A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS EM TEXTOS ESCRITOS DO PORTUGUÊS CULTO DO BRASIL

Edna Maria Santana Magalhães (UFMG)

1. Introdução

Nossa decisão de estudar as marcas lingüísticas utilizadas para a construção de instâncias de enunciação (CIE)[1] de um texto escrito nasceu da observação de textos produzidos por alunos das 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental (antigo 1º grau) de uma escola pública de Belo Horizonte. Constatamos que esses textos possuem, em seu corpo, um conjunto de pistas (marcas lingüísticas) que consideramos como índices de estratégias discursivas reveladoras do trabalho do seu autor com e na linguagem. Essas estratégias discursivas não são consideradas como objeto de ensino/aprendizagem no contexto escolar, embora sejam fundamentais na construção de textos. Como hipótese de trabalho - que justificaremos posteriormente - postulamos que tais pistas remetem a estratégias discursivas adotadas pelo próprio autor do texto, ao instituir-se como enunciador e/ou ao agenciar outros enunciadores a quem dá voz, na construção de seu texto.

Constata-se a presença dessas mesmas marcas no exame de qualquer texto escrito, no Português considerado culto do Brasil. Em vista disso, parte-se das seguintes premissas nesta pesquisa: (a) um texto evidencia, em sua materialidade, as marcas lingüísticas de estratégias discursivas adotadas pelo seu autor na CIE; (b) tais estratégias envolvem mecanismos e/ou princípios de construção de textos que carecem de um estudo mais sistematizado, constituindo-se justificadamente como um objeto de estudo. Essas premissas assumem grande importância, se consideradas como pistas do processamento discursivo de um texto.

Este estudo pretende, dentre outros objetivos, contribuir para que se focalizem, no ensino/aprendizagem da língua materna, as referidas estratégias discursivas e evidenciar a importância de uma mudança do que, hoje, considera-se relevante no contexto escolar: o deslocamento do foco no enunciado para enfatizar a enunciação (CASTILHO, 1989). Em suma, procurar-se-á responder à seguinte pergunta: que mecanismos são ativados, na escrita, pelo autor, para constituir-se, ou a outros, como enunciador(es) de um texto escrito? Ao definir tal objeto de estudo - os mecanismos de CIE - pretende-se, também, contribuir para o avanço da pesquisa lingüística, no que se refere à descrição do português contemporâneo. O recorte que define esse objeto de estudo coaduna-se com o de trabalhos que vêm sendo realizados por pesquisadores de várias universidades brasileiras, que elegeram a língua falada como objeto de estudo, no intuito de se elaborar uma gramática do português falado do Brasil. Resguardadas as diferenças existentes entre este estudo e o de tais pesquisadores, podemos dizer que comungamos objetivos comuns, ao tentarmos descrever o português contemporâneo abordando a organização Textual-Interativa, a partir de uma perspectiva funcional da linguagem.

2. Construção e tratamento do corpus

De acordo com o que foi mencionado no item 1, a motivação para empreendermos esta pesquisa foi, inicialmente, a verificação de um uso recorrente de determinados itens lexicais, que remetiam à identificação de seus enunciadores, nos textos escolares escritos. Num segundo momento, procedemos a uma pesquisa, em textos jornalísticos, com o intuito de observar como os enunciadores desses textos eram indiciados. O resultado dessa pesquisa foi a constatação de que os autores dos textos escolares e dos textos jornalísticos utilizavam, de forma semelhante, alguns recursos lingüísticos para indiciar os seus enunciadores. Em conseqüência dessa observação, definimos o nosso objeto de estudo: explicitar, de forma sistemática, como os autores de textos escritos no português contemporâneo constroem os enunciadores de seus textos.

Em síntese, partimos da relevância dos dados verificados nos textos produzidos no cotidiano escolar e nos textos jornalísticos. Esses dados foram tomados como índices da atividade lingüística de seus autores, e, nesse sentido, definimos como metodologia de trabalho o paradigma indiciário. Em conformidade com essa metodologia, Tfouni (1992, p.211) postula que seguir o paradigma indiciário significa restituir ao texto suas qualidades individuais, restituir-lhe os contextos em que foi produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção (Idem, p. 212). Por essa razão, partimos do pressuposto de que os recursos lingüísticos que motivaram nossa pesquisa devam ser tratados como índices do trabalho de linguagem dos autores de textos escritos. A utilização do método indiciário nos possibilita uma movimentação dinâmica, em termos de perspectivas de observação do fenômeno a ser investigado.

2.1. O corpus

O corpus dessa pesquisa constituiu-se de um conjunto representativo de textos jornalísticos[2], argumentativos, extraídos de jornais de grande circulação no país - a Folha de São Paulo, O Globo, O Jornal do Brasil e o Estado de Minas. Na construção desse corpus, não se levaram em conta fatores como autores, assuntos abordados, cadernos e a data de circulação dos textos selecionados[3]. A escolha desse tipo de texto justifica-se, em primeiro lugar pelo fato de serem escritos no português culto do Brasil e, em segundo lugar, pelo fato de os textos argumentativos evidenciarem melhor o caráter polifônico do discurso. É na argumentação que mais facilmente verifica-se a utilização de estratégias discursivas de CIE.

A escolha de um corpus dessa natureza – os textos jornalísticos – deve-se estritamente ao pressuposto de que os interlocutores, em toda e qualquer atividade discursiva, interagem através de textos, que são produzidos levando-se em conta diversos fatores de natureza verbal e não verbal. Além disso, caracterizam-se por uma construção formal, tendo em vista que revelam a preocupação em respeitar a norma culta da língua e, também, por apresentarem vestígios de informalidade, que os aproximam de uma linguagem mais informal, próxima da fala. Essa última característica garante aos textos jornalísticos uma maior proximidade com o leitor e visa a convencê-lo, a persuadi-lo da veracidade de suas notícias, informações, opiniões. Nesse sentido, a mídia impressa revela o caráter interacional da linguagem.

É importante frisar que, ao adotarmos tal tipo de texto como fonte de observação e selecionarmos como objeto de estudo os recursos e estratégias discursivas utilizadas em textos escritos, pretendemos reforçar a tese de que todo texto é essencialmente dialógico. Essa postura, significa assumir, como afirma Bakhtin (1929), que a “verdadeira substância da língua (...) é constituída pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.” (p.: 123). Baseamo-nos, também, em Perini (1995) que tece as seguintes considerações sobre os textos jornalísticos: apresentam uma linguagem padrão; há neles uma grande uniformidade gramatical e estilística, pois são isentos de regionalismos e essas razões, segundo o autor, justificam a utilização de textos jornalísticos no ensino/aprendizagem de língua e subsidiam uma análise lingüística em que a “gramática seja (...) uma descrição do português padrão tal como se manifesta na literatura técnica e jornalística” (Idem, p.:88).

As estratégias discursivas, neste trabalho, não se restringem à utilização dos “Shifters” (terminologia usada por Jakobson (1963)), como tradicionalmente concebidos, mas abrangem um conjunto de procedimentos e itens lexicais mais variados. Esses procedimentos e/ou estratégias discursivas indiciam, lingüisticamente, a construção dos enunciadores de um texto. Em decorrência disso, concebemos a existência de um interlocutor/autor que é responsável pela produção dos enunciados e que, obviamente, institui-se como um dos enunciadores de um texto. Essas duas instâncias –  o autor - concebido como o Autor-Modelo - e o enunciador - caracterizam-se como estratégias textuais que revelam papéis actanciais (termos emprestados de Eco (1986)). Tais estratégias, como entidades lingüísticas, só se explicam em função dos enunciados que as indiciam, evidenciando as condições em que foram produzidas e, conseqüentemente, o processo de sua enunciação.

Com a finalidade de explicitar a importância de tais papéis actanciais no processo de produção discursiva, propusemo-nos a empreender uma análise dos recursos utilizados em sua implementação, visando a construir uma taxionomia das estratégias discursivas básicas envolvidas na construção de instâncias de enunciação. Isso significa, pois, conceber o Autor-Modelo como instância a partir da qual os enunciadores se constituem. Tal concepção reconhece o Autor-Modelo, os enunciadores e seus respectivos alocutores como instâncias ativas, em função dos quais a enunciação se define. Tais estratégias revelam-se como resultantes das escolhas do autor, enquanto actor maior, responsável por colocar em cena os actores os quais ele irá “dirigir” e com os quais irá contracenar.

Ao darmos ênfase às estratégias textuais que indiciam os enunciadores de um texto escrito, remetemo-nos a um conjunto diversificado de itens lexicais que apontam para uma dimensão polifônica do discurso. Esse conjunto de itens lexicais - os embreantes[4] ou a dêixis – que se configuram como elementos lingüísticos com que o autor opera para indiciar, através do texto, aspectos de sua atividade discursiva são fundamentais para o trabalho de produção de sentido, por parte de seu(s) interlocutor(es).

3. O quadro teórico

O quadro teórico utilizado nesta pesquisa foi especificado visando, em primeiro lugar, à identificação e à descrição de processos e/ou procedimentos lingüísticos utilizados na CIE em textos jornalísticos argumentativos, tais como: o processamento dêitico, a articulação de verbos “dicendi”, os modos de articulação de “vozes”, de citação etc.. O trabalho realizado nessa etapa resultou em uma taxionomia de tais processos e ou procedimentos. Em segundo lugar, resultou em uma análise dessa taxionomia com o objetivo de explicitar as estratégias discursivas que possam ser tomadas como evidências de fatores constituintes da “competência textual” de autores de textos escritos no português culto do Brasil. Em terceiro lugar, em uma  tentativa de redução de tais estratégias discursivas a princípios e/ou mecanismos lingüísticos constituintes da competência textual de autores de textos escritos no português culto contemporâneo. Em quarto lugar, em um exame da possibilidade de sugestões para o tratamento a ser dado às referidas estratégias no processo de ensino/aprendizagem do português culto, no contexto escolar, a partir dos resultados obtidos na construção da taxionomia das estratégias discursivas de CIE e de indicar caminhos para a interdisciplinariedade e para a integração de estudos voltados para a descrição do português contemporâneo em vistas de termos privilegiado uma descrição do produto lingüístico, sempre relacionado à sua enunciação, ao seu processamento discursivo.

De uma forma mais específica, este trabalho pretende discutir formas de CIE na produção de textos escritos, visando, inclusive, a rediscutir estudos realizados sobre tópicos tais como “discurso direto”, “discurso indireto” e “discurso indireto livre” e, de uma forma mais geral, apresentar novos dados que possam favorecer outros trabalhos sobre o estudo da escrita, do ponto de vista de seu funcionamento discursivo.

3.1. DO PÓLO DO ENUNCIADO AO PÓLO DA ENUNCIAÇÃO

Nas perspectivas de análises lingüísticas centradas no enunciado, o tratamento da constituição de enunciadores, ou seja, como dá-se a CIE, é abordado como propriedades do texto, do produto. Assim, a análise lingüística baseia-se na análise do texto em si mesmo, sem considerar suas condições de produção. Pelo que sabemos, até o momento não se tratou o objeto dessa pesquisa, de forma mais sistematizada, em uma visão mais funcional da língua. Isso só foi possível a partir do advento das teorias do texto e de outras correntes da Lingüística moderna, quando, então, o foco das análises lingüísticas passou a ser a enunciação e não apenas o enunciado, pois os estudos orientaram-se por uma perspectiva discursiva da linguagem. Por isso, na construção do quadro de referência teórica utilizado neste estudo levamos em conta o fato de que o enunciado não pode ser analisado sem se considerar as condições de sua produção. Tal posicionamento implica adotar, como suporte, teorias que focalizam o processamento discursivo como variável indispensável na análise do enunciado. É com essa finalidade que, neste trabalho, utilizamos contribuições da Teoria da Enunciação, da Teoria dos Atos de Fala, das Teorias do Discurso[5] e da Teoria Modular, segundo desdobramentos de Castilho (1997, 1998) e, quando necessário, de outras teorias que tratam o discurso do ponto de vista de seu processamento.

Em vista disso, adotamos as concepções de linguagem, de texto, de enunciação e de discurso  que subsidiam uma noção de língua escrita como representação do processo de interação, ou seja, como representação de uma atividade com/sobre a língua. Isso implica uma abordagem da língua em uma perspectiva funcional, tendo em vista que a análise do produto (o enunciado/texto) orientar-se-á pela análise do processo que o constituiu.

Benveniste (1966), por exemplo, postula que se considere como objeto de estudo a atividade lingüística dos falantes. Uma atividade que evidencia os pilares que constituem o “aparelho formal da enunciação”: um locutor ( aquele que institui a atividade lingüística - a alocução); um alocutário ( aquele instituído como o outro pelo locutor); uma referência (“a necessidade (para o locutor) de referir pelo discurso e, para o alocutário, a possibilidade de co-referir identicamente no e pelo discurso);outras “entidades lingüísticas” (aquelas criadas na e pela enunciação, tais como tempo, lugar e alguns elementos dêiticos).

Analisar o processamento discursivo significa tomar como objeto de estudos as condições de produção de um enunciado ou, num sentido mais amplo, de um texto. Tais condições - a intenção do enunciador ( os objetivos visados); a imagem que o enunciador faz do seu interlocutor e vice-versa; o conhecimento prévio e enciclopédico compartilhado pelos interlocutores; e a situação de interlocução - são tidas como fatores que definem a enunciação. Assim, a enunciação se caracterizaria pelo conjunto de fatores e atos que determinam a produção de enunciados. Nessa perspectiva, a enunciação, a linguagem, em suma, é caracterizada como uma atividade em processo - um processo que visa à interação lingüística entre interlocutores e evidencia “a ação do locutor com/sobre a língua”.

Vale notar que Benveniste postula a existência de instâncias de discurso e que cada uma delas tem o seu próprio centro de referência interno. O autor identifica um conjunto de termos lingüísticos produzidos na e pela enunciação que seriam responsáveis pela identificação dessas instâncias do discurso: (i) os índices de pessoa - os pronomes pessoais; (ii) os índices de ostensão – os pronomes demonstrativos; (iii) os “tempos” verbais – o presente lingüístico e as categorizações dele decorrentes. De acordo com Benveniste, esses elementos constituem os recursos lingüísticos cambiáveis no processo de interlocução, possibilitando, em situações distintas, a apropriação do discurso por aquele que, no momento, assume a posição de locutor. A construção de instâncias enunciativas, segundo Benveniste, dar-se-ia, pois, com base na utilização desses recursos lingüísticos. Propomos expandir o universo desses elementos lingüísticos, aventando que, no funcionamento discursivo da língua, outros recursos lingüísticos são utilizados para indiciar a CIEs.

Embora a interação verbal pressuponha, inicialmente, uma interlocução oral entre os indivíduos no discurso, entende-se, neste estudo, que toda e qualquer expressão lingüística, que tenha como fim a interlocução entre um eu e um tu, possa ser considerada uma forma de interação verbal. Conceber, dessa forma, a interação verbal implica conceber a linguagem como uma “atividade” que se desenvolve numa relação dialógica entre um enunciador que se enuncia como eu e um enunciatário que é enunciado como tu. Esse dialogismo pode ocorrer de duas formas: a) na presença dos alocutores, como se verifica numa situação de fala, em que os mesmos se colocam como enunciadores no momento em que se dá a interlocução; b) na ausência física do alocutário, como é o caso da escrita ou dos monólogos. Em b), apesar de encontrarem-se distantes os alocutários, eles se constroem como enunciadores/enunciatários, uma vez que, quem enuncia, traz para a cena enunciativa o outro a quem sua enunciação se dirige, instituindo uma instância de enunciação. Isso significa que toda interação verbal pressupõe um diálogo construído em uma relação de interlocução entre interlocutores reais e/ou imaginários, pois a enunciação é de natureza social[6]. (Bakhtin, 1929: 109). Em conseqüência disso, o processo de enunciação pode ser considerado, em si, como dado de análise, focalizando-se especificamente o seu caráter dialógico. Conceber, pois, a linguagem como eminentemente dialógica é reconhecer o seu caráter social, por um lado e, por outro, reconhecê-la como mecanismo revelador da atividade lingüística do locutor e do alocutário em uma dada situação de interação verbal.

Na construção do quadro de referência teórico deste trabalho, adotamos, também, contribuições de Possenti (1988) e Maingueneau (1987), que propõem conceber o discurso como interdiscurso, ampliando a noção de enunciação de Benveniste. Enquanto este enfatiza a ação do locutor na linguagem, Possenti postula que a enunciação se caracteriza por estar marcada pela ação do sujeito[7] com e sobre a linguagem simultaneamente. Concebendo a enunciação como um processo de “constituição, em qualquer instância, de enunciados”, Possenti chama a atenção para as diversas possibilidades de uso que a “língua oferece à atividade do locutor a cada discurso” (op. cit., p.:58). A tese de Possenti (e também de Maingueneau (1987)) é a de que “o discurso é basicamente interdiscurso”. e, nesse sentido, a “palavra chave relativa ao discurso, ou à língua, é heterogeneidade ( ou polifonia, ou dialogismo) [8]...”(Idem, 1994:6).

Assumir o discurso como polifônico, nesse ponto de vista, pressupõe aceitar o discurso como jogo de representações, no qual o autor assume uma voz e/ou a situa entre outra(s) voz(es). Partindo do desenvolvimento que Ducrot (1984) faz do conceito de Bakhtin sobre a polifonia, Maingueneau (1986) analisa o discurso polifônico, afirmando que a questão fundamental no seu tratamento reside na “questão da identidade do sujeito enunciador”. Reconhecer a polifonia no discurso afasta de vez, segundo Maingueneau, a concepção de que “um enunciado teria apenas uma fonte, denominada indiferentemente “locutor”, “sujeito falante”, “enunciador”, etc..”. Isso significaria aglutinar numa única “pessoa” funções distintas, que definem os papéis lingüísticos dos atores da atividade lingüística. De acordo com esse teórico, o autor não é o único a dizer “eu” num texto. Ao analisar as falas que caracterizam um texto narrativo, o autor critica os estudos referentes ao discurso direto, ao discurso indireto e ao indireto livre, por entender que estes recursos caracterizam-se como estratégias que revelam a existência de sistemas enunciativos e não, apenas, como formas de citação de discursos. A existência dos sistemas enunciativos explicita o caráter polifônico do discurso. A polifonia se constrói, pois, na articulação desses sistemas enunciativos, que chamaremos instâncias enunciativas. Isso “implica uma integração de relações entre enunciadores, em tempos e espaços[9] constituídos na própria enunciação” (Lopes, 1998:106).

Nessa perspectiva, consideramos, aqui, os conceitos de enunciação e de discurso como intercambiáveis, tendo em vista a concepção de língua que os corrobora. Isso significa considerar enunciação/discurso como sendo a “atividade comunicativa de um falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados produzidos pelo locutor (ou por este e o seu interlocutor, no caso do diálogo) e o evento de sua enunciação” (Koch, 1983:25). O texto, no processo de enunciação, pode ser entendido como lugar onde se materializam os recursos lingüísticos da interação verbal, tornando possível a identificação do processo de sua produção. Assim, entendemos a escrita como uma das formas de representação da linguagem e, nessa visão, na e pela escrita explicita-se a atividade ou a ação do interlocutor na construção do(s) enunciador(es) e o processo de enunciação. Nessa atividade lingüística, então, revelam-se os recursos pelos quais o autor/enunciador ativa outras vozes ou outros enunciadores, com o objetivo de (re)velar a sua própria voz enunciativa.

Em vista disso, nos utilizamos da reelaboração que Castilho (1997 e 1998) propõe da Teoria Modular[10], a qual aborda a língua considerando três dimensões, concebidas como módulos lingüísticos: o módulo discursivo, o módulo gramatical e o módulo semântico. A partir dessa abordagem teórica pudemos analisar a enunciação em todo o seu conjunto, considerando o fato de que em toda e qualquer interação lingüística, os indivíduos que dela participam, durante todo o processo discursivo, tomam decisões sobre como administrar o Léxico: que palavras se adequam à situação discursiva, que propriedades dessas palavras devem ser ativadas, reativadas ou desativadas. Assim, o autor identifica três operações básicas a ativação/a reativação/a desativação que “se constituem em mecanismos suficientemente fortes para revelar a maquinaria de constituição do texto e da sentença” (Idem:39). A configuração dessas operações envolvem fatores que operam, simultânea e concomitantemente, no processamento de textos. De acordo com Castilho, os três domínios - o Gramatical, o Semântico e o Pragmático (Discursivo) - são articulados pelo Léxico. As propriedades inerentes a esses domínios estão alojadas no Léxico e “são ativadas num mesmo ato de fala” (Idem, 1997:9).

Adotando essa versão da Teoria Modular, destacamos, de Castilho (1997), a idéia de que na base de toda atividade discursiva está a ativação de um item lexical, pois o ofício de criar um texto é um ofício de reunir palavras. Para Castilho, no entanto, “o Léxico não é uma mera lista de palavras. É um conjunto de itens dotados de propriedades semânticas e gramaticais[11] alternadas ou confirmadas no momento da interação discursiva.” (1998, p. 37). Significa conceber que cada item lexical possui propriedades semânticas, propriedades sintáticas (ou gramaticais) e propriedades fonológicas. Nessa perspectiva, poderíamos esquematizar a proposta modular de Castilho da seguinte maneira:

Figura 1. A figura ilustra o texto como resultante das relações entre o sistema lexical e os três módulos que compõem o sistema computacional da mente numa atividade discursiva.

A identificação do processo de ativação assume uma importância central para a CIE. Isso porque evidencia a organização do discurso, e, por conseguinte, das instâncias de enunciação que o compõem. Por organização, entendemos a propriedade que é manifestada por relações de interdependência que se estabelecem simultaneamente em dois planos: no plano hierárquico, conforme as relações de coordenação e/ou subordinação entre as instâncias enunciativas; no plano seqüencial, de acordo com as articulações dessas instâncias em termos de sua localização - adjacentes ou intercaladas - no discurso. O processo de reativação consiste na repetição literal dos enunciados; a paráfrase ou a recorrência de conteúdos, que se caracteriza pela repetição de uma idéia, sem, contudo, repetir as palavras que a exprimiram. A construção por desativação é, como o próprio nome sugere, um processo em que se verifica um corte no fluxo do discurso. Os processos que caracterizam a construção por desativação implicam dois movimentos simultâneos: por um lado, tem-se a desativação de palavras principais e, por outro lado, a imediata ativação de outras.

No que diz respeito ao nosso objeto, tais processos mostram-se muito usuais, tendo em vista que identificamos, no Léxico, um conjunto de itens que evidenciam, dentre as estratégias discursivas de construção de instâncias enunciativas, a ação do enunciador de reconstruir o(s) discurso(s) de outro(s) enunciador(es) e/ou o seu próprio, incorporando-o(s) no fluxo do texto.

3.2. As estratégias discursivas na CIE

Procuramos enfatizar a importância de se considerar as pistas que indiciam o discurso, focalizamos o papel dos dêiticos no processamento discursivo e a necessidade de se considerar, como pertencentes ao conjunto desses elementos, uma gama maior de itens lexicais, que, no discurso, assumem a função de “shifters”. A dêixis é, pois, constitutiva do processo de enunciação e, como tal, revela as pistas que constituem o processamento discursivo. Nessa perspectiva, a dêixis rege a construção dos enunciadores no discurso, localizando-os em tempos e espaços discursivos, instaurando, dessa forma, a polifonia, e promovendo a articulação das instâncias enunciativas de um texto. Nesse sentido, as estratégias discursivas traduzem a atividade lingüística em si, levando-se em conta que os “shifters” – ou dêiticos - são estrategicamente utilizados de acordo com a situação de enunciação, isto é, visando à implementação e à organização das instâncias de enunciação articuladas na construção de textos. Nesse sentido, falar em CIE - várias vozes, várias instâncias de enunciação - corresponde a aludir a uma pluralidade de tempos e de espaços, pois cada instância de enunciação cria o seu tempo, o seu espaço, os seus interlocutores. Assim, se a articulação de tempos define-se como uma das coordenadas que compõem o sistema de referência interna da enunciação, cabe a nós explicitar a base sobre a qual tal articulação se efetua. Tomemos, como exemplo, o trecho abaixo para ilustrar a constituição de planos enunciativos:

(1) {INE1Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirige-se ao sargento] INE2 [que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel.] INE3} INE1 ”(T14. L 28-33)

O exemplo (1) articula três instâncias enunciativas. A) EN1 é instituído em “situação default” e “fala” para um leitor virtual referenciado como AL1. Entende-se por “situação default” a “tomada de palavra” por parte do enunciador que funda o discurso – EN1 -. Esse enunciador se situa no aqui/agora do processamento discursivo. O tempo e o espaço enunciativos referenciados nessa primeira instância estão atrelados ao aqui/agora da enunciação –“Hoje”- em que EN1 toma a palavra e, pela elocução da forma verbal “dirige-se”, introduz EN2. B) Ao introduzir EN2 no discurso, indiciando-o através do verbo dirigir, EN1 instaura a segunda instância enunciativa – INE2[12]- formada pelo par EN2-AL2, referenciados no texto como o soldado da PM, de um lado, e o sargento, de outro. Essa instância de enunciação situa-se temporalmente, num momento simultâneo, em relação ao momento da enunciação de EN1 e é indiciada pelos termos: “Hoje”, “quando”. C) EN1 instaura, ainda, uma terceira instância de enunciação – INE3 - ao referenciar a interlocução do par EN3-AL3, indiciando-a pelo verbo “reporta”. Nessa instância, que se situa num tempo simultâneo ao tempo lingüístico da INE2, o AL2 assume o papel de EN3 e institui o seu próprio alocutário - AL3 -, referenciado no texto lingüisticamente como o “oficial do dia”, a quem reporta o que lhe foi dito por EN2.

Tal jogo de tempos discursivos situa uma pluralidade de discursos em tempos e espaços próprios e põe em foco a força ilocucionária do operador – “quando” - usado no âmbito da INE1, que subordina os tempos e espaços das outras instâncias enunciativas que compõem a enunciação como um todo. A categoria de tempo, como consta em (1), é construída a partir de um tempo zero - o presente da enunciação - sendo este o plano que orienta o jogo dos outros tempos que compõem a enunciação e possibilita, ainda, a sua localização em termos das coordenadas espaciais nela referenciadas. O tempo lingüístico - que se institui a partir do presente da enunciação - está marcado nas formas verbais e em expressões temporais, e o espaço enunciativo, em expressões locativas ou outras informações situacionais, como “por sua vez” e a instauração dos enunciadores. A configuração dos espaços enunciativos está diretamente relacionada à configuração do tempo enunciativo, porque um acontecimento se define em função de sua localização em dois aspectos: o momento e o lugar de sua ocorrência. A INE1 constitui o plano básico da enunciação como um todo. É esse plano que permite a identificação das outras instâncias de enunciação que compõem (1) e possibilita a articulação destas, localizando-as uma em relação às outras e , é claro, em relação ao todo.

Ilustramos, esquematicamente, através da figura abaixo, como a configuração de tempo e espaço articula as instâncias enunciativas de (1):

Figura 2 - A figura possibilita-nos visualizar mais claramente a articulação estabelecida entre as instâncias de enunciação que compõem (1) pela configuração espaço-temporal da INE1.

Vê-se, nessa figura, que o plano 1, EN1/REF1/AL1, representado pelo triângulo maior, corresponde a todo o texto e os outros planos, representados pelos triângulos menores, articulam-se no seu interior.

3.3. A configuração da INE na Teoria Modular

A percepção das categorias de tempo/espaço dá-se pela operacionalização de processos de gramaticalização responsáveis pela linearização dos enunciados. Produzem-se, a partir do processamento das pistas fornecidas pelos enunciadores, efeitos de sentido que, através de processos semânticos, correspondem à criação de um “tempo cronológico” e um “espaço físico”, definidos em função do tempo/espaço da INE1. Os efeitos de sentido produzidos pelo processamento dos enunciados configuram-se em processos de semantização e são ativados concomitantemente ao processamento dos enunciados, a partir de decisões do ouvinte/leitor que situaríamos no módulo Discursivo. Assim, a referência ao tempo e ao espaço lingüísticos da INE1, apesar de ser marcada como sempre presente e localizada em relação ao aqui/agora da elocução, não impossibilita a referência a diferentes tempos/espaços que caracterizam as instâncias enunciativas que constituem uma determinada enunciação. Além disso, os tempos e os espaços enunciativos podem ser indiciados por outros elementos lingüísticos e não apenas pelos verbos e pelos tradicionais advérbios, como em (2):

(2) {“Há poucos dias, diante de [comentário]EN2 meu a propósito da demora do Congresso na [revogação]EN3 da [lei de imprensa]EN4 imposta no regime militar, fui surpreendido com [manifestação indignada de interlocutor amigo]EN5 pelo fato de o [projeto]EN6 em andamento na Câmara dos Deputados excluir, em princípio, a pena de prisão para os crimes contra a honra praticados por [jornalistas no exercício da profissão. ]EN7}EN1 (T11, L 1-10)

O exemplo (2) é constituído por sete instâncias de enunciação. A INE1 é instituída em “situação default”, em que EN1 se enuncia falando para um interlocutor virtual - AL1 - que, no caso, é construído pelo leitor. As outras instâncias subordinadas a essa primeira instância - INE1 – sucedem-se em planos espaço-temporais que as organizam hierarquicamente em relação ao momento da “fala”- instaurada em “situação default”. O efeito de sentido produzido no módulo Semântico pela subordinação das diversas instâncias de enunciação em relação à instância de fundação da enunciação, pode ser representado a partir da seguinte notação:

{INE1 [(INE2 - comentário) => (INE3 – revogação) => (INE4 – lei de imprensa) => (INE5 – manifestação indignada de interlocutor amigo) => (INE6 - projeto) => (INE7 - jornalistas no exercício da profissão)]}

Em termos da localização no eixo das coordenadas espaço-temporais, a subordinação e a hierarquia dos planos enunciativos, do exemplo acima, são organizadas, como se mostra na figura abaixo, em movimentos para trás, na referência a tempos/espaços enunciativos anteriores, ou simultâneos, ou se projetam num presente contínuo em direção a um tempo/espaço posterior ao tempo/espaço da INE1. Dos movimentos realizados a partir de INE1, configuram-se outros tempos e espaços enunciativos que não têm uma importância secundária em relação a essa instância fundadora, embora sejam constituídos como desdobramentos do tempo/espaço da enunciação construído por EN1 e estejam subordinados a essa instância.

Figura 3 -  A figura 3 ilustra a hierarquia dos planos enunciativos, levando em conta a sua localização espaço-temporal e a sua organização na cena enunciativa de (2).

É pelo tempo lingüístico, caracterizado pelo “agora” da realização do discurso, que se torna explícita a experienciação de tempo/espaço da enunciação. Esse tempo/espaço, marcado pelo aqui/agora, possibilita a mobilidade com que os tópicos discursivos identificados na, e a partir da instância fundadora e, também, nas outras instâncias, possam ser referenciados na atividade discursiva. A identificação do tempo lingüístico, pois, dá-se dependentemente das formas gramaticais usadas para referenciá-lo e, em função da diretiva que orienta o seu reconhecimento, está intrinsecamente ligada ao momento/lugar em que a enunciação ocorre/eu.

4. Taxionomia das estratégias discursivas de CIEs

A análise empreendida nesta pesquisa evidenciou que 1) a CIE está diretamente relacionada às decisões tomadas pelos falante no módulo Discursivo, uma vez que a situação de interlocução é fator determinante na operacionalização dos módulos Gramatical e Semântico, com vistas a ativar, no Léxico 1.1). as propriedades gramaticais e semânticas dos itens lexicais e 1.2) as formas de articulação desses itens no discurso; 2) as operações no módulo Gramatical definem-se basicamente pela ativação das propriedades gramaticais dos itens lexicais, considerando 2.1) a sua configuração formal em um item lexical, ou em um sintagma e 2.2) a sua articulação gramatical a partir das relações explicitadas no enunciado; e 3) as operações no módulo Semântico definem-se basicamente pela ativação das propriedades semânticas dos itens lexicais, considerando 3.1) a construção da referência da “situação default”, visando a sua interpretação como o plano básico de CIE, que a situa como o presente da enunciação; 3.2) a identificação do jogo de “tempos” e “planos enunciativos” visando à articulação desses tempos e à referenciação dos discursos que os caracterizam. como subordinados a uma instância básica; e 3.3) a construção da modalização, visando a um distanciamento maior ou menor do falante, construído em “situação default”, em relação ao discurso por ele instituído.

É na ativação das operações realizadas em 2.1 que são definidas as estratégias de gramaticalização do plano básico pela “situação default” e dos planos subalternos pela ativação de um item lexical e/ou a combinação desses, com fins a constituir uma estrutura sintagmática para indiciar a CIE. Dessas operações resultam: 2.1.1) a caracterização do plano básico, indiciado como o eu/aqui/agora da enunciação; 2.1.2) a caraterização dos planos subalternos em decorrência das coordenadas definidas no plano básico; 2.1.3) a caracterização das “formas de dizer” pela ativação de um item lexical, ou a ativação de um conjunto desses itens, com objetivo de indiciar o discurso. Já a articulação gramatical, referida em 2.2, define-se em função das estratégias implementadas em 2.1, para que o leitor explicite como são gramaticalizados os itens e/ou sintagmas ativados no processamento discursivo. Enfim, revelam-se as formas de organização do discurso, relativas à organização gramatical dada ao enunciado.

As operações identificadas em 3 estão diretamente relacionadas à semantização das propriedades ativadas nos recursos lingüísticos no módulo Gramatical, com vistas a possibilitar a interpretação das informações gramaticalizadas na materialidade dos enunciados.

Em suma, tais operações nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico explicitam que as estratégias de CIEs, de fato, estão relacionadas a uma utilização maior ou menor dos recursos dêiticos que referenciam e articulam as instâncias enunciativas dos planos subalternos à instância fundadora do discurso.

4.1. Estratégias discursivas de CIEs

Tendo em vista a multiplicidade de recursos dêiticos utilizados pelos falantes para indiciar mais ou menos os enunciadores de seus textos, no processamento discursivo, definimos apenas duas estratégias básicas de CIEs que revelam como se dá a intermediação do Léxico na operacionalização dos módulos lingüísticos. A primeira delas é a “situação default”, estratégia discursiva que gramaticaliza e semantiza o autor de textos como um “indivíduo lingüístico”, situado num tempo/espaço também lingüístico, a partir do qual se constrói o conjunto de referências do texto. A segunda estratégia define-se pela ativação do Léxico. Essa estratégia, como demonstramos ao longo dessa análise, caracteriza-se pela atividade do falante na mediação pelo sistema lexical, visando a ativar/reativar/desativar as propriedade gramaticais e semânticas dos itens lexicais para indiciar-se e/ou a outros, no processamento discursivo, como enunciador(es) de seu texto. Numa tentativa de ilustrar como se realizam essas duas formas de CIE, reunimos, abaixo, o conjunto de recursos que as possibilitam.

(A) – “Situação Default”

A “situação default” é a estratégia discursiva utilizada para identificar a instância fundadora do discurso e que (A1) pode estar ostensivamente marcada pela dêixis de pessoa, de tempo e de espaço e (A2) pode estar menos indiciada, o que obriga o leitor a buscar a sua identificação e referenciação na gramaticalização e semantização de recursos dêiticos constitutivos do seu enunciado. Disso depreende-se que, a existência de mais ou menos recursos dêiticos estão relacionados à questão de uma modalização maior ou menor do enunciador da “situação default”. Nesse sentido, a ocorrência (A1) explicita que a voz autoral identifica-se com a voz do EN1 e (A2), que a voz autoral remete a um enunciador com o qual, embora seja instituído como EN1, não se identifica explicitamente.

As operações relativas à construção da “situação default”, nos módulos lingüísticos, estão relacionadas à ativação e seleção de certos recursos lexicais, cujas propriedades gramaticais serão ativadas e semantizadas em função de indiciar a instância fundadora do discurso e as outras instâncias que a ela se articulam. Em decorrência dessas operações no três módulos lingüísticos, podemos postular que as características acima são ativadas visando a possibilitar ao AL1 operar os recursos lingüísticos presentes no enunciado e ativar as propriedades semânticas dos mesmos, identificando a modalização da “situação default”, relativas à: (i) pessoalização, que nos remete ao caso (A1); (ii) impessoalização, que remete ao caso (A2), cuja identificação encontra-se ancorada na articulação gramatical e semântica dos dêiticos espaço/temporais que indiciam a INE1 como o ponto zero para onde convergem as informações dos dêiticos. Sua gramaticalização e interpretação ancoram-se nas informações dêiticas de outras instâncias enunciativas, uma vez que sua instituição somente se efetiva através das operações no módulo Semântico que apontam para o seguinte: “alguém está dizendo que ...”.

(B) Ativação do Sistema Lexical

Esse recurso define-se como um dos recursos característicos da estratégia de ativação de um item lexical.. Os itens lexicais, abaixo identificados, podem gramaticalizar, referenciar e modalizar tanto (A) a “situação default”, quanto (B) as outras instâncias enunciativas, definindo-as como formas de explicitação dos recursos dêiticos presentes nos morfemas verbais e/ou outros morfemas gramaticais.

(B1) Utilização de verbos “dicendi"

Os verbos “dicendi” evidenciaram-se como um dos importantes recursos lingüísticos utilizados pelos autores de texto na instituição de instâncias enunciativas, uma vez que o simples fato de enunciá-lo já institui uma situação de interlocução, cuja explicitação se faz através dos recursos dêiticos presentes nos morfemas verbais.

(B2) Utilização de verbos “não-dicendi”

A seleção de um “não-dicendi” do Léxico implica a ativação de suas propriedades gramaticais, que são semantizadas em função de se criar um efeito de sentido próximo ao dos característicos “dicendi”.

(B3) Utilização de deverbais

Há dois fatores importantes a se considerar em relação aos “deverbais”. Em primeiro lugar, a seleção de um deverbal do Léxico implica a ativação de suas propriedades gramaticais, que são semantizadas em função de se criar um efeito de sentido semelhante ao dos “dicendi”. Em segundo lugar, os deverbais selecionados são correlatos dos verbos “dicendi”.

(B4) Os “sintagmas de elocução”

Os “sintagmas de elocução” são formados a partir da articulação gramatical e semântica de itens lexicais, constituindo um conjunto harmônico, cuja articulação não pode ser quebrada sem o risco de comprometer a CIE que eles instituem e/ou modalizam e a que se referem. Considerados no processamento discursivo, os “sintagmas de elocução” classificam-se em três categorias: (1) os que fazem uma referência explícita à situação de interlocução; (2) os que fazem uma referência indireta à situação de interlocução; e (3) os que exigem um esforço maior dos prováveis interlocutores para a identificação de uma situação de interlocução.

(C) Recursos exclusivos da escrita

Nesse grupo, incluem-se os seguintes itens: parênteses, aspas (duplas ou simples), travessões, os dois pontos e os parágrafos. O corpus apontou para a necessidade de se considerar esses recursos como importantes recursos para a constituição de instâncias enunciativas, pois o seu emprego indicia ostensivamente a instauração de uma nova instância de enunciação, com o fim de caracterizar um discurso referenciado e/ou modalizador (1) quer no interior da INE1; (2) quer no interior de um discurso de qualquer outro enunciador; (3) quer no interior de seu próprio discurso. Esses recursos estão sendo chamados de modalizadores devido ao fato de que instituem, no discurso, em que se inserem o ponto de vista de um determinado enunciador. Além disso, indiciam como se dá a articulação das diversas instâncias de enunciação, tendo em vista o fato de que (i) a sua gramaticalização aponta para as formas de articulação das INEs do plano subalterno no interior da INE do plano básico, caracterizadas por operações no módulo Gramatical; (ii) as operações no módulo Semântico indiciam a configuração semântica das relações explicitadas no módulo Gramatical, caracterizando, dessa forma, a modalização pretendida no módulo Discursivo.

(D)  Formas de articulação na CIE

Constatamos que, basicamente, as formas de articulação entre as diversas instâncias de enunciação ocorrem de duas maneiras: indiciadas mais e/ou menos ostensivamente por diferentes categorias de itens lexicais ou sintagmas instituídos nas instâncias de enunciação. A articulação entre as diversas INEs poderá ser indiciada pelos diversos recursos descritos acima, sendo sua característica promover a referenciação e/ou a modalização dos discursos constitutivos das diversas INEs.

Podemos notar pela taxionomia acima que um outro dado explicita-se: não há como falar de “regularidades”, pelo menos no que diz respeito à concepção tradicional das formas de se explicitar as vozes diferentes de um texto, relativamente à forma de articulação entre as instâncias de enunciação. Por um lado, se a utilização mais ostensiva dos dêiticos que indiciam a situação de interlocução explicita como ocorre a organização gramatical e semântica entre as INEs; por outro, a utilização menos ostensiva indicia que a articulação sintática e semântica das INEs pode se dar diretamente ancorada em outros itens responsáveis pela instituição das INEs. Nessa perspectiva, essas duas formas de articulação de INEs são consideradas estratégias de modalização do discurso e falar em regularidade pressupõe falar de discursivização, ou seja, levar em conta os diversos fatores que promovem e definem a produção de um texto, de uma enunciação.

5. Conclusão

As estratégias identificadas e tomadas como objeto de estudo neste trabalho, se, de um lado, têm como origem os recursos lexicais, de outro, revelam que os arranjos lingüísticos feitos pelos interlocutores só se efetivam se ativados os três módulos lingüísticos. Sistematicamente, trazem à tona um outro fator importante: a enunciação traz as marcas de seu enunciador e revelam o nível de conhecimento que o produtor de textos possui dos mecanismos lingüísticos que possibilitam um exercício com/na língua, visando à interação verbal. Procuramos demonstrar que a CIE está diretamente relacionada ao funcionamento discursivo, considerando-se as operações de ativação/reativação/desativação das propriedades discursivas, sintáticas e semânticas dos itens lexicais nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico. Essas operações explicitam como estratégias discursivas as identificadas na taxionomia que são implementadas através do uso mais ou menos ostensivo dos shifters, da dêixis. Em relação à forma da articulação das diversas instâncias enunciativas, o uso de operadores discursivos[13], entendidos como toda uma classe de recursos que orientam para a articulação semântica e sintática na articulação das instâncias enunciativas, desempenham um papel fundamental na CIE e, como já dissemos anteriormente, da enunciação por inteiro.

Em suma: a ativação de operações de CIEs resulta da competência lingüística do autor de textos - orais e escritos - em povoar a sua enunciação de enunciadores, operando os recursos lingüísticos de forma a se obter os efeitos de sentido desejados. Na base dessa competência está o Léxico e, dentro deste, o sistema dêitico responsável por indiciar a sua atividade discursiva. Nesse sentido, postulamos que a CIE decorre dessa capacidade do falante e revela, também como se constrói a polifonia, que resulta da articulação dos planos enunciativos relativamente à instauração da instância fundadora do discurso – INE1.  

BIBLIOGRAFIA

AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Cambridge: Cambridge University Press, 1962.

BAKHTIN, Mikhail. ( 1929) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 5ª edição, 1990.

BENVENISTE, Émile.(1966) Problemas de lingüística geral I. Trad. de Maria da G. Novak e Maria L. Neri. Campinas, SP.: Pontes, 4ª ed., 1995. ( trad. de Problémes de linguistique générale I)

_________________.(1970) “O aparelho formal da enunciação”, in: Problemas de lingüística geral II. Trad. de Eduardo Guimarães et al.. Campinas, SP.: Pontes, 1989, pp. 81-90. (Trad. de Problémes de linguistique générale II, 1974.

CASTILHO, A. T. (Org.). (1989) Gramática do Português falado. Volume I: a ordem. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP/FAPESP.

______________. (1996) (Org.). Gramática do Português falado. Volume III: as abordagens. Campinas, S.P.: Editora da UNICAMP/ FAPESP.

________________. (1997) Português falado e reflexão gramatical. Campinas, São Paulo (mimeo).

________________. (1998). Português falado e reflexão gramatical. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP/FAPESP.

DUCROT, Oswald. (1984) O dizer e o dito (Rev. téc. da Tradução) Eduardo Guimarães. Campinas, SP.: Pontes, 1987. Título original: Le dire et le dit.

 ECO, Umberto. (1986) “ O Leitor-Modelo”. In.: Lector in fabula: da cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Editora Perspectiva.

ILARI, Rodolfo. (1992) Perspectiva funcional da frase portuguesa. Campinas, SP. Editora da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP.

____________. (1996) (Org.). Gramática do Português falado. Volume II: níveis de análise lingüística. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP/FAPESP.

JAKOBSON, Roman (1957) “Shifters, verbal categories and the Russian verb”. In.: Selected writtings, Haia, Mouton, pp.130-47.

KOCK, Ingedore G.. ((1983) Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2ª edição, 1987.

LOPES, Maria Angela P. T. . O processamento dêitico na constituição da polifonia.. Belo Horizonte: Pós-Graduação em Letras da PUC - MINAS, 1998. (Dissertação, Mestrado em Letras)

MAGALHÃES, Edna M. S. A construção de instâncias enunciativas em textos escritos do português culto do Brasil. Belo Horizonte: Pós-Graduação em Letras da PUC - MINAS, 1998. (Dissertação, Mestrado em Letras)

MAINGUENEAU, Dominique. (1976) Novas tendências em Análise do Discurso. Trad.:Freda Indursky. Campinas, SP.: Pontes, 2ª edição,1993. (trad. de Initiation aux méthodes de l’Analyse du Discours).

 _______________________.(1986) Elementos de linguistic para o texto literário. Trad. de  Maria A. B. de Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ( Trad.: Éléments le linguistique pour le texte littéraire. Paris: Bordas, 1986.

MORRIS, C. W.. (1938) Fundamentos da teoria dos signos. Rio de Janeiro, Eldorado, São Paulo, EDUSP (Trad. de  Foundations of the theory of signs)

PERINI, M. A.. (1995) Gramática descritiva do português. São Paulo, SP.: Editora Ática.

POSSENTI, Sírio. (1988) Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1ª reimpressão, 1993.

______________. (1994) A heterogeneidade e a noção de interdiscursos. Texto apresentado para aula de livre docência, Campinas: 30-31/05. (Mimeo).

ROULET, E.. (1997) Un modéle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. (Texto mimeo.), 32p..

SEARLE, John R.. (1969) Speech-acts, na essay in the philosophy of language. Cambridge: University Press.

STAM, Robert. (s/d) “Dialogismo cultural e textual”. In: Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. (Trad. de Heloísa Janh). São Paulo: Ática, pp.:72-8, (s/d).

TFOUNI, Leda Verdiani. (1992) “O dado como indício e a contextualização do(a) pesquisador(a) nos estudos sobre compreensão da linguagem”. In.: Revista Delta.. São Paulo: Educ., vol. 8, nº 2, pp.205-223.

VILLELA, Ana M. N. (1998) Pontuação e interação. Belo Horizonte: Pós-Graduação em Letras da PUC - MINAS, 1998. (Dissertação, Mestrado em Letras)


[1] Utilizaremos CIE quando se fizer referência à construção de instâncias de enunciação.

[2] Os textos selecionados constam do anexo da dissertação Magalhães(1998).

[3] Os exemplos citados ao longo deste artigo são identificados pela seguinte notação: (T45, L12). Essa notação nos informa que o excerto foi extraído do texto 45, constante do anexo citado na nota 3 e na linha 12.

[4] Embreantes é uma tradução portuguesa de “embrayeurs”, que é a tradução do inglês shifter adotado por Jakobson (1963), utilizada na versão portuguesa de Maingueneau (1986). Neste estudo usaremos o nome shifter.

[5] A Lingüística da Enunciação, sem deixar de levar em conta o enunciado, já focaliza como objeto de estudo também os mecanismos envolvidos em sua produção. Constata-se isso, por exemplo, em Austin (1962) com a Teoria dos Atos de Fala -, em Searle (1969), em Jakobson (1957) com suas funções da linguagem e nos textos de Benveniste (1966, 1970[5]) com seu “aparelho formal da enunciação” e outros. Esses são alguns dos autores que, além do aspecto estrutural da língua, já consideram as condições de uso de tais estruturas lingüísticas, ou seja, instituem como objeto de estudo o funcionamento da linguagem.

[6] Itálico do autor.

[7] Sobre a noção de sujeito: usamos este termo nas citações, mas não é relevante para nós tal noção, na extensão em que é utilizada na AD. Neste trabalho, preferimos os termos locutor/ enunciador.

[8] Negritos nossos. É importante lembrar que a noção de heterogeneidade discursiva relaciona-se à de dialogismo em Bakhtin (1977). O dialogismo ou polifonia é a relação necessária entre um enunciado e outros enunciados” [Stam, (s/d):72].

[9] A noção de tempo/espaço discursivo, neste trabalho, possui a mesma natureza da noção de autor/enunciador/locutor, ou seja, são entidades lingüísticas que só têm a sua existência construída em relação à enunciação em que se insere.

[10] Castilho considera contribuições de estudos desenvolvidos por Morris (1938) e Roulet(1997).

[11] O grifo é de Castilho enfatizando as propriedades inerentes ao Léxico.

[12] Utilizaremos, a partir deste ponto, a notação INE seguida de um número, como usamos em relação à identificação dos enunciadores e alocutários, para nos referirmos a uma instância enunciativa.

[13] Utilizamos essa terminologia de acordo de Ilari (1996) por dar conta de uma universo bem amplo de itens lexicais utilizados na atividade discursiva. De acordo com o autor os operadores discursivos abrangem uma categoria ampla e bem diversificada de termos lingüísticos que no discurso desempenha a função de organizar o discurso e se refere a “unidades (...) que ultrapassam não só os limites dos constituintes, como também da sentença” (Ilari, 1992: 84). Significa, então, que  não ficamos restritos à concepção das conjunções, advérvios e pronomes segundo a Gramática Tradicional.