ANÁLISE ESTILÍSTICA DO POEMA CRIANÇA, DE CECÍLIA MEIRELES

Alessandra Almeida da Rocha (UERJ)

Criança

 

Cabecinha boa de menino triste,

de menino triste que sofre sozinho,

que sozinho sofre, - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,

que de sofrer tanto, se fez pensativo,

e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo,

que não teve nada, que nào pediu nada,

pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo,

que do alto se inclina sobre a água do mundo

para mirar seu desencanto

Para ver passar numa onda lenta e fria

a estrela perdida da felicidade

que soube que não possuíria.

No primeiro verso da primeira estrofe, o “eu” lírico inicia a descrição de um menino de maneira afetiva,quando coloca o substantivo “cabeça” no diminutivo “cabecinha”, reforçado, logo em seguida, pelo adjetivo “boa”. A palavra “cabecinha” é uma metáfora para a  personalidade, ou seja, um menino de boas atitudes. Apesar disso, o menino é um ser triste.

No primeiro e segundo versos  ocorre uma epanadiplose, pois este é iniciado com a expressão que finaliza  o anterior, observemos:

Cabecinha boa de menino triste,

de menino triste que sofre sozinho,

Neste verso o pronome “que” dá uma idéia de continuidade das qualidades desse menino.

Novamente, no terceiro verso, existe uma epanadiplose, com uma pequena inversão sintática não existente no verso anterior, para reforçar a vida sofrida e solitária desta criança. O uso do travessão dá uma pausa e uma intensidade ao verso para mostrar a resistência da criança, como vemos:

que sozinho sofre, - e resiste.

No primeiro verso desta segunda estrofe é ressaltado, mais uma vez, a atitude da criança pelo uso da anáfora, com a alteração de adjetivo, que passou para “ausente”, sugerindo mudança de estado, como se vê:

Cabecinha boa de menino ausente

A característica do sofrimento é retomada no segundo verso da segunda estrofe e, por isso, fez com que o menino se tornasse um ser reflexivo sobre a sua vida, a sua existência. Neste momento, lembra-nos a própria Cecília que, desde criança, aprendeu a conviver com a morte (seus pais, seu primeiro marido), a dor, a solidão, o silêncio, o significado da existência, sem traumas, mas de maneira realista, como é dito pela própria poetisa:

...Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenininha, uma tal intimidade com a mote que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno (...)     (CM, LC, pág.1)

  

Podemos pensar que o menino do poema é uma metáfora da própria  vida de Cecília quando criança.

No terceiro verso da mesma estrofe, o “eu” lírico descreve o menino como perdido em seus sentimentos, pois por refletir sobre si mesmo, não sabe o que sente. Isto é reforçado pelo uso das reticências:

e não sabe mais o que sente...

Na terceira estrofe, primeiro verso, se usa a anáfora e o adjetivo utilizado, neste instante é “mudo”, dizendo-nos que ele, o menino, está sem palavras, sem ação, diante do que vive e sofre:

Cabecinha boa de menino mudo

O “eu” lírico/narrador completa, no segundo verso, a carência emotiva e material do menino, acentuado pelo uso das palavras “não” e “nada”, mostrando que ele tinha receio de perder as poucas coisas boas que a vida lhe deu (último verso da terceira estrofe).

Nesta estrofe aparecem as antíteses entre as palavras “ter” x “perder”; “tudo” x “nada”, retratando a oscilação que ocorre em nossa vida, mais voltada para o lado material, enquanto o espiritual é deixado de lado. Mas, na verdade, tudo é passageiro e efêmero e deixamos de aproveitar os verdadeiros sentimentos.

Na quarta estrofe, o menino transformou-se em santo, em anjo, indicando que ele está morto e o seu espírito vai analisar sua vida e passagem terrestre. O recurso da anáfora  é utilizado.

O “eu” lírico/narrador  nos diz  que o  menino/anjo, do alto, podemos pensar, então, em inocência e céu, se põe a observar a correria do mundo, representada pela “água” e a sua tristeza, angústia, enquanto pertencia a esse mundo carnal (segundo e terceiro versos da quarta estrofe) .

O símbolo da “onda” é usado no primeiro verso da  última estrofe, sugerindo um ritmo lento ao verso e também ao poema, e assim como a conscientização que, durante a vida, ele nunca fora feliz e que a felicidade é efêmera, encerrando o poema melancolicamente.

O tema do poema é a infelicidade da vida, a sua transitoriedade, anunciada a todo instante pela morte, encarada como fato natural e verdadeiro. O poema é construído com cinco estrofes, cada uma com três versos, podendo sugerir as cinco fases do ciclo humano.

Ocorrem rimas alternadas entre “triste” (primeiro verso, primeira estrofe) e “resiste” (terceiro verso, primeira estrofe), indicando a resistência do menino triste em viver; “ausente” (primeiro verso, segunda estrofe) e “sente” (terceiro verso, segunda estrofe), mostrando que, apesar da sua ausência, ele não deixa de sentir as coisas; “mudo” (primeiro verso, terceira estrofe) e “tudo” (terceiro verso, terceira estrofe), dizendo que, na sua mudez, tem tudo o que conquistou; “santo” (primeiro verso, quarta estrofe) e “desencanto”(terceiro verso, quarta estrofe), no qual santificou-se pela sua vida desencantada; “fria” (primeiro verso, quinta estrofe) e “possuiria” (terceiro verso, quinta estrofe), na qual a possessão da fria felicidade, é inútil.

Analisando as rimas vemos o trabalho de construção do poema, pela autora, nos detalhes fonéticos.

Para reforçar, utiliza assonâncias de /e/, /i/, /o/, como nesse verso:

de menino triste que sofre sozinho

E aliterações de /q/, /n/, /d/, em:

que não teve nada, que não pediu nada

Nos dois recursos utilizados faz-se perceptível a força de sua tristeza nas assonâncias e uma forte afirmação sobre a sua falta com as aliterações.

Podemos afirmar que todo o poema é construído de cavalgamentos, no qual o “eu” lírico narra / declara suavemente a passagem do menino pela terra e sua passagem ascensional para outro plano, verso por verso, estrofe por estrofe.

A poetisa usa formas verbais que reforçam as imagens visuais como, por exemplo, em “vermos”.  As palavras são “triste”, “sofre”, “pensativo”, “mudo”, “água”, “onda” e as imagens tácteis nas palavras “água”, “onda”, “fria” são sugestivas para que possamos sentir as mesmas sensações do menino. Cecília constrói um poema marcado pela sinestesia com “onda” e “água”, que nos sugere a mútua troca de sensações entre o ser humano e o mundo. Nota-se a gradação na figura do menino que torna-se um santo: “triste”; “ausente”; “mudo”; “santo”. Ou seja, passa da carne para o espírito.

O título escolhido para esse poema Criança simboliza a imaturidade do ser humano  para a vida   pós - morte, para qual ninguém nunca está preparado, pois somos inocentes para o que virá, visto que a vida  e a felicidade são efêmeras, não se pode voltar atrás. Para isso, devemos conservar a pureza, como a de uma criança.

Bibliografia:

a) Obras da autora:

MEIRELES, Cecília. Viagem; Vaga Música.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (Coleção Poesis).

b) Obras sobre a poesia e a vida da autora:

AZEVEDO FILHO, Leodegário. Poesia e Estilo de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.                        

CAVALIERI, Ruth Villela. Cecília Meireles: o Ser e o Tempo na Imagem Refletida. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC, 1983.                                                                                                                     

CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. São Paulo: Cultix, 1978. 

DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: O Mundo Comtemplado. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967.

______. Cecília Meireles: poesia, por Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Agir, 1974.

LAMEGO, Valéria. A Farpa na Lira: Cecília Meireles na revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1996.

MELO, Gladstone Chaves de. Ensaios de Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

MONTEIRO, José Lemos. A Estilística. São Paulo: Ática, 1991.

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Texto e linguagem).

TAVARES, Hênio. Teoria literária.  4a ed. Lisboa: Bernardo Álvares S.A, 1969.