DICIONÁRIO: memória lexical da sociedade

Maria Emília Barcellos da Silva

1. A informação e o conhecimento.

Vive-se a era da informação: disso dão conta os múltiplos veículos da media que encurtam distâncias temporais e espaciais na proporção em que arquitetam, cada vez mais estreitamente, a decantada "aldeia global" C fruto da técnica e da tecnologia que, a um só tempo, assenhora e avassala quem dela se aproxima ou com ela se instrumenta.  O conhecimento partilhado que sustenta os discutíveis progressos atuais e atuantes da raça humana, reconhecidamente conta com a matéria-prima da palavra para formulá-la, reformulá-la numa urgência cada vez maior, fato que exige, dos usuários, necessariamente atentos aos modismos e modificações do seu entorno, uma eficaz e pronta alteração nas suas formas de expressar o mundo, e isso envolve diretamente, tanto qualitativa quanto quantitativamente, o vocabulário que se inscreve na sua memória individual e coletiva dos falantes.

            Assim concebendo a ligação homem-realidade, decorrência da exigência de estar-no-mundo C contrato a todo instante modificado por inovações, restrições, substituições, ampliações do espectro dos signos com que se designam os componentes da sua circunstância C, o utente de uma língua sente-se impelido a garantir a relação significante-significado que, muita vez, parece ameaçada de sorte a comprometer o entendimento entre as partes que se propõem a produzir um discurso cujo tema tanto perpassa por altas reflexões filosóficas, coteja conhecimentos, aprimora ou decompõe princípios, quanto cria ou recria teorias, acena para se fazer reconhecer e, com o outro, o receptor da sua construção, propõe, candidamente, a limitação de um espaço cuja pedra-de-toque é a cordialidade em seus diferentes níveis e orientação.

 

2. A oralidade e a escrita na construção da memória linguajeira.

            O falante constrói o seu vocabulário a partir do exercício da oralidade, a qual constitui uma condição primária do ser humano, não obstante apresentar graves limitações em virtude do efêmero da sua produção.  Ainda que o humano-natural seja basicamente falante e ouvinte, o processo civilizatório e domestificador da espécie em causa transforma-o em escritor/ escrevente e leitor, porquanto o volume de informações disponíveis na contemporaneidade ultrapassa em muito a capacidade de armazenamento da memória dos utentes da língua C daí a necessidade de se escrever o que se quiser perpetuar na lembrança.

            Em que pese à complementariedade das dimensões oral e escrita da linguagem humana, esta última C a escrita C estabelece uma grande e grave fissura no universo praticamente homogêneo da fala ao expandir significativamente os horizontes algo estreitos da oralidade.  O livro C produto final da ação de escrever C passa, portanto, a se tornar não só no repositório das conquistas cognitivas, culturais e sociais, mas também no testemunho das mudanças que o homem C esse criador e ator da história das gentes C inculcou no seu percurso, ao construir, reconstruir e, não raro, destruir os cenário em que protagonizou a sua aventura vital.  Modernamente, o livro se constitui em fonte básica do conhecimento e da democratização do saber C é por ele que os homens de boa vontade e de interesse tornam-se sabedores das peripécias científicas, técnicas, filosóficas e cotidianas com as quais se invadiram os limites dos séculos, das sabedorias e das sabenças, estruturaram-se novos impérios e novas servidões.

            Nas últimas décadas deste século que está a findar, cá na terra brasilis, a TV, as redes de telecomunicações, os satélites e os computadores empurraram as fronteiras do conhecimento para o infinito das possibilidades de imaginar, ferindo de morte as utopias e ameaçando severamente, com o aríete do possível, a ficção que até então precedera todas as realizações.

            No entanto, tal como nas primeiras manifestações do homem, no inaugurar do seu status  de sapiens, nada seria operacionalizado se a linguagem não mediasse, como interface, o circunstante e a sua circunstância no afã de amalgamá-lo num todo.  Mais especificamente, nada seria viabilizado sem que se exercitasse o acervo de signos lingüísticos por meio do qual o indivíduo se expressa e é entendido, comunica, cria e recria o conhecimento que o torna herdeiro de uma cultura e cúmplice de um construto civilizatório.

            A questão da oralidade e da escrita ora alinhavada situa o problema do vocabulário quer oral, quer escrito: o oral caracterizado por um léxico ilimitado, que busca dar conta das situações do dia a dia; o escrito serve de testemunho do grande tesouro cultural amealhado no transcurso da História, reiterado pela ação de gerações sucessivas, operado para transmitir uma metalinguagem pela qual se há-de falar tanto dos textos coligidos quanto da língua que lhes serviu de código.  À escola C enquanto instituição C cabe a missão de veicular as aquisições da humanidade C e mesmo as suas perdas C dando-as a conhecer às sociedades em seus diferentes estádios de agregação.

 

3. A língua escrita como modeladora da linguagem.

            Modernamente a língua escrita é havida como a "linguagem por excelência", o penhor da estabilidade lingüística.  A oralidade C variável e mais liberal pela própria natureza C age como desviante da norma-padrão.  Dessa constatação, elicia-se o fato inconteste de que a escrita impõe sérias restrições à fala oral, exercendo a sua função de guardiã, depositório da herança idiomática que, com suas manifestações cultural e literária, alicerça e garante a continuidade histórica da língua.

            Nas sociedades tecnologicamente marcadas, o léxico da escrita é o armazenador e o veiculador do conhecimento e vem a se constituir na medida de tudo quanto se acrescenta ou subtrai ao universo em causa.  Daí o acervo lexical do idioma ser imensurável, sendo impossível determinar com precisão o número total de termos de uma língua de civilização, embora se possa arbitrar que cerca de 500.000 vocábulos possam vir a dar conta do exercício humano na atual conjuntura global.  Esse acervo é constituído por palavras novas, velhas, próprias ou emprestadas, modificadas, corrompidas ou preservadas na íntegra, participando dos recursos lingüísticos e linguajeiros dos utentes, em especial dos mais cultos e comprometidos com os avanços científicos das diferentes áreas do conhecimento.  É fácil de entender que um considerável contigente desse acervo vocabular C principalmente os que concernem às terminologias científicas C não cheguem às práticas do homem comum, que prescinde das palavras eruditas, e, quando opera os conceitos que as envolvem, emprega-os de forma banalizada, utilizando vocábulos que participam de mais de um campo de interesse, sem, portanto, aumentar a quantidade numérica das suas formas expressivas.

 

4. O papel do dicionário na sociedade.

            Segundo Lara (1992:p.20), o "dicionário representa a memória coletiva da sociedade e é uma das suas mais importantes instituições simbólicas"C vale dizer, pois, que o dicionário reflete o conjunto dos usos sociais da língua, sem escapar à condição de ser um produto lingüístico.  Novamente citando Lara (id. ibid.), o "dicionário é o resultado de uma infinidade de atos verbais que, na experiência social, se desligaram dos seus atores para passar a fazer parte do patrimônio cultural coletivo".  O dicionário reúne, ou procura reunir, o que foi dito inteligentemente no seio de uma sociedade.

            Isso posto, há que se refletir sobre a relação da norma social e o léxico e, para tanto, cumpre lembrar que a língua-padrão se subdivide em culta e subculta, incluindo, em quaisquer dos casos, toda palavra, expressão ou uso marcadamente urbano.

            A língua-padrão conta com um vocabulário rico e amplo, é mais escrita do que oralizada; opera uma sintaxe plena de recursos diversificados e funciona como modelo de correção para os seus usuários.  A língua subculta, subpadrão, conta com vocabulário menos intelectualizado e mais restrito; seus jogos sintáticos são mais limitados no que tange à variedade, desvia-se dos modelos de correção, não raro criando situações discriminatórias para seus utentes: é mais falada do que escrita.

            No que se refere especialmente a dicionários-padrão que se pautam pela língua culta, o seu intento é descrever o acervo lexical idiomático da forma mais completa possível e, só muito circunstancialmente, abordam os padrões sub-cultos ou desviantes da norma de prestígio, melhor dizendo: os usos dialetais, populares ou gíricos.  A escolha dos dicionaristas em trabalhar com a língua-padrão deve-se, especialmente, ao conservadorismo da escrita, aliado à sua valorização social, à lentidão da sua evolução, bem ao contrário da liberalidade, pouco compromisso com a perenidade e o reduzido policiamento da língua oral.

            Observado o fato de ser o dicionário verdadeiro nicho do elenco lexical da cultura, depreende-se que, enquanto obra, ele deve-se relacionar com a norma social vigente, num dado recorte sócio-temporal; dessa constatação resulta ser o dicionarista o porta-voz do seu grupo no que concerne ao registro da linguagem aceita, valorizada, prestigiada pelos parceiro idiomáticos.

            O trabalho do dicionarista deve ser o produto crítico e atento da circunstância que o circunscreve, em que os usos lingüísticos dos autores consagrados não se constituem nos únicos indicadores dos lemas a serem coligidos.  Por se propor a ser um repositório confiável do linguajar do indivíduo e do grupo a que ele pertence, o dicionarista deve ser sensível ao uso corrente, sem rejeitar o coloquialismo que inspira e condiciona certas formas expressivas.

            A descrição léxica que sustenta a consecução de um dicionário tem de contemplar as variações de uma língua viva: em primeiro lugar, há que se conceder espaço para as formas advindas da cisão geopolítica das sociedades que se servem da língua em causa C no caso brasileiro, atentar para o que é apanágio americano ou europeu; em segundo lugar, não perder de vista as variedade internas da comunidade nacional, o que vale atentar para os regionalismos e usos dialetais.

            Pretendendo comprovar a concepção de que todas as variantes registadas como normais gozam de igual importância, o dicionário busca catalogar as formas preferidas para designar um mesmo referente, numa e noutra região do País, e essas variações pupulacionais que compõem o mosaico da sociedade brasileira são descodificadas em português brasileiro.  Ademais a ampla e diversificada realidade do Brasil espera C e mesmo exige C que um dicionário da sua língua-padrão contemple as variedades diastráticas que expressem as suas peculiaridades.  Ainda que fundamente comprometido com a língua escrita, é tarefa do dicionário dar conta dos diferentes níveis de linguagem e registros socialmente comprometidos.  Dado o caráter inegavelmente didático-pragmático que porta um dicionário, ao consultá-lo o usuário espera encontrar informações sobre os usos que carregam marcas populares, vulgares, chulas, gíricas, obscenas; tais informações devem se converter em especialíssimo orientador das escolhas conscientes dos falantes para adotar formas expressivas de boa ou má aceitação social pelo desvendamento pejorativo ou meliorativo do signo a ser usado, além da indicação da raridade e erudição que decorre do emprego da palavra que vai proferir.

 

5. A canonização léxica.

            O trabalho do dicionarista assemelha-se à garimpagem de uma área fértil, dir-se-ia mesmo, fertilíssima, especialmente no que respeita a três aspectos:

a) a rivalidade social que envolve    o uso das variantes vocabulares;

b) a acolhida e grafia dos estrangeirismo;

c) a criação lexical de formações espontâneas.

 

a)      A rivalidade social que envolve o uso das variantes vocabulares: a dificuldade na seleção dessas flutuações cresce de importância em línguas ágrafas, como é o caso das indígenas brasileiras: seus vocábulos incorporam-se ao português brasileiro, exibindo recortes variados.  Os primeiros tempo da colonização revelam a incorporação generalizada dos nomes concernentes à flora, à fauna, à toponímia; esse processo, em regra, constava da adaptação divergente do significante original ou por não captar a fonêmica da língua de origem, ou por falta de correspondência com a fonologia e a fonética do português, ou por ter a língua geral de então C o tupinambá C já amalgamado outra línguas nativas, interpretando, a sua maneira, o vocábulo em aquisição.  São exemplo do que aqui se aponta os seguintes vocábulos referente à fauna, distribuídos por diferentes campos semânticos e lexicais:

Aves: anhaúma/ inhaíma/ inhuma; anu/ anum; baguari/ bagauri, mauari ou maguari; carcará/ caracará.

Crustáceos: guaiamu/ goiamum/ goiamu/ goiamum; uçá/ auçá.

Insetos: butuca/ mutuca; mangangá/ mangangaia/ mamgangaba/ mangangava; sabitu/ içabitu/ savitu/ vitu/ bitu.

Mamífero: quati/ coati; sagüi/ sagüim/ sauí/ sauim/ soim/ sonhim/ xauim.

Peixes: piaba/ piava; cará/ acará; curimatá/ curimatã/ curumbatá/ curumbatã/ grumatá/ grumatã.

Répteis: boipeba/ boipeva/ goipeva; sucuri/ sucuriju/ sucuriú/ sucuruju/ sucurujuba.

            O próprio nome dos povos aborígenes apontam para formalização imprecisa, como a seguir se exemplifica:

Caigang ou Caungan; Jupurina ou Hiupurina; Uarequena, Uarekena ou Uariquena.

 

            No entanto há que se reconhecer que também variam

(a)    formas vigentes há longa data no português: cousa/ coisa; mouro/ moiro; trajo/ traje; tras/ trans;

(b)   formas decorrentes de empréstimos mais recentes: balé/ balê/ ballet; boate/ boîte; nouveau riche/ novo rico; wisky/ uísque.

A primeira grande dúvida remete ao número de entradas dessas variantes: uma única ou tantas quantas forem as forma coletadas? (o dicionário Petit Robert opta por diferentes registros, concedendo status de entrada à forma mais freqüente e à menos, o de variante).  Convém também não esquecer o registro das variantes faladas ainda que esse nível de preocupação seja menos formal e mais flutuante do que o das escritas.

Outra questão que demanda grave preocupação é a que envolve o emprego de hífen associado a prefixos e a elementos de composição.  É certo que o tempo e a freqüência de uso de um termo levam à estabilização do seu emprego, do qual não se isenta a assimilação dos componentes, concorrendo para a unificação dos constituintes em um significante único, compacto e cristalizado, de que são exemplos: hidro-elétrica/ hidrelétrica; micro-organismo/ microrganismo.

b) A acolhida de grafia de estrangeirismos: a acolhida e inserção de estrangeirismos entre as forma expressivas do falante nativo constitui-se em requintado problema ortográfico e morfológico.  Esse óbice preocupa seriamente, porquanto, sendo o Brasil importador de tecnologias, tem de conviver com a necessidade de incorporar as terminologias que as técnicas portam e comportam.  A sociedade sem tecnologia próprias têm de se tornar, necessariamente, mais porosas aos termos estrangeiros; muitos dos vocábulos estrangeiros, hoje vigentes no português do Brasil, tornaram-se internacionais, como jeans, surf, pizza e, especialmente, os do universo da informática; no entanto nem só de vocábulos internacionais e tecnológicos vive a necessidade linguajeira dos povos da aldeia global; ela comporta modismos cuja datação é fácil de precisar: até a I Guerra Mundial, era inconteste a importação de francesismos; com a II Guerra Mundial e a mudança do eixo das decisões mundiais para os Estados Unidos da América, a língua inglesa foi guindada à condição de "língua universal" C isso, somado ao estímulo das agências internacionais de propaganda e de notícias, facilitou a penetração de anglicismos na linguagem lusofônica onde tal prática também passou a significar uma forma prestigiosa de falar.

Não raro é bem mais produtivo divulgar uma notícia empregando termos estrangeiros do que buscar uma vernacularidade para expressá-la: essa tentativa resulta, por vezes, risível, tal como foi a sugestão purista de usar ludopédio em vez de futebol.

A conjuntura sócio-econômica e tecnológica mundial orquestrou a invasão estrangeira nos limites vocabulares não só do português, como de todas as línguas nacionais, com diferenciada reação por parte dos invadidos: há os que incorporam, sem culpa ou pejo, a novidade não só fonética e fonologica mas também morfologicamente; outros repudiam vigorosamente as formas exógenas, entendendo-as como sinalizadores de dominação insuportávelC é o que se vê na França, atualmente, em que os anglicismos são repudiados com veemência.  A comunidade brasileira alinha-se com as nações que aceitam com certa bonomia as formas estrangeiras: integrados os vocábulos em causa, fortalecidos pela freqüência do uso, passam eles a gerar derivados adaptados sem maiores rebuscamento, como se exemplifica com termos da área da Informática:

 

[to abort+-ar]  = [abortar] 

[boot+-ador]   =  [bootador]

[to click+-ar]   = [clicar]

[to delete+-ar] = [ deletar]

[to scan+-ar]   = [escanear]  

O papel normalizador do dicionário cresce de valor nesse espaço: se observado o esforço despendido para dar uma fisionomia mais familiar a esses estrangeirismos, a língua não seria tão desfigurada como se demonstrou com os exemplos acima.

 

(c)    Criações lexicais em formação espontânea.

Os falantes de todas as classes sociais interiorizam as regras de formação do sistema português e servem-se delas para verbalizar as situações inusitadas em que são instados a atuar, não raro inventando palavras por desconhecerem as já registadas na memória lexical da comunidade que os acolhe e que muito bem lhes atenderiam as necessidades expressivas.

Ainda que o sistema propicie ao seu utente um rico leque de possibilidades criativas, a norma, porém, coage o usuário ao uso de realizações cunhadas pelos grupos de prestígio culturalmente congregados.

O utente pouco afeito à consulta de dicionários infringe a norma lexical mesmo sem fugir ao sistema e, não raro, a falta de status da fonte criadora é a causa da recusa de formas lingüisticamente legítimas, como é o exemplo do decantado "imexível" que carreou a má vontade dos falantes em virtude de a pessoa que o produziu, à época, estar em reta de colisão com a aceitação popular.

A freqüência e a pressão do uso de um vocábulo havido como anormal pode reverter seu curso e ser guindado ao patamar do aceitável, do normal.

O trato com jovens, especialmente os que se iniciam no curso universitário, permite conhecer formas decorrentes de curiosas criações, tal como se exemplifica a seguir:

aforante por afora; dentrice por interior; desvirtuação por desvirtuamento; reacionar por reagir; inovativa por inovadora; tudo de grátis por tudo grátis; raciocinatória por raciocinadora.

Nesses casos, o dicionário-padrão C como, por exemplo, o Aurélio C é o grande avaliador da qualidade das inovações: "estar ou não estar no Aurélio" passa a ser a linha d'água entre o que se deve/ ou não se deve aceitar" em termos expressivos dentro dos limites normativos.

 

6. A normalização dos significados.

            Das palavras de Alan Rey (Petit Robert, Prefácio, XVII), nasceu o título deste artigo: "o dicionário é a memória lexical de uma sociedade"; o projeto fundamental da obra que se propõe como dicionário é o recenseamento e a análise das significações, uma vez que o léxico porta as significações da língua, num número tal que a memória humana não tem condições de registar na sua totalidade.

            Isso posto, o dicionário se apresenta com o espaço em que se normativizam as questões de forma concernentes à ortografia e variações morfossintáticas, além de estabilizar conceitos e sentidos vocabulares operados no seio de uma dada comunidade, num dado período de tempo.  O dicionário deve ser capaz de suprir as dúvidas do usuário no que tange a significado e valor semântico do termo a empregar C amiudadamente o dicionário é evocado para dirimir questões fulcrais de entendimento em diversas situações das relações humanas.

            Um dos artifícios empregados para explicitação de um significado no dicionário é o apelo a exemplos e abonações dos lemas arrolados.  O cuidado com a evidência da significação e dos valores semânticos dos vocábulos revela-se na contextualização acurada dos termos: quanto mais presente for o propósito didático do dicionarista tão mais rico será o elenco das abonações a serem disponibilizadas para o seu consulente.

            Os exemplos coligidos pelo lexicógrafo derivam da sua experiência e erudição como falante da língua que dicionariza.  A freqüência desse uso vai precisar o emprego mais esperado da palavra C o seu lugar comum, o seu estereótipo.  Daí a pletora de exemplos dicionarizados constituir o conjunto de palavras que um grupo de falantes diz ou pode vir a dizer, observados os recortes temporais e espaciais em que eles se realizam no discurso.  Quando a exemplificação se vale de uma citação de um autor, claramente ela foge ao citado lugar comum. Lê-se no Prefácio XVIII do Petit Robert que

a citação literária é complementar do exemplo forjado; ela se apresenta como modelo superior de expressão e uma referência cultural, (...) como uma ancoragem no particular e uma aparição do indivíduo sobre o fundo dos estereótipos sociais.

 

            Além da função normativizadora que desempenha e da tarefa de comportar a memória das sociedades, o dicionário pode definir parâmetros de sentido, ao apontar e resgatar os valores semânticos incorporados pelos falantes de uma comunidade numa dada época.  Registados em dicionário, esses valores tendem a se fixar no uso, na medida em que os consulentes os ativam nas práticas discursivas, consolidando-os como recursos válidos para a expressão das idéias que, em diferentes graus, pelo milagre renovado da capacidade de dizer, permitem a interação dos homens na árdua tarefa de construir a sua realidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, L. F. "Criações e recriações de palavras em redações de universitários e pré-universitários".  DELTA, v.5, n.1, 1989. p. 23-25.

BIDERMAN, M.T.C. Dicionário contemporâneo do português.  Petrópolis, Vozes, 1992.

LARA, L. F. "Sociolinguística del Diccionario del Español de México".  International Journal of the Sociology of Language, 96, 1992. p. 19-34.

PETIT ROBERT. Paris, Le Robert, 1994.

RODRIGUES, A. D. "Contribuição para a etimologia dos brasileirismos". Revista Portuguesa de Filologia, 1958/59. p.1-54.