ANIMIZAÇÃO, PERSONIFICAÇÃO E ZOOMORFIZAÇÃO:UM ESTUDO DO VOCABULÁRIO DE PESCADORES ARTESANAIS

Vanessa Sant’Anna Tavares
Katia Carlos Alves
Orientadora: Maria Emília Barcellos da Silva

 INTRODUÇÃO

 O objetivo deste trabalho é fazer um levantamento e posterior análise da animização, da personificação e da zoomorfização no vocabulário dos pescadores do Norte-fluminense, cogitando do teor dos elementos a serem estudados.

Assim, no trabalho, analisar-se-á a capacidade que os pescadores têm de dar características ou ações de seres humanos a outros seres (personificação), de seres animados a seres inanimados (animização), e ainda de animais a seres animados ou inanimados (zoomorfização).

Esta pesquisa é realizada a partir dos dados eliciados do corpus do Projeto APERJ ¾ Atlas Etnolingüístico dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro, cujos informantes são pescadores artesanais que atuam na região do Estado, analfabetos ou semi-alfabetizados, todos do sexo masculino.

As entrevistas são gravadas in loco e distribuídas por três faixas etárias (A- de dezoito a trinta e três anos; B- de trinta e quatro a cinqüenta e cinco anos e C- de cinqüenta e seis anos em diante). Logo após, são arquivadas sob forma de inquéritos transcritos grafematicamete.

 

 

METODOLOGIA

 

Foram recolhidos os dados inerentes às três faixas etárias, de oito localidades do arquivo básico, nas ambiências marítima, lacustre e fluvial, assim como uma localidade do arquivo complementar: Ilha do Governador (IGV).

Analisou-se as lexias que, num dado contexto, exemplificavam as figuras de linguagem em epígrafe. Para isto, procedeu-se à organização de tabelas que melhor organizassem a visualização dos valores denotativo e conotativo de tais expressões, bem como do sema que possibilitou esse processo. Os contextos em que estavam inseridas as expressões também contribuem com o esclarecimento de qual a situação em que o informante produziu tais enunciados.

 


DESENVOLVIMENTO

 

As palavras são compostas por um conjunto de semas denominado semema pois, segundo Maria Helena Marques, “o significado de uma palavra é constituído de componentes semânticos mínimos (semas) relativamente constantes, que em seu conjunto, definem um conceito, distinguem conceitos entre si e estabelecem relações conceituais entre as palavras, no plano da substância e da forma de conteúdo”.

O significado da palavra é portanto, dado não por um só sema mas, pelo seu conjunto. Com o acréscimo de mais um sema, o significado muda ou se modifica tenuamente.

Os processos de animização, personificação e zoomorfização confirmam a teoria exposta acima.

As lexias e expressões que compõem o corpus do trabalho são as seguintes:


 


ANIMI-ZAÇÃO

DENOTA-TIVO

CONOTA-TIVO

SEMA

[+animado]

O barco vive

(ITA 001 B)

“existir; sustentar-se; estar com vida; dedicar-se”

o barco ainda está bom para navegar

 

aptidão

 

Boca da rede

(ATA 024 B)

“qualquer abertura ou corte que dê idéia de boca; lábios.”

parte que indica a abertura superior da rede.

ABERTURA

olho da tarrafa

(ATA 024 B)

vista; abertura circular ou oval.”

nó da rede com formato oval

ORIFÍCIO CIRCULAR

A canavieira tem um pescoço comprido

(FST 146C)

“parte do corpo entre a cabeça e o tronco; colo”

parte superior da planta com forma característica.

forma alongada

tabela 1: processo de animização. 


 


PERSONI-FICAÇÃO

denota-tivo

conota-tivo

sema

[+ humano]

O tempo é esperto

(ITO 035 C)

“inteligente, vivo, enérgico, ativo”

quando o tempo é capaz de enganar o pescador

ludíbrio

A corvina ronca

(ITA 103 C)

“respirar com ruído durante o sono, ressonar”

quando o peixe faz um barulho característico

ruído

O barco é leviano

(SJB 022 C)

“imprudente; procede irrefletidamente; sem seriedade”

quando o barco não obedece ao pescador

imprudên-cia

O peixe passeia

(FST 146 C)

“ir a determinado lugar; mover; deslizar; dar passos”

quando o peixe sai tranqüilamente de um lugar para outro.

 

movimento sutil

O vento disse “eu estou aí” (=cheguei)

(IGV 134 B)

“Expor; exprimir por palavras; comunicar”

quando há a indicação de que o vento está chegando

anuncia-ção

O cação desmaia

(FST 146 C)

“perder os sentidos, obscurecer, desanimar-se”

quando o peixe morre

desfaleci-mento

tabela 2: processo de personificação.



ZOOMOR-FIZAÇÃO

DENOTA-

TIVO

CONOTATIVO

SEMA

[+ animal]

A âncora tem garra

(ATA 024 B)

“unha; dedo; mão; curva de feras e aves de rapina.”

é a parte da âncora que faz prender o barco 

capacidade de apresamento

Os meninos são chamados pato do mar ou gaivota.

(ITA 103 C)

“espécies de aves que se alimentam de peixe”

garotos que buscam o peixe na beirada da praia ou junto ao barco”

 

busca pelo peixe

Essa é a parte do remo chamada de pata

(ITA 001 B)

 

 

 

 

 

“pé de

 

parte do remo que puxa a água

 

função

Eles não gostam de anzol de pata aqui

(ITA 001 B)

animal”

anzol cujas pontas assemelham-se à pata de um animal

 

formato

 

No rodamoinho de vento tem uma asa.

(FST 146 C)

“membro das aves; parte destinada a produzir sustentação aerodinâmica”

capacidade do

rodamoinho de levantar tudo

 

 

susten-tação

tabela 3: processo de zoomorfizaçã.


 

Quanto ao processo de animização, foram analisadas quatro expressões que, metaforicamente, passaram a ter características ou ações de seres animados. Quando o pescador utiliza a expressão “a canavieira tem um pescoço comprido”, por exemplo, ele está se referindo ao formato alongado que se observa, em geral, em uma parte do corpo de um ser vivo; isto quer dizer que o sema em comum entre o pescoço e a parte superior da canavieira é “forma alongada”.

Ainda quanto ao processo de animização, observam-se expressões como “olho da tarrafa” e “boca da rede”, por exemplo, em que a primeira expressão possui o sema “orifício circular” em comum com o olho dos seres vivos. Já no segundo exemplo, tem-se o sema “abertura” em comum tanto na abertura da rede quanto no órgão inicial do aparelho digestivo dos seres vivos (a boca).

As lexias que exemplificaram a personificação confirmam a assertiva de Rocha Lima que conceitua essa figura de linguagem como a “atribuição a seres inanimados de ações, qualidades ou sentimentos próprios do homem”. Além das já citadas, outras são igualmente utilizadas pelos informantes, como “mar violento, bravo, zangado” (ITO 035c ) em que se percebe claramente o traço “violência” como comparação das atitudes do mar com sentimentos e ações do homem.

Foram explorados, também, exemplos da figura de linguagem conhecida como zoomorfização, dentre os quais estão os seguintes sintagmas: “os meninos que ficam pedindo peixe aí na beirada são conhecido como ‘pato do marou ‘gaivota’”(ITA 103 C) em que o sema em questão é “busca pelo peixe”.

 


CONCLUSÃO

Percebe-se, a partir da análise do corpus, que a figura de linguagem mais produtiva é a da personificação. Os termos que recebem um sema [+humano], em geral, são aqueles que participam intensamente do cotidiano desses indivíduos, dependendo a sua subsistência, por vezes, desses elementos (caso do barco, do peixe pescado e dos tipos de vento). A origem humilde desses profissionais tende, portanto, a supervalorizar tais elementos a ponto de considerá-los humanizados.

É possível reafirmar o postulado de Dubois quando o autor conceitua personificação como aquilo que “consiste em fazer de um ser inanimado ou abstrato uma pessoa real, dotada de sentido e de vida”.

É importante ressaltar, também, a lição de Maria Helena Marques de que “os semas podem ser específicos, genéricos ou virtuais. Os semas específicos e genéricos definem a denotação de uma palavra; os semas virtuais, que se atualizam ou não num determinado contexto, definem valores conotativos”.

Observou-se, relativamente ao processo de zoomorfização, que a lexia “pata” apresenta-se polissemicamente em dois diferentes contextos. No primeiro, “pata do remo”, o sema a ser considerado é a “função”; já em “anzol de pata”, o sema atribuído ao anzol é o “formato” original da pata do animal.


BIBLIOGRAFIA

 

CÂMARA JR, Joaquim Mattoso. Dicionário de Lingüística e Gramática. 1992.

DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de lingüística. São Paulo, Editora Cultrix, /1973/.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, /1996/, 1838p.

LIMA, Rocha. Gramática Normativa da língua Portuguesa. José Olympio . Editora: Rio de Janeiro, 1972.

MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à Semântica. 3. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, /1996/.