oposição: "os extremos de Coelho Neto e Lima Barreto provam uma asserção: um estilo à procura de assunto; um assunto à procura de estilo".12

   Talvez nenhuma outra colocação tenha sintetizado tão bem a oposição estilística existente entre os dois romancistas. Mas por ser demasiadamente sintética, a mesma exige desdobramentos mais acentuados. Cumpriria perguntar, a esta altura, a que se deve esta diferença tão manifesta entre os mesmos. Uma resposta equilibrada passaria necessariamente pelos posicionamentos estéticos dos dois romancistas, evidenciando a obstinação de Lima Barreto em estabelecer novos padrões estilísticos para a Literatura Brasileira e a ânsia de Coelho Neto em se afirmar como um consagrado autor parnasiano. Daí a luta travada por Lima Barreto contra os cânones estilísticos vigentes - no caso, de natureza parnasiana -, de que sua correspondência é uma mostra exemplar; daí também a consideração quase unânime da crítica em ver a prosa coelhonetiana com um modelo acabado de rebuscamento estilístico, de acordo com a atmosfera parnasiana que então se impunha.13 Aliás, esse rebuscamento estilístico - e, mais do que tudo, essa ornamentação parnasiana da prosa - não era um apanágio do autor maranhense, podendo ser encontrado até com maior intensidade noutros ilustres representantes da literatura oficial, como é o caso notório de Xavier Marques.14

   Uma segunda tentativa de resposta passaria por questões que têm menos a ver com problemas estéticos do que com a situação do escritor durante a Belle Époque. É que, conforme sabemos, aquele foi um período de grande desenvolvimento do jornalismo e da conseqüente afirmação do escritor como profissional das letras. O resultado social deste processo foi a necessidade de os autores se dedicarem quase que exclusivamente à escrita; já a conseqüência literária foi o aparecimento de uma escrita marcada pela vertigem e pela pressa, da qual tanto os autores pré-modernistas quanto os escritores oficiais foram vítimas. Isto explica, em parte, a diferença entre o estilo descurado de Lima Barreto, que não tinha tempo hábil e/ou disposição para retomar seus escritos e aperfeiçoá-los;15 e o estilo parnasiano de Coelho Neto, que buscava, pelo ornamento, diferenciar-se da mediocridade estilística efetivada pela escrita apressada do jornalismo.16

   Com efeito, ambos os autores tinham consciência das causas desse fato, bem como das conseqüências perniciosas que as mesmas podiam acarretar aos seus escritos, e não são poucas as passagens em que os dois romancistas se referem a esta realidade nova que se impunha à literatura. O mais curioso é que se para Lima Barreto estas conseqüências acabavam, de certo modo, encontrando justificativa na sua estética, deliberadamente relaxada, para Coelho Neto a pressa não podia ser desculpa para a escrita desalinhada, pois revelava antes uma indisciplina estilística.17 De qualquer maneira, independentemente da explicação que se queira dar para a oposicão estilística entre os dois autores - assentada até agora sobre o contraste vísivel entre o descuramento inovador e o ornamento parnasiano - a verdade é que tal oposição existia de fato, podendo ser divisada na própria ficção de cada um deles.

   Compare-se, por exemplo, esta descrição da paisagem florestal que serve de cenário ao romance O Rajá de Pendjab, de Coelho Neto:

 

"Quem penetrava essa immensidade saxea tinha a impressão maravilhosa de um dia de ouro e azul: as stalactites pareciam de turquesa e o ar levissimo era dum tom ceruleo. Fetos e avencas rendilhavam as muralhas abertas em nichos e com escaleiras como se por ali, em tempos idos, homens houvessem tentando construir, na própria pedra bruta, um palacio ou templo colossal (...) Não pisavam a terra, mas flôres que forravam toda a aléa e, de espaço a espaço, um alto alampadario de finissimas campanulas de crystal, espalhava claridade. O ar era puro aroma e, todo o parque parecia de ouro, porque as luzes faziam brilhar, não só a folhagem do arvoredo como os troncos" -

 

com a paisagem suburbana que serve de cenário ao romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto -

 

"O horizonte estava circunscrito aos fundos dos quintais das casas vizinhas com as suas cordas de roupa a lavar, suas chaminés e o piar dos pintos. Um tamarineiro sem folhas lembrava tristemente o ar livre, as grandes vistas sem fim (...) Lá fora, era o dia lindo, os ares macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a se recortar num céu de seda - a beleza da natureza imponente e indecifrável (...) O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Açucar erguia-se negro, hirto, solene, das ondas espumejantes e como que punha uma sombra no dia muito claro".18

 

   Saltam aos olhos as diferenças estilísticas dos dois trechos acima transcritos, embora não tratem exatamente de uma mesma realidade paisagística. Mas as discrepâncias parecem ser suficientemente claras, revelando o estilo de cada um dos romancistas. Se em Coelho Neto percebe-se uma nítida tendência à descrição grandiloqüente, exageradamente plástica da paisagem, em Lima Barreto a descrição busca captar mais a simplicidade do cenário, optando por apresentar ao leitor uma atmosfera calidamente pessoal. Há toda uma exuberância imagética em Coelho Neto, com seu esplendor pétreo, suas avencas rendilhando montanhas que parecem templos colossais, suas folhagens brilhantes e ostentosas. Em Lima Barreto, a paisagem parece perder suas qualidades naturais, restando apenas um tamarineiro sem folhas, um tímido farfalhar de mato e o canto não muito enfático de algumas aves. É de se observar também o vocabulário claramente parnasiano empregado por Coelho Neto, com a recorrência de palavras que fazem lembrar os mais consistentes poetas parnasianos (ouro, turquesa, cristal, palácio, templo, campânula, etc).

   Mas as diferenças estilísticas entre os dois autores não se dão apenas no âmbito do contraste entre descuramento/ornamento, podendo ser observadas ainda sob outras perspectivas. Os próprios trechos acima transcritos revelam-nos algo mais do que uma mera oposição entre o apego de Lima Barreto à simplicidade e o de Coelho Neto à exuberância, sugerindo algumas outras disparidades estilísticas essenciais, como a tendência daquele à não-metaforização e o pendor deste à metaforização do tecido verbal; a ligação inconsciente do primeiro à estética realista-naturalista e a do segundo à estética romântica; a naturalidade de Lima Barreto e a artificialidade descritiva de Coelho Neto.19

   Se aprofundarmos um pouco nossa análise das narrativas dos dois romancistas, é possível ainda depreender mais alguns contrastes estilísticos significativos. Um dos mais interessantes, neste sentido, é aquele que revela uma oposição entre um Lima Barreto estilisticamente nacionalista e um Coelho Neto estilisticamente ático-oriental. Tais denominações podem ser um tanto discutíveis, mas sugerem bem uma diferença cabal entre os dois escritores: de um lado, Lima Barreto revela uma preocupação constante em adaptar sua maneira de escrever à realidade brasileira, utilizando-se com freqüência de imagens, vocábulos, metáforas, exemplos e paisagens retiradas do contexto pátrio; de outro lado, em Coelho Neto tais componentes estéticos aparecem, de certo modo, distanciados da realidade nacional, ligando-se sobretudo a um contexto ático e/ou oriental. Este fato, por insignificante que pareça, diz muito sobre o modus faciendi de cada um dos romancistas.

   Trata-se, aliás, de uma realidade não apenas detectada pela crítica especializada, mas assumida publicamente pelos próprios autores, o que revela um elevado grau de consciência estilística dos mesmos. Com efeito, em Lima Barreto esta tendência à nacionalização pode ser percebida já na própria concepção que o autor possui da literatura, a qual discutimos anteriormente: seu apego à função social da arte literária acaba levando-o inexoravelmente a aliar sua narrativa ao contexto brasileiro, o que certamente interfere em seu modo de expressão e em seu estilo; não é à toa que o mesmo elegeu como temática privilegiada de seus romances problemas concernentes à realidade nacional, o que pode ser percebido nestas palavras, retiradas de seu romance Triste Fim de Policarpo Quaresma:

 

"convém que nós não deixemos morrer as nossa tradições, os usos genuinamente nacionais (...) tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições, mantê-las sempre vivazes nas memórias e nos costumes";

 

em Coelho Neto, sua ligação com a aticização/orientalização era também uma atitude deliberada do autor, não apenas pela freqüência com que aparece em seus escritos, como também por alguns indícios - deixados pelo próprio romancista - de que esta seria uma maneira pessoal de exprimir-se literariamente. O apego de Coelho Neto ao aticismo-orientalismo, por sua vez, pode ser depreendido das palavras de Anselmo, alter ego do autor, retiradas de seu romance A Conquista:

 

"o Oriente, o luminoso Oriente!... A Grecia com os seus deuses e com os seus heróes, a India com os seus mysterios... Isso sim! Sinto-me arrastado para essas idades (...) Eu fui grego, pelejei nas Thermopylas (...) Comecei a estudar em livros orientais (...) A minha imaginação assim fecundada, foi-se desenvolvendo nesse meio e hoje sinto que, se deixar o Oriente, fico como um homem que, trazido vendado, se achasse, de reprente, como por encanto, num intricado labyrintho donde não pudesse sahir por desconhecer os meandros".20

 

   Essa consciência do substrato estético - e, portanto, estilístico - manifestada indiretamente pelos autores encontrava sustentação na crítica mais atenta aos recursos literários empregados pelos mesmos. Não sem razão, um crítico sagaz como Agrippino Grieco consideraria Lima Barreto "o mais brasileiro dos nossos romancistas", e um estudioso da obra de Coelho Neto não menos inteligente, como Humberto de Campos, corroboraria a opinião geral de que o romancista maranhense seria o último heleno, completando com a observação de que ele era também "o último persa", revelando a um só tempo, o aticismo e o orientalismo próprios de sua narrativa.21 Mas, principalmente, essa mesma consciência encontrava ressonância na própria fatura literária dos dois romancistas, situando definitivamente seus respectivos estilos em campos totalmente opostos.

   Em Coelho Neto a devoção ao aticismo-orientalismo espalha-se por toda a sua obra, das crônicas aos contos, atingindo vários romances do autor, com pequenas referências às realidades ática e oriental, dando sustentação às suas figuras, à sua linguagem, aos seus exemplos. É possível, neste sentido, observar tais referências em O Morto, num trecho que procura descrever a figura feminina:

 

"Mary recebeu-me soluçante. Vestia o mesmo roupão da vespera e os seus cabellos fartos faziam-lhe sobre a cabeça uma pequenina torre de ouro. Levou-me logo para a sala, desolada como Andromacha, no poema de Homero, quando corre a molhar de pranto o corpo amado do esposo que vem sangrando no escudo trazido piedosamente pelos guerreiros fieis";

 

em A Capital Federal, numa passagem significativa pela enumeração de personalidades gregas:

 

"mas creia o amigo que é só assim que consigo comprehender e explicar a apparecimento dos homens cyclicos - Homero, que é a synthese de todo o drama épico desde o período pelágico; Hesiodo, que é o mytho, a theogonia; Eschylo e Sophocles, que são a tragedia...";

 

ou ainda em O Rajá de Pendjab, na descrição de uma residência:

 

"diante da porta, duas altissimas pyramides verdes, cercadas de luzes, illuminavam os primeiros degráus alcatifados por um alto e fôfo tapete persa. Hindus enormes, vestidos com sumptuosidade dois dos quaes empunhavam charamellas de prata (...) ali, naquele bosque, ha uma imagem gigantesca de Kali; mais adiante, naquelle palmar, ha um pequeno templo consagrado a Brahma e, á beira da agua, Galga, em um nicho, aceita, todas as manhans, os votos dos seus fieis".22

 

   É evidente a tentativa de Coelho Neto de dotar parcialmente os seus romances de uma atmosfera tipicamente ática e oriental. Esforço que encontra ressonância nas próprias teorias estéticas do autor, que foi reconhecidamente influenciado por esta mesma atmosfera desde a infância.23 Neste sentido, o romancista não perde a oportunidade de inserir em suas obras referências freqüentes às civilizações antigas, sejam elas gregas, romanas, persas ou hindus. Ao contrário de Lima Barreto, cujo estilo era dotado de uma funda consciência de brasilidade, a qual pode ser verificada a cada passagem de seus romances. Compare-se, por exemplo, os trechos acima transcritos a alguns retirados da obra de Lima Barreto - a descrição de uma figura feminina, em Clara dos Anjos:

 

"a única filha do carteiro, Clara, fôra criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fôssem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo, claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso";

 

a enumeração de personalidades admiradas pelo protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma:

 

"na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopéia; o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar, o Macedo, o Gonçalves Dias, além de muitos outros (...) De História do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel Soares, Gandavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann, Melo Morais, Capistrano de Abreu...";

 

a descrição de uma residência em Recordações do Escrivão Isaías Caminha:

 

"durante todo esse tempo, residi em uma casa de cômodos na altura do Rio Comprido (...) O jardim de que ainda restavam alguns gramados amarelecidos, servia de coradouro (...) Guardavam o portão duas esguias palmeiras que marcavam o ritmo do canto de saudades que a velha casa suspirava; era de ver, pelo estio, a resignação de uma velha e nodosa mangueira...".24

 

   O contraste estilístico entre os dois romancistas, levando em consideração a problemática da oposição nacionalismo/brasilidade versus aticismo/orientalismo, parece evidente. As cenas e personagens helênicas, as imagens retiradas do classicismo grego, a ambientação asiática, o emprego de vocábulos próprios da realidade ático-oriental (mytho, synthese, theogonia, alcatifados), tudo é substituído, na prosa limabarretiana, por personagens, imagens, ambientação e vocábulos tipicamente nacionais. Certamente, estas não são prerrogativas dos dois autores aqui estudados, podendo-se encontrar, de um lado, críticos que defendem um considerável sentido de brasilidade na obra de Coelho Neto ou, de outro lado, uma carência de sentido popular na de Lima Barreto,25 mas sem dúvida alguma, tanto Coelho Neto quanto Lima Barreto tinham plena consciência de que seus respectivos modos de escrever eram fundamentalmente díspares, o que de certo modo torna-os opostos não apenas do ponto de vista da concepção estética, mas principalmente do da fatura literária.

   Na comparação dos trechos acima transcirtos, fica evidente o contraste entre a linguagem sintética, resumida, simplória de Lima Barreto e a expressão prolixa, diversificada, acumulativa de Coelho Neto. Diferenças marcantes de um ponto de vista particularmente lingüístico e genericamente estético.

 


NOTAS

 

01. Consultar, respectivamente, BOSI, Alfredo. História Concisa  da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1988; NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. Sociedade e Cultura de Elite no Rio de Janeiro na Virada do Século. São Paulo, Companhia das Letras, 1993; e SCHÜLLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo, Ática, 1989.

 

02. O termo foi retirado de PROENÇA, M. Cavalcanti. "Lima Barreto". Augusto dos Anjos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro, José Olympio, 1959, p. 37-82, p. 75).

 

03. Cf. SIGNER, Rena. Academia Brasileira de Letras: Nacionalismo à Francesa. São Paulo, FFLCH/USP, 1988 (tese de mestrado).

 

04. NETO, Coelho. Livro de Prata. São Paulo, Livraria Liberdade, 1928, p. 158 et passim.

 

05. BARRETO, Lima. Impressões de Leitura, p. 80/86. Cumpre observar que esta posição do autor diante da gramática, não impedia que o mesmo manifestasse uma leve preocupação com aquela, o que o levaria a escrever algumas vezes trechos como este, ao comentar uma frase de Gilberto Amado: "desagradar é verbo intransitivo. Pede, portanto, objeto indireto. É o mais grave êrro do artigo, pois o pronome devia ser 'lhe' e não 'o'. Que clássico! Todos são assim. Quanto mais falam em gramática, mais erram por conta própria" (BARRETO, Lima. Diário Íntimo. Rio de Janeiro, Mérito, 1953, p. 116).

 

06. NETO, Coelho. O Paraíso. Porto, Chardron, 1926, p. 233.

 

07. Influenciado por autores portugueses e preocupado com a aceitação de sua obra pelo público português, João do Rio não hesitava em empregar uma série de recursos lingüísticos (fraseologia, gramática, vocabulário) próprios da linguagem lusitana, ainda que isso soasse ridiculamente estranho aos ouvidos brasileiros. Cf. CANDIDO, Antonio. "Atualidade de um Romance Inatual". In: RIO, João do. A Correspondência de uma Estação de Cura. São Paulo, Scipione, 1992, p. IX-XVIII.

 

08. IVO, Lêdo. "Lima Barreto: A Autoridade do Malogro". A Ética da Aventura. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992, p. 17-28 <p. 21>.

 

09. Cf. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo, Ática, 1988; GNERRE, Maurizzio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo, Martins Fontes, 1987; VOGT, Carlos. "Os dois labirintos". Linguagem, Pragmática e Ideologia. São Paulo, Hucitec, 1989, p. 61-76; GODELIER, Maurice. "Poder y Lenguaje". Eco. Revista de la Cultura de Occidente, Bogotá, tomo XLI/1, No. 247: 88-99, Mayo 1982.

 

10. Cf. KURY, Adriano da Gama. "A Linguagem dos Pré-Modernistas. Alguns Problemas na Fixação dos Textos". In: CARVALHO, José Murilo et Alii. Sobre o Pré-Modernismo. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 205-215. Segundo o autor, Coelho Neto é o representante maior do lusitanismo gramatical, enquanto que Lima Barreto já revelava um acento lingüístico caracteristicamente modernista. Para o emprego de uma linguagem deliberadamente anti-lusitana por Lima Barreto, cf. SILVA, H. Pereira da. Lima Barreto. Escritor Maldito. s.l., s.e., 1976. Sobre a inadequação do purismo lingüístico e gramatical em nossa língua, consultar o interessante estudos de CUNHA, Celso. Língua Portuguesa e Realidade Brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986.

 

11. NETO, Coelho. Fogo Fátuo. Porto, Chardron, 1929, p. 323; BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Ática, 1987, p. 83/84.

 

12. BOSI, Alfredo. "As Letras na Primeira República". In: FAUSTO, Boris (dir.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano. Sociedade e Instituições (1889-1930). Rio de Janeiro, Difel, 1977, Tomo III, Vol. 02, p. 293-319 <p. 297>. Observação semelhante pode ser vista ainda em BOSI, Alfredo. História Concisa  da Literatura Brasileira, p. 359.

 

13. Para a consideração de Coelho Neto como um "estilista exuberante e rebuscado", cf. SALES, Antônio. "Coelho Neto". Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, Ano 27, Vol. 47, No. 158: 164-169, Fev. 1935 <p. 167>. Para a consideração de Coelho Neto como um modelo acabado de parnasiano, consultar Cavalcanti Proença, que afirma a certa altura: "o estilo de ritmo amplo, oratório, pode ser classificado de parnasiano" (PROENÇA, M. Cavalcanti. "Introdução". In: NETO, Coelho. Rei Negro. São Paulo, Tecnoprint, s.d., p. 09-11 <p. 10>). Cf. também BOSI, Alfredo. História Concisa  da Literatura Brasileira, p. 223.

 

14. Para Xavier Marques como autor ornamental, cf. estudo já citado de SALLES, David. O Ficccionista Xavier Marques: Um Estudo da 'Transição' Ornamental. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977; para Xavier Marques como escritor parnasiano, cf. FILHO, Adonias. "Ciclo Baiano". In: COUTINHO, Afrânio (dir.). A Literatura no Brasil. São Paulo, Rio de Janeiro, Sul Americana, Vol. III, 1969, p. 248-259.

 

15. A consideração do descuramento estilístico de Lima Barreto como conseqüência direta de uma escrita apressada foi tratada por muitos críticos de sua obra, podendo ser encontrada particularmente em NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. Sociedade e Cultura de Elite no Rio de Janeiro na Virada do Século.

 

16. A tese da diferenciação estilística dos parnasianos, em função da linguagem jornalística, está em SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras. Literatura, Técnica e Modernização no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

 

17. Sobre os problemas que a pressa e/ou a negligência trazia aos textos de Lima Barreto, consultar sua carta ao romancista Lucilo Varejão, de 1921 (BARRETO, Lima. Correspondência. São Paulo, Brasiliense, 1956, Tomo II, p. 226). Sobre a afirmação de Coelho Neto, aludida no texto, cf. NETO, Coelho. Compêndio de Literatura Brasileira, p. 110.

 

18. NETO, Coelho. O Rajá de Pendjab. Porto, Chardron, 1927, Vol. II, p. 14/210; BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma, p. 43/59/60.

 

19. Para a oposição metaforização/não-metaforização nos autores em estudo, consultar SCHÜLLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo, Ática, 1989. Para a oposição realismo-naturalismo/romantismo, consultar BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro, José Olympio, 1960. Para a oposição naturalidade/artificialismo, consultar LIMA, Alceu Amoroso. Primeiros Estudos I. Contribuição à História do Modernismo Literário. O Pré-modernismo de 1919 a 1920. Rio de Janeiro, Agir, 1948.

 

20. BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma, p. 21/32; e NETO, Coelho. A Conquista. Porto, Chardron, 1920, p. 17/382.

 

21. GRIECO, Agrippino. Vivos e Mortos. Rio de Janeiro, Schimidt, 1931, p. 115; CAMPOS, Humberto de. "Coelho Neto". Crítica. Primeira Série. Rio de Janeiro, José Olympio, 1935, p. 61-69 <p. 226>. É digno de observação que o próprio Lima Barreto tenha criticado, mais de uma vez, as "chinesices de estilo" de Coelho Neto, procurando assim revelar o que havia de orientalismo naquele romancista e diferenciar-se estilisticamente do mesmo (cf. BARRETO, Lima. Impressões de Leitura, p. 75 et passim).

 

22. NETO, Coelho. O Morto (Memórias de um Fuzilado). Porto, Chardron, 1924, p. 124; NETO, Coelho. A Capital Federal (Impressões de um Sertanejo). Porto, Chardron, 1924, p. 142; NETO, Coelho. O Rajá de Pendjab, p. 210/214.

 

23. Ver entrevista de Coelho Neto ao Jornal Pequeno, de Recife, e ao Momento Literário, de João do Rio, onde o autor confessa expressamente ter sido influenciado por histórias fantásticas envoltas, via de regra, por uma atmosfera francamente oriental (apud TAVARES, Adelmar. "Ouvindo Coelho Neto". Autores e Livros. Suplemento Literário de "A Manhã", Rio de Janeiro, Vol. IV, No. 12: 179, Abril 1943).

 

24. BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro, Mérito, 1948, p. 68; BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma, p. 21; BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo, Ática, 1984, p. 109.

 

25. Consultar respectivamente NERLICH, Carlos A. "Um Prosador Artista do Novo Mundo". Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, Ano 27, No. 159: 346-349, Mar. 1935; e MONTENEGRO, Olívio. "Prefácio". In: BARRETO, Lima. Coisas do Reino do Jambon. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 09-19.