AULA DE LEITURA E MODELOS DECODIFICADOR, PSICOLINGÜÍSTICO E INTERATIVO

SILVA, Sílvio Ribeiro da. – Universidade Federal de Uberlândia/MG

Introdução

Desde o início da vida estudantil, o aluno se vê em meio a fragmentos da língua. Os professores consideram seus alunos leitores a partir do momento em que estes são capazes de decodificar as palavras. Essa atividade ignora o fato de que existem grandes diferenças na qualidade daquilo que vem a ser uma decodificação e daquilo que vem a ser uma compreensão.

Tendo como objetivo observar se o que é feito em uma escola como atividade de leitura possui características interativas ou decodificadoras, foi feito este trabalho. A abordagem da pesquisa que se baseia na observação de alunos em sala de aula pressupõe que o comportamento observável tende a revelar o processo de aprendizagem.

A reflexão feita procura mostrar, com base naquilo que teóricos sobre o assunto dizem, que as concepções de leitura apresentadas pelos professores pesquisados são ainda um pouco distantes daquelas que levam em consideração a atividade de leitura como sendo uma das propiciadoras de interação.

A conclusão do trabalho traz uma reflexão mais profunda de como deveria ter sido o procedimento dos professores na aula de leitura.

Referencial Teórico

No ensino de Língua Portuguesa acontecem problemas sérios. Saber Língua Portuguesa não é saber sua estrutura ou o seu funcionamento apenas, nem é saber analisá-la. Saber a língua significa saber se movimentar dentro dela. A língua é como uma armadura dentro da qual nos movimentamos no dia-a-dia da interação humana.(Carvalho, 1997:64) É a manipulação correta da língua que nos permite o exercício amplo e correto da cidadania. Saber uma língua é ter conhecimento completo de como dizer, a quem dizer, quando e onde dizer. (Mac & Welti, 1995:16)

Quando a escola não ensina o aluno a usar a língua sob sua forma correta, ela falha muito, porque acaba formando autômatos ao invés de pessoas capazes de se movimentar dentro do sistema lingüístico no qual estão vivendo.

Uma das formas de se fazer com que o aluno seja capaz de se manifestar dentro do sistema é através da leitura. Segundo Moita Lopes (1996) a leitura é um modo específico de interação entre participantes discursivos, envolvidos na construção social do significado: a leitura é uma prática social. Ela é um ato social, é uma forma de agir no mundo social através da linguagem. Sendo uma prática social, é a leitura que vai permitir ao aluno a interação com os outros, participando e discutindo todos os acontecimentos que estão a sua volta.

O dever da escola é fazer com que o aluno aprenda o que não sabe. Ler o mundo ele já sabe. O que precisa aprender é a ler a palavra, mas não a palavra isolada. Segundo Bakhtin (1997), a palavra constitui o produto da interação do locutor e do ouvinte. (...) Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A escola deve então ensinar ao aluno a forma adequada de usar a palavra uma vez que ela pode transformá-lo, dar uma nova dimensão à sua consciência, o que acaba por possibilitar-lhe uma reflexão sobre a sua realidade e a maneira de agir sobre ela. Na escola, o aluno deverá saber como recorrer a diferentes materiais impressos para atender a diferentes necessidades.

As estratégias cognitivistas de leitura crucificam a leitura tida apenas como decodificadora. Propõem modelos interacionais nos quais o autor e o leitor devem construir juntos o sentido do texto. Comparando tal atividade de interação com a linguagem falada, Kleiman (1995a) diz:

O autor, que segura a palavra, por assim dizer, por um turno extenso, como num monólogo, deve ser informativo, claro e relevante. Ele deve deixar suficientes pistas em seu texto a fim de possibilitar ao leitor a reconstrução do caminho que ele percorreu. (...) Já o leitor deve acreditar que o autor tem algo relevante a dizer no texto, e que o dirá clara e coerentemente. Quando obscuridades e inconsistências aparecem, o leitor deverá tentar resolvê-los, apelando ao seu conhecimento prévio de mundo, lingüístico, textual, devido a essa convicção de que deve fazer parte da atividade de leitura de que o conjunto de palavras discretas forma um texto coerente, isto é, uma unidade que faz com que as partes se encaixem umas nas outras para fazer um todo.
 

Segundo afirma Kleiman, o leitor, da mesma forma que o autor, parece já ter constituído um sentido para aquilo que seria o texto. Assim, o texto deve ter pistas, deixadas pelo escritor, que sejam suficientes para que o leitor reconstrua aquilo que se quis dizer.

Mas isso não é o suficiente para que um texto seja entendido e interpretado por um leitor. A posição de leitor, o movimento sobre o texto e o sentido atribuído àquilo que se lê está determinado antes de tudo por um processo histórico e por suas condições de produção. O texto é feito pois, como possuindo um grande aparato social. O texto é feito através de uma grande quantidade de formações ideológicas, sociais e até mesmo imaginárias. Tais formações acabam por designar o lugar discursivo através do qual um sujeito acaba sendo levado a atribuir sentido a si mesmo e ao outro.

O texto precisa de legibilidade para que seja entendido, mas esta não é garantida por seus aspectos lingüísticos ou textuais, nem somente pelas habilidades cognitivas que possui o leitor, mas sim pelas suas condições de produção, pelos seus modos de relação, de produção de sentidos e pela sua historicidade.

Segundo Kleiman (1996), a legibilidade de um texto, num sentido amplo, tem a ver com a estruturação do texto, tanto no desenvolvimento quanto na apresentação de relações, para permitir ao leitor seguir, avaliar.

O sujeito e os sentidos são atravessados pelas formações ideológicas, sociais e imaginárias. Tais formações determinam as possibilidades do dizer e, portanto, o sentido daquilo que seria um texto legível e daquilo que poderia ser dito sobre ele.

O processo cognitivo de leitura mostra que há uma relação direta entre o sujeito leitor e o texto enquanto objeto, também existe relação entre a linguagem escrita e a compreensão, entre a memória, inferência e pensamento. A compreensão acontece quando o leitor consegue decodificar os sinais gráficos e usar o conhecimento armazenado na memória sendo capaz então de interagir com o escritor e elaborar outros textos a partir deste.

Na perspectiva decodificadora de leitura, o ato de ler se limita a uma decodificação do sistema lingüístico, da letra para a palavra, sentença e significado.

O ato de decodificar se constitui num processo muito diferente da leitura. Claro que o conhecimento da correspondência entre som e letra é necessário para a leitura. O leitor eficiente não decodifica, ele percebe as palavras globalmente e adivinha muitas outras, guiado pelo seu conhecimento prévio e por suas hipóteses de leitura. (Kleiman, 1995a:37).

O leitor apenas procura o significado presente na letra, sílaba, palavra, texto; ele é passivo. Ele lê letra por letra, palavra por palavra decodificando-as até que o significado seja formado em seu cérebro. Em uma aula em que predomina o trabalho com a leitura decodificadora, na maioria das vezes, o aluno nem sabe o que está lendo. É como se se interpretasse uma nota musical por si só.

No modelo psicolingüístico, a relação é leitor/texto. O leitor usa os seus pré-conhecimentos para entender o texto. Ao lê-lo, o leitor procura em sua cabeça imagens, visões, a fim de interpretar o que está lendo. Ele precisa de muitas informações visuais, caso contrário terá muita dificuldade para entender o que está lendo.

Segundo os seguidores do modelo psicolingüístico, a aprendizagem vem a ser o resultado de uma interação entre o ambiente e as estruturas cognitivas que o aprendiz já possui. O aprendiz é visto então não como um recipiente passivo de estímulos do ambiente, mas um processador da informação ativo e seletivo... (Brággio, 1992:16). O modelo psicolingüístico de leitura mostra que o único objetivo da leitura é a compreensão.

No modelo interativo, o aluno acessa esquemas que ele possui em sua cabeça. Além disso, usa também inferências que só são possíveis se ele entender as normas sócio-culturais expressas no texto e as relações causais entre o que o texto expressa. Aqui, a leitura é um ato perceptual e cognitivo. A compreensão do texto vem a partir de informações gerais que se têm guardadas na cabeça. As informações são as colaboradoras para o amplo entendimento daquilo que se lê. O fluxo da informação vai do leitor para o texto e vice-versa, simultaneamente. A atividade de leitura é definida por Kleiman como sendo uma intenção a distância entre leitor e autor via texto. (Kleiman, 1995a: 65).

A atividade de leitura em sala de aula deve ser vista como um acontecimento em que haja um relacionamento entre o leitor e o texto. Esse acontecimento deve ocorrer sob circunstâncias específicas, num contexto social e cultural também específico como sendo uma parte da vida do indivíduo e do grupo a que o leitor pertence. A compreensão de um texto depende das corretas relações que há entre o leitor e o autor no momento em que a leitura do texto está sendo feita.

Sendo assim, a atividade com a leitura deve ser vista dentro de uma matriz pessoal, social, histórica e cultural, pois não somente o que o leitor traz para a transação de sua experiência passada de vida e de linguagem, mas também as circunstâncias socialmente moldadas e propósito da leitura, dão a contextualização para o ato de simbolização. (Brággio, 1992: 69).

2. Contexto da Pesquisa e Metodologia

A coleta de dados foi feita através da atividade etnográfica. A etnografia teve seu desenvolvimento originalmente na Antropologia para descrever o modus vivendi de grupos sociais. A etnografia tem encontrado boa receptividade entre os pesquisadores de áreas como Sociologia, Lingüística Aplicada, Educação e Psicologia Social pela perspectiva que oferece de investigar questões de difícil abordagem através de pesquisas experimentais, principalmente aquelas relacionadas com o comportamento humano no contexto social.

A pesquisa etnográfica sobre aulas de leitura e modelos decodificador, psicolingüístico e interativo foi feita em duas turmas do Colégio Estadual Nestório Ribeiro, em Jataí Goiás. Como a escola é muito grande e possui turmas de primeiro e segundo graus, foi feita uma delimitação no trabalho para se poder ter meios de realizar uma atividade mais eficiente. A pesquisa foi desenvolvida em turmas de segundo grau, sendo uma do turno matutino e outra do turno noturno.

Foi realizada uma observação sistemática, intensiva e detalhada dos comportamentos dos professores e alunos e a interação entre estes e aqueles. Observou-se se a interação se apresentou de forma socialmente organizada, além de se investigar as regras sociais, expectativas interacionais e valores culturais que subjaziam os comportamentos.

Para análise da questão proposta foram utilizados os seguintes instrumentos: anotações de campo, gravação em áudio, resposta dos pesquisados a questionário, observação, transcrição das interações.

 

3. Análise dos Dados Coletados

Cada um dos dois professores recebeu uma cópia do texto Uma Vela para Dario, de Dalton Trevisan (anexo 01). A escolha do texto talvez tenha se constituído em uma atividade um pouco autoritária, mas foi a maneira encontrada para homogeneizar a tarefa de pesquisa que seria desenvolvida.

 

            3.1. Aula do Professor Murilo

Depois de os alunos terem feito a leitura do texto, o professor distribuiu partes do mesmo a eles. Foram formados grupos de alunos com cinco integrantes mais ou menos.

A proposta feita pelo professor apresenta um equívoco bastante notável. Ele cortou o texto em partes e pediu para que cada grupo interpretasse a parte isolada do texto. Fiorin diz que num texto, o significado de uma parte não é autônomo, mas depende das outras com que se relaciona. O resultado do significado de um texto não é o resultado de uma mera soma de suas partes, mas de uma certa combinação geradora de sentidos. Num texto, o sentido de cada parte é definido pela relação que mantém com as demais constituintes do todo. (1997: 14).

O professor parece demonstrar que, para ele, o significado do texto é apenas um conjunto de parágrafos cujos significados devem ser extraídos um por um para assim chegar à mensagem do texto.

Certamente, o professor fez a atividade de divisão do texto em partes e pediu para que seus alunos interpretassem cada uma delas devido a uma formação fragmentada que deve ter tido. Parece que sua formação acadêmica no curso de Letras ensinou que a língua é fragmentada, formada a partir de partes isoladas umas das outras e que toda manifestação lingüística é feita a partir dessas partes isoladas entre si e que não apresentam ligação aparente.

Durante as fases de participação dos alunos em respostas a questões de interpretação, podia-se perceber que o que ocorria era tão somente uma reprodução daquilo que o autor já colocara no texto. O que o professor fez com os alunos foi pedir para que eles contassem o que leram. Isso não parece ser interpretação de texto, é reprodução, é decodificação.

Em certo momento, o professor cortou o raciocínio da aluna Sheila, enquanto ela falava, e não a deixou concluir sua idéia. Parece que ele temeu que a aluna não iria atender às suas expectativas, então interferiu dando a resposta que talvez não seria a da aluna.

Murilo 10.0pt;color:white'>: deixa a colega falar alguma coisa.

Sheila 10.0pt;color:white'>: as pessoas... que queriam ajudar eram...

Murilo 10.0pt;color:white'>: fingidas, né?

Ele fazia novas perguntas para a turma e começava de novo a mesma atividade de reprodução do que foi lido. O interessante foi notar que o professor orientava as atividades de forma que só ele fazia perguntas. Quando um aluno fazia algum questionamento, ele procurava uma forma de desviar a atenção da turma e seguir adiante sem responder àquela questão levantada.

 

10.0pt;color:white'>3.2. Aula do Professor Rodolfo

O professor Rodolfo utilizou de uma metodologia um pouco diferente da do professor Murilo e diferente também do que se costuma usar em aulas de leitura. Ele entregou o texto aos alunos e pediu para que eles formassem grupos e saíssem para o pátio para que fizessem a leitura silenciosa individual e depois em grupo. Durante essa atividade houve alguma dispersão por parte dos alunos. Como o pátio da escola era muito grande, não havia como o professor visitar todos os grupos para acompanhar a discussão de cada um.

O objetivo dele em fazer com que os alunos interpretassem o texto em grupos foi interessante uma vez que ele teve o intuito de praticar a socialização entre os alunos. As atividades de leitura em grupo fazem parte das propostas teóricas de estudiosos como Vygotsky, porque valorizam a natureza social da aprendizagem (Terzi, 1997). As atividades de leitura desenvolvidas em grupo ajudam o aluno a reiterar a relação autor-leitor. Pena que não foi alcançado o objetivo total por falta, talvez, de preparo do professor.

O professor Rodolfo fazia várias comentários sobre diversos assuntos: problemas sociais, questões políticas dentre outros. Todas as questões discutidas pelo professor Rodolfo são pertinentes e têm, de alguma forma, ligação com o texto que estava sendo discutido. A problemática com relação a seus comentários gira em torno do fato de ele não deixar claro para os alunos que sua fala tinha certa ligação com a história de Dario.

A turma do professor Rodolfo era muito ativa e participativa. Qualquer assunto que ele iniciasse logo virava uma grande discussão por parte da turma. Realizar atividades com foco interativo naquela turma não parece ser difícil.

Os alunos começaram a falar depois de um certo tempo apenas ouvindo o professor, que tomou conta da palavra em seguida.

Maura 10.0pt;color:white'>: a culpa das coisas ruins é do governo, mas a culpa disso tudo é nossa.

André 10.0pt;color:white'>: é um negócio também de cultura. A pessoa que estudou é o quê? É inocente. 10.0pt;color:white'>(Impossível decifrar. Problemas na gravação).

Rodolfo: ó! A menina falou um negócio aqui muito interessante. Ela falou assim: nós colocamos a culpa nos políticos. Teve muitos presidentes aí que não paga o voto que a gente votou. Mas nós também somos culpados pelo ruim que tá aí, por quê? Quantas vezes nós estávamos lá e o presidente da associação de bairros falou: fulano, vamos a uma reunião ali para discutir problemas de seu bairro. Quem aqui vai a essa reunião? Quem participa dos momentos culturais da cidade? Aqui ó! Nós colocamos[1] nos jornais, revistas, eu nunca vi nenhum prefeito lá nas manifestações culturais, eu não vejo uma pessoa num lugar desses. Gente, e outra, o trabalho político também. A câmara dos vereadores, etc. Gente, se nós não nos colocarmos como construtores da História, colocarmos o dedo, como diriam os historiadores, no raio da História, nós também somos fabricadores de assaltantes porque nós somos co-autores desse crime concordam comigo?

André: a gente colabora e nem percebe.

Rodolfo: 10.0pt;color:white'> a gente, nós estamos, (...) a nossa não participação é a maior colaboração para elegermos os homens que nós temos no poder.

Luís: 10.0pt;color:white'> o voto não é direito do cidadão? Então a gente tem direito a opinar e falar o que quer e o que não quer. Daí a gente não participa e não vê que vai ficando cada vez pior, porque tem que participar.

Rodolfo: 10.0pt;color:white'> tem que participar?

Luís: 10.0pt;color:white'> tem que participar.

Foi impossível decifrar o que aconteceu em seguida. Os alunos falavam todos juntos e o professor não controlou isso. A gravação ficou tumultuada. Mas parte da aula em seguida foi tomada por uma discussão sobre política. Num dado momento surgiu um gancho para discussão a respeito da reforma agrária e mais uma vez ficou formado um tumulto generalizado, e mais boa parte do tempo ficou nessa discussão.

Esse recorte de aula colocado anteriormente é um dos que mais apresentam acúmulo de informações por parte do professor. Poucas eram as vezes em que o professor fazia ligação entre o que estava sendo falado e a história de Dario. Agora aparecem abaixo os assuntos discutidos pelo professor no recorte:

1. culpa da sociedade pela colocação no poder de políticos ruins;

2. falta de participação da comunidade na resolução dos problemas de seu bairro;

3. falta de participação das pessoas e do prefeito em atividades culturais;

4. participação das pessoas na co-autoria dos crimes de assalto.

Foram quatro assuntos diferentes em pouco tempo. Dá para se perceber que o professor não soube planejar o que ele próprio desejava expor aos alunos. Parece que a grande quantidade de discussão feita pelo professor gerou uma certa confusão na cabeça dos alunos, porque eles não podiam se concentrar em apenas uma discussão para poderem argumentar e formar idéias coerentes para defesa de seus pontos de vista. Formou-se então uma “babel” de opiniões.

Depois de trazer uma série de assuntos à tona, Rodolfo passou então a falar novamente sobre a História do Brasil, e agora também de Goiás. Todos os assuntos não tinham relação nenhuma com o texto de Dario. Os alunos falavam, mas a fala mais ouvida era a de Rodolfo. Parecia que ele partia do princípio de que o aluno nada sabia e cabia a ele definir o nível de ensino. (Terzi, 1997).

Rodolfo fazia perguntas aos alunos que não os levavam a desafios. As questões faziam apenas com que os alunos voltassem ao texto e “copiassem” as respostas. Em vários momentos da aula formava-se grande tumulto por parte dos alunos.

Ambos os professores pediram para que os alunos lessem em voz alta o texto. Se o objetivo dos professores foi o de perceber se os alunos sabiam questões ligadas às regras ortográficas da língua, a leitura em voz alta os ajudou a fazer isso. Se seu objetivo foi o de perceber se o aluno sabe fazer a entonação conforme a pontuação, também tiveram como fazer isso na leitura feita pelos alunos. Mas se tiveram objetivo de perceber se os alunos entenderam aquilo que leram, a leitura em voz alta não teve fundamento algum.

O aluno que lê em voz alta costuma tem uma grande preocupação: como está sendo feita a pronúncia das palavras e a pontuação. Com isso, não tem como, além de perceber a leitura que faz, perceber o significado daquilo que lê. O que ocorre então é uma mera decodificação dos sinais gráficos. O significado global do texto fica em segundo plano.

Já a leitura silenciosa é diferente. O aluno tem a oportunidade de voltar e reler aquilo que para ele não ficou claro. Ele pode, assim, se envolver com o texto na busca de significados. Para isso, faz uso de seu ritmo próprio de leitura e de todas as regressões que se fizerem necessárias.

O fato de as atividades desenvolvidas pelos dois professores pesquisados não serem muito significativas para os alunos acabam fazendo com que não haja incorporação do discurso e das ações do professor, não há avanço em busca de independência por parte dos alunos. Isso faz com que eles não possam se constituir como membros de um grupo de leitores, mas apenas como ouvintes e leitores passivos.

4. Conclusão

Faz-se necessário que seja iniciado pelos professores uma educação mais libertadora, em que haja a afloração da consciência crítica que os alunos possuem. Freire (1974) diz que uma educação libertadora abre a cabeça dos alunos para a decisão, para a responsabilidade social e política... dá lugar a uma estrutura mental capaz de resistir ao peso do ceticismo... orienta os educandos para o desenvolvimento e para a democracia... coloca o homem em diálogo constante com o outro.

A leitura pode ser uma das grandes responsáveis pela conscientização do aluno sobre seu papel no mundo em que vive. A leitura pode servir como um instrumento que liberta o homem da alienação e abre sua cabeça para enxergar as ideologias que estão por trás das coisas que o cercam. A leitura pode fazer com que venha à tona o papel de agente sócio-histórico que o homem possui.

A forma como as atividades de leitura vêm sendo desenvolvidas nas aulas analisadas se constituem em atividades não só inócuas, mas também como um eficiente instrumento de controle e adaptação do indivíduo à ordem social, política e econômica.

Poderiam ter sido propostas pelos professores Murilo e Rodolfo atividades que envolvessem o ensino de habilidades lingüísticas, ensino de capacidades específicas que desenvolvessem nos alunos a competência textual, a competência para lidar com textos. A boa atividade de leitura além de desenvolver a criticidade dos alunos e interagi-los com o autor, levá-los ao íntimo, à sua personalidade através da interação, e com o próprio texto ainda os torna capaz de perceber as ligações que há entre as palavras e a captar as estruturas textuais, atitudes e intenções mostradas em um texto.

O trabalho com o léxico também é uma maneira de formar um bom leitor. Se o leitor for capaz de perceber as palavras-chaves componentes do texto, tem como manejar a melhor maneira de lidar com aquilo que é desconhecido. O ato de encontrar palavras-chaves também facilita ao aluno compreender o assunto do qual o texto trata e começar a formular idéias para que argumente a respeito do que lerá.

Outra forma de trabalho interessante que poderia ter sido feita é o de leitura de outros textos que tratassem do mesmo assunto trazido no da aula. Isso poderia provocar condições para que os alunos fizessem comparações e então desenvolvessem a capacidade e analisar criticamente o uso da linguagem podendo atribuir assim intencionalidade ao autor.

Se o professor mostrar que o leitor deve se colocar como sujeito e passar a perceber o autor também como sujeito, a leitura se transforma num ato de interação, numa relação entre sujeitos que podem ter em comum um objeto. Numa leitura interativa, o leitor resignifica a linguagem construindo suas próprias idéias, opiniões, argumentos, que podem ser diferentes daqueles do autor.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail (1997). Marxismo e filosofia da linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec.

BRÁGGIO, Sílvia Lúcia Bigonjal (1992). Leitura e alfabetização: da concepção mecanicista à sociopsicolingüística. Porto Alegre: Artes Médicas.

CARVALHO, Castelar de (1997). Para compreender Saussure. 7ª ed. Petrópolis: Vozes.

COULON, Alain (1995). Etnometodologia e educação. Petrópolis: Vozes.

FIORIN, José Luiz & PLATÃO, Francisco (1997). Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática.

FREIRE, Paulo (1986). A importância do ato de ler. São Paulo.

KLEIMAN, Ângela (1995a). Texto e leitor. 4ª ed. Campinas: Pontes.

_____ (1995b). Oficina de leitura. Campinas: Pontes.

_____ (1996). Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes.

MAC, María Isabel de Gregório de & WELTI, María Cristina Rébola de (1995). La organización textual: los conectores. Su aplicación en el aula. Buenos Aires: Editorial Plus Ultra.

MOITA LOPES, L. P (1996). Interdisciplinaridade e intertextualidade: leitura como prática social. In: Anais do 3º Seminário da Sociedade Internacional de Português e Língua Estrangeira. UFF, Niterói, no prelo.

TERZI, Sylvia Bueno (1998). A construção da leitura. 2ª ed., Campinas: Editora da UNICAMP.

SILVA, Ezequiel Theodoro da (1998). Criticidade e leitura. Campinas: Mercado de Letras.


ANEXO

 

      DALTON TREVISAN

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa.. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva e descansou na pedra o cachimbo.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede – não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu na multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

A última boca repetiu – Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo tinha o ar de um defunto.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

 

     (Cemitério de Elefantes. 6ª ed., Rio de Janeiro, Record, 1980, pp. 40-43.)



[1] O professor Rodolfo era o atual presidente da Academia Jataiense de Letras. Costumava mandar publicar em jornais e revistas locais avisos para a comunidade a respeito de feiras e semanas culturais realizadas por escolas, exposições no museu de artes local e eventos no museu histórico da cidade.