A GRAMÁTICA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

 

TADEU LUCIANO SIQUEIRA ANDRADE (UNEB)

INTRODUÇÃO

 

Os manuais de Gramática Tradicional descrevem a língua portuguesa no seu estágio presente com seus mecanismos e usos atuais.

Essa abordagem pertence ao âmbito da sincronia, ou seja, a descrição da língua simultânea ao tempo.

Tal processo não é o único a que está sujeito um idioma. Todo idioma se desenvolve e se transforma no decorrer do tempo, e, ao invés de estudá-lo no estágio em que se apresenta num dado momento, pode-se estudá-lo nas transformações pela quais passou através da história.

Tal preocupação pertence ao domínio da gramática histórica.

Em que consiste o estudo da gramática histórica para o estudo da Gramática Tradicional?

Sabe-se, portanto, que a G.T.[1] apresenta regras, exceções e questionamentos que, nem sempre, ela mesma consegue explicar.

Isso ocorre devido à não – abordagem histórica da língua.

Quem não ouviu ou ouve questionamentos como estes:

Por que as palavras proparoxítonas compõe um número reduzido no léxico português?

Qual a explicação morfológica para as desinências de gênero e número no português?

Por que os gramáticos condenam o verbo auxiliar TER correlato com HAVER?

Por que há, no português, as formas sintéticas e analíticas?

Consultando os manuais gramaticais, encontram-se respostas para os questionamentos, porém tais respostas, às vezes, não convencem os questionadores.

Por outro lado, analisando a G.T. numa perspectiva histórica, encontrar-se-ão respostas eficazes:

Na passagem do latim para o português, as vogais postônicas mediais do sofrerem síncope, isto devido à tendência da língua evitar as proparoxítonas.[2]

Ex: ver(i)tate > verdade – o i medial desapareceu.

No latim vulgar, havia uma tendência para neutralizar as declinações. Essa tendência foi se acentuando até que nas línguas românicas, as declinações desapareceram por completo. Na Península Ibérica, o caso que sobreviveu foi o acusativo, é dele que se originaram quase todas as palavras portuguesas, daí o nome caso lexicogênico, ou seja, criador do léxico. Do acusativo latino, herdamos o S como desinência do plural; o O como desinência do masculino e A como desinência do feminino.[3]

Na Península Ibérica, usava-se mais o verbo auxiliar TER(latim TENERE) no lugar de HAVER(latim HABERE)[4]

O latim é uma língua sintética, isto é, exprime as funções das palavras por meio de flexões, ao passo que o latim vulgar e as línguas neolatinas são analíticas.[5]

Considerando os questionamentos da G.T. e as explicações da gramática histórica, este artigo abordará a morfologia portuguesa do substantivo e do verbo, apontando algumas transformações que tais classes sofreram na passagem do latim para o português.


MORFOLOGIA NOMINAL

 

“Na morfologia, no sistema flexional, mostra-se ainda a língua portuguesa muito rica”(MELO, 1975. 165)

O português apresenta um plural sigmático, isto é, marcado pela desinência S. Por que o S marca o plural no português?

Tem-se uma causa histórica: os substantivos e os adjetivos da língua conservam, quase na sua totalidade, o acusativo latino, caso que sobreviveu na Península Ibérica.[6]

 

Exemplificando: Latim Português

ros as rosas

amicos amigos

 

Percebe-se nos exemplos a permanência do S tanto no latim quanto no português.

Como é o plural dos substantivos terminados em AL, EL, IL, Ol, UL?

Muda-se o L por is, conforme diz a G.T.

Entretanto, a verdade é outra:

As terminações acima provêm das terminações latinas ALES, ELES, ILES. OLES, ULES. Com a queda do L intervocálico e a passagem do E átono para I, resultaram as terminações AIS, ÉIS,ÓIS UIS no português.

Observe o exemplo:

Latim Português

animales > animes > animais

fossiles > fossees > fósseis

fideles > fiees > fiéis.[7]

 

Por que é uma exceção o plural de CÔNSUL e MAL?

COUTINHO(1970) explica que cônsul tem como plural cônsules porque a palavra foi introduzida no português via erudita, e males talvez para não confundir com o adverbio mais.

Os substantivos terminados em ÃO tem como plural ÕES, havendo alguns que aceitam mais de uma forma.

Ex: anões e anãos

verões e verãos

Na perspectiva histórica, percebe que tal terminação(ão no português) originou-se das terminações latinas ANU, ANE,ONE.[8]

Ex: pagano pagão

Pane pão.

Em relação à duplicidade de plural das palavras terminadas em Ão, o estudo histórico afirma que isso acorreu devido ao processo de analogia.[9]

Os substantivos terminados em M faz - se o plural trocando-se o M por NS, definição da G.T.

Ex. Jovem > jovens

Fim > fins

Jejum > jejuns

 

Analisando este plural pelo ângulo histórico, nota-se que tais palavras provieram do acusativo latino.[10]

Ex. Juvenes > jovees > jovens

Fines > fies > fins

Jejunos > jejuos > jejuns.

 

Em relação ao grau do substantivo, é necessário um estudo mais detalhado no que se refere ao diminutivo, uma vez que grande parte dos manuais gramaticais traz o ZINHO como um sufixo de diminutivo.

O sufixo INHO vem do sufixo latino INU, que ocorrendo a palatização,[11] ocorreu no português a terminação inho, valendo enfatizar que Z é um elemento de ligação, não faz parte do sufixo, como os manuais da G.T. afirmam.

A flexão de gênero em português é caracterizada pelas desinências A para o feminino e O para o masculino. “Resultaram estas desinências do acusativo U(M) da segunda declinação, formando geralmente nomes masculinos e do acusativo A(M) da primeira declinação, cujos nomes pôr via de regra eram femininos” ( COUTINHO, 1970:233).

 

EX: Latim Português

Templu (m) templo

Rosa(m) rosa

Um – desinência do acusativo: UM > U > O. ( masculino )

Am - desinência do acusativo: AM > A > A. (feminino )

 

No entanto, há no português nomes terminados em A, que são muitas vezes de origem grega, como cometa e planeta ,terminadas em A, mas são masculinos, como também cor, couve, dor, flor, fonte que eram masculinos no latim, mas passaram para o nosso idioma como femininos. Ocorrendo o contrário em paul, pez e vale que etimologicamente eram femininos, no entanto, tornaram-se masculinos na língua portuguesa.


MORFOLOGIA VERBAL

 

À proporção que o latim ia sofrendo a influência de outras línguas, graças à expansão do Império Romano, apresentava transformações, que na maioria das vezes visavam à simplificação.

Com o desaparecimento do futuro imperfeito do indicativo; do futuro do imperativo; do pretérito imperfeito do infinito; do particípio presente; do futuro do particípio presente como forma verbal e outros, ocorreram falhas no que se refere aos verbos.

Para suprir essas falhas, as línguas românicas, criaram novas formas verbais, daí a denominação criações românicas:[12]

1. o futuro do indicativo

2. o condicional

3. os tempos compostos

4. o infinitivo pessoal.

 

O Futuro do Indicativo

Para dar clareza à ação verbal, criou-se a construção perifrástica, formada pelo verbo principal e o indicativo de verbo hebere ( haver em português )

Latim português

Amare + habeo amar + hei : amarei

Amare + haves amar + hás : amarás

Tendo em vista a formação acima, LUFT (1987) considera o fururo indicativo no português como uma locução verbal, como um modo e não como um tempo.[13]

O Condicional

Este tempo era expresso no latim através do perfeito o subjuntivo. Pelo processo de analogia, as línguas românicas criaram o condicional, através de uma construção perifrástica, construída pelo verbo principal do verbo habere.

Ex. amare + habebam amar + havia – amaria( português)

 

Os Tempos Compostos

Surgiram no início com o auxiliar habere, depois com tenere e o particípio passado de outro verbo, daí em português as duas construções:

Ele havia amado a pátria.

Ele tinha amado a pátria.

 

Tais construções predominaram no latim vulgar, preenchendo as lacunas ocasionadas pelas transformações ocorridas com os tempos verbais na romanização.[14]

 

Formas Passivas Analíticas

 

O português herdou também do latim vulgar as formas passivas analíticas em vez da sintética.

No último período do latim vulgar, as formas sintéticas desapareceram totalmente.

Para substituir a voz passiva sintética que já tinha desaparecida, criou – se uma locução verbal, ou seja, uma perífrase a exemplo da que era usada na língua clássica, com a seguinte estrutura: Verbo ESSE ( Português SER ) + o particípio passado de outro verbo.[15]

Dessa forma, em lugar de littera scribitur, passou-se dizer littera scripta est (apud. COUTINHO. 1970)

Intermediário a esses dois usos, houve a construção passiva com o SE. Esta última construção explica a voz passiva sintética ou promocional na língua portuguesa.[16]

Infinitivo Pessoal

Outra criação românica que a G.T. não explica como aconteceu no português; mostra apenas como usá-lo:

Para viveres bem é preciso que ames(tu)

O infinitivo pessoal é usado em português quando na oração tem sujeito claro(definição do uso do Infinitivo pessoal pela G.T.)

CARVALHO e NASCIMENTO(1975) mostram três teorias que explicam a origem do infinitivo pessoal no português:

A primeira teoria(Meyer Lubke) atribui origem analógica ao infinitivo flexionado. Assim como no futuro do subjuntivo. Se diz amar, amares, amar...

A Segunda teoria(Leite de Vasconcelos) é também analógica, como nas construções:

Ter saúde é bom.

Ter ele saúde é bom.

Teres tu saúde é bom.

Observando essa construção, percebe que tal modalidade teria sido ajudada pela flexão do futuro do subjuntivo nos verbos fracos.

Já a terceira teoria(defendida pelo um grande número de filólogos) sustenta que o infinitivo pessoal provém diretamente do pretérito imperfeito do subjuntivo latino.[17]


CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A língua está sujeita às transformações que ocorrem no decorrer do tempo, uma vez que ela é dinâmica e está em constantes mudanças.

Assim seria impossível nos chegar intacta, sem sofrer a ação do tempo; e as transformações nem sempre estão presentes na memória dos falantes.

É importante que se tenha conhecimento dos fenômenos lingüísticos que causaram a evolução dessa mesma língua, partindo da origem à atualidade.

Nem sempre a G.T. explica os fatos lingüísticos do ponto de vista diacrônico. Muitas explicações sem inseri-las no contexto histórico ficam esvaziadas de significação.

Analisando a língua numa perspectiva histórica, com certeza, encontrar-se-ão respostas para os inúmeros questionamentos dos usuários acerca dos mecanismos lingüísticos, tais como as formas sintéticas dos adjetivos melhor, pior, maior e menor que são resquícios do latim culto; o intensificador mais, que é do latim MAGIS; os adjetivos correspondentes às locuções adjetivas que tiveram origem no latim; as formas analíticas e sintéticas, a primeira criação românica e a Segunda, do latim clássico, como também os metaplasmos, ou seja, as transformações que ocorreram na transição do Latim para o português.

Assim, o ensino da gramática acompanha o processo evolutivo da língua, os questionamentos aos poucos terão respostas eficazes, e no “túnel do tempo”, notar-se-á que o que hoje é considerado “errado”em outros tempos mais remotos era correto.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALI, M. Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1971.

ALMEIDA, Napoleão Mendes. Gramática Latina. São Paulo: Saraiva. 1981.

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1980.

CARVALHO, Dolores Garcia & NASCIMENTO, Manoel. Gramática Histórica. São Paulo: àtica, 1975.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970.

LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: José Olímpio. 1994.

LUFT, Celso Pedro. Moderna Gramática Brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1985.

MELO, Gladstone chaves de. Iniciação à Filologia e à Linguística Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica. 1975.

NUNES, J. Joaquim. Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora.

 



[1] Neste artigo, a abreviatura G.T. reporta-se à Gramática Tradicional da Língua Portuguesa.

[2] Para melhor compreensão, vide Vocalismo e Metaplasmos – Gramática Histórica. Ismael Lima Coutinho. 1970. Livraria Acadêmica. Pp. 101 e 142.

[3] Caso lexicogênico – acusativo latino – recebeu tal denominação porque deu origem ao léxico português, como nos dizem Dollores Garcia, J.J. Nunes e Ismael Lima Coutinho.

[4] O latim clássico usava o verbo HABERE(português haver) enquanto o latim popular usava o auxiliar TENERE(português TER). Na Penísula Ibérica, foi adotada a forma TER.

[5] O processo sintético foi usado no latim clássico, devido às declinações enquanto que o processo analítico foi usado no latim vulgar, constituindo assim uma criação romântica, coforme se verifica em morfologia histórica.

[6] C.f. Iniciação à filologia e à Lingüística Portuguesa. Gladstone Chaves de Melo – parte especial – capítulo I. Livraria Acadêmica 1975. P. 165.

[7] Para melhor compreender este processo deve-se consultar o estudo do Consonantismo – Gramática Histórica, de Ismael Lima Coutinho. Livraria Acadêmica – 1970.

[8] Idem.

[9] Analogia – processo que muito influenciou na formação do português.

[10] C.f. consonantismo – Consoantes mediais latinas. Compênio de Gramática Histórica Portuguesa – (Fonética e Morfologia) J.J. Nunes. Livraria Clássica – Lisboa, como também Dolores Garcia e Manoel Nascimento. Gramática Histórica. Ática. 1975.

[11] Palatização – processo que ocorreu na passagem do latim para o Português, transformação de um ou mais fonemas em um palatal.

Ex. N(e – i) + vogal > nh – aranea > aranha

L (e – i) + vogal > lh – juliu > julho

pl, cl, fl > ch – clave > chave

masculu > macho.

[12] No que se refere à conjugação dos verbos nos tempos do português, verifica-se uma compatibilidade entre as formas latinas, exceto as formas em que houve mudanças com o desaparecimento do T final e o abrandamento do B em V. amat – ama (presente)

amabas – amavas (pretérito)

[13]Para Luft, os chamados futuros são locuções verbais de infinitivo + haver mascaradas: cantar hei, cantar hia (cantarei, cantaria), para ele, tais tempos não são tempos, mas sim modos, uma hipótese, ou decisão no aspecto semântico.

 

 

 

[14]O uso generalizou-se que na Península Ibérica, predominou o uso do auxiliar tenere por habere, donde resultou que no, português, os tempos compostos, são formados pelo auxiliar Ter e o particípio.

[15] Para melhor se compreender este processo, precisa-se verificar a forma sintética do latim culto. Ambar – era amado/ amabaris – eras amado/ amabatu – era amado.

[16] Pôr a voz passiva sintética ou pronominal ser uma criação romântica, talvez justifique o uso popular na construção: Vende-se casas, não observando a concordância prescrita pela norma culta.

[17] Compare o imperfeito do subjuntivo latino com o infinito pessoal português;

amarem – amares – amaret – amaremus – amaretis – amarent.

Amar amares – amar – amarmos – amardes – amarem.