DEPOIMENTO SOBRE UM CORPUS DO SÉCULO XVIII E A TESE DA “VITÓRIA” DA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

 

Afrânio Gonçalves Barbosa (UFRJ)

Luiz Palladino Netto (UFRJ)

 

1.     DEPOIMENTO

SOBRE UM CORPUS DO PORTUGUÊS DO SÉC. XVIII

O projeto sobre o qual será dada uma notícia nesta comunicação – o Projeto Brasil Colonial – corporifica um desdobramento, mais especificamente, um subprojeto, do conhecido Projeto de Estudo da Norma Urbana Lingüística Culta (NURC-RJ).

O referido Projeto Nurc, por sua vez, vincula-se a um projeto coletivo mais abrangente e ambicioso, implementado em âmbito nacional e ora em curso: o Projeto para a História do Português Brasileiro. Tal projeto visa a levar a efeito investigações de caráter programático com o intuito de traçar linhas para uma renovada história do português brasileiro. Para tanto, compete ao projeto, entre outras atribuições, organizar um corpus diacrônico do português brasileiro; estabelecer normas de edição filológica dos materiais; fornecer hipóteses interpretativas para mudanças gramaticais; propor achegas para uma história social do português brasileiro.

Trata-se, com efeito, de um projeto que se estrutura a partir do saber acumulado em projetos coletivos anteriores, como o Peul/ RJ, o Nurc/ Brasil, o Varsul e o Projeto Gramática do Português Falado. Surge, também, mediatizado, em bases teóricas, a partir do tão propalado “casamento” entre a sociolingüística variacionista e o gerativismo que a partir dos anos 80 faculta a reativação dos estudos em perspectiva histórica, num plano interdisciplinar. Para Mattos e Silva (1998:23), essa revalorização dos estudos histórico-diacrônicos no Brasil, não obstante, “se deve sobretudo a uma motivação interna, nossa, que é a questão lingüística da língua que usamos, o português do Brasil”. A partir de então, a chamada “România Nova”, na dicção de Castilho (1998:6), é revisitada pelos especialistas, sobremaneira no campo sintático.

A vertente carioca do Projeto para a História do Português Brasileiro, em termos mais precisos, o projeto aqui apresentado, está em curso atualmente na Faculdade de Letras da UFRJ.

O objeto de análise é constituído por uma série documental específica: cerca de 400 cartas redigidas no século XVIII, no Brasil e no exterior, como em Lisboa, Coimbra, Setúbal, Cork, Bissau, endereçadas a um mesmo destinatário. Outros materiais, oportunamente, serão integrados ao projeto. Segundo Houaiss, apud Mattos e Silva (1998:25), “o português brasileiro pelos fins do século XVIII nascia com diversidade”, daí a importância do recorte lingüístico em análise.

Como tarefa preliminar, para a edição do corpus, impõe-se a transcrição de grande parte do material, ainda inédito. Para a concretização deste passo, é imperioso que os documentos resultem de um metódico e integrado processo de leitura filológica, evitando-se a posteriori que “aproximações lingüísticas viáveis” e aquelas, imprescindíveis e correlatas, de caráter sócio-histórico assentem em bases não-fidedignas. A lição de Labov (1996:45), por vezes invocada, é judiciosa: cabe ao investigador, na sua empresa de interpretação, “hacer el mejor uso posible de datos deficientes”.

Convém ressaltar, neste particular, que as normas adotadas são aquelas preparadas por uma comissão designada para tal fim, sob a presidência do Prof. Heitor Megale – “Normas para transcrição de documentos manuscritos” –, durante o II Seminário para a História do Português Brasileiro, realizado de 10 a 15 de maio de 1998, em campos do Jordão. Os critérios perfilhados prevêem uma “leitura conservadora” dos materiais, com limitadas intervenções do responsável pela transcrição.

É propósito sistemático do projeto estabelecer uma interface com a historiografia, tentando consubstanciar uma descrição mais abalizada de nossa língua. Com efeito, interessa aos participantes da pesquisa traçar articulações entre a história geral do português brasileiro e histórias geograficamente específicas; reunir subsídios de leitura paleográfica; considerar de perto questões de demografia; buscar apoio na história social para avaliar a relação do sujeito com a língua; avaliar problemas ligados à escolarização da época; considerar a penetração da língua escrita; refletir sobre questões de norma lingüística e fatos sociais; verificar evidências relativas aos contatos lingüísticos (por exemplo, a partir da teoria do contato, na feição que lhe deu Weinreich). Tais confluências são inadiáveis. Conforme ensina Mattos e Silva (1998: 23), “uma história do português brasileiro terá como objetivo fundamental interpretar o passado lingüístico e sócio-histórico do Brasil, em que, na segunda metade do século XVIII, a língua de colonização se tornou hegemônica e oficial”. Isto pressupõe trabalhos em vários campos, ainda na esteira de Mattos e Silva (1998:40): a) a reconstrução de uma história social lingüística do Brasil; b) a reconstrução de uma sociolingüística histórica; c) a reconstrução diacrônica no interior das estruturas da língua portuguesa na direção do português brasileiro; d)a comparação entre o português europeu e o português brasileiro. Estes são pontos de vista surpreendemente novos, pois, segundo Burke (1993:9), “com um pouco de exagero, pode-se dizer que, até alguns anos atrás, os estudos históricos da linguagem ignoravam seus aspectos sociais, enquanto os estudos sociológicos da linguagem ignoravam sua história”.

Por fim, uma etapa mais avançada será a das descrições de fenômenos lingüísticos, acompanhadas de proposições interpretativas, sob a égide de uma dada abordagem teórico-lingüística. Dado que a permanência de trabalhos desta natureza é garantida por um bom suporte descritivo, como já advertiu Mary Kato, este nível de análise não pode ser descurado. Por outro lado, tanto quanto possível, é desejável uma certa uniformização terminológica, no campo teórico, tal como sugerido no II Seminário, já supracitado.

Uma construção mais sólida seria uma ulterior reflexão coletiva, coordenada, em nível nacional, a partir de um corpus compartilhado pelos estudiosos interessados.

Em suma, todos os esforços vão convergir para a consecução de uma história renovada dos processos lingüísticos e socioculturais que nos possibilitem entrever com mais clareza a formação e elaboração do português do Brasil e do português europeu.

Neste afã, questionamentos sobre o já dito, a littera dos antecessores/ fundadores, são inevitáveis. Por exemplo, Mattos e Silva (1998:27) apregoa que “a obra de Serafim da Silva Neto é marcada por orientação ideológica que tem como pressuposto a necessária “vitória” da língua da “cultura superior”, a portuguesa, sobre as línguas autóctones e africanas com que o português entrou em contato no complexo processo sócio-histórico do Brasil”. Na mesma direção, ainda que implicitamente, Burke (1993:11) reitera: “Durante muito tempo estudiosos têm feito afirmações específicas a respeito da história do Português do Brasil, mas, até onde sei, há poucos trabalhos mais completos, sendo o mais recente de autoria de José Honório Rodrigues. Seu ensaio contém muitos aspectos interessantes sobre a relação entre o Português e as diversas línguas africanas e indígenas no período colonial, mas deixa muito por ser feito, no que diz respeito a uma história social da linguagem no Brasil”. Em essência, para Rodrigues (1985:41), “a vitória da língua portuguesa no Brasil se deu na segunda metade do século dezoito”.

 

2.     GEOGRAFIA HUMANA

E A “VITÓRIA” DA LÍNGUA PORTUGUESA

A questão demográfica importa diretamente à questão da “vitória” da Língua Portuguesa no Brasil colonial.

Alden (1987:290) apresenta, em relação aos percentuais para cada grupo formador da sociedade colonial, a seguinte revisão:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lugar

Brancos

Mulatos e pretos livres

Mulatos e pretos escravos

Índios

Total

Pará

 

 

23%

20%

80.000

Maranhão

31%

17,3%

46%

5%

78.860

Piauí

21,8%

18,4%

36,2%

23,6%

58.962

Goiás

12,5%

36,2%

46,2%

5,2%

55.422

Mato Grosso

15,8%

 

 

3,8%

26.836

Pernambuco

28,5%

42%

26,2%

3,2%

391.986

Bahia

19,8%

31,6%

47,0%

1,5%

359.437

Rio de Janeiro

33,6%

18,4%

45,9%

2,0%

229.582

Minas Gerais

23,6%

33,7%

40,9%

1,8%

494.759

São Paulo

56%

25%

16%

3,0%

208.807

Rio Grande do Sul

40,4%

21%

5,5%

34,0%

66.420

Média em relação a 8 estados

28,0%

27,8%

38,1%

5,7%

 

Tab. 1: Composição racial no Brasil na última fase do período colonial.

 

Os valores acima foram relatados em 1810, mas retratam um período mais recuado do século XIX.

A maioria dos europeus no Brasil, ao final do século XVIII, era de portugueses, fora a situação específica de algumas localidades meridionais em disputa de fronteiras com os espanhóis. Separem-se, de um lado, os descendentes de portugueses fixados no Brasil, os reinóis brasileiros, e, de outro, os portugueses que viviam na colônia e os portugueses transitórios. A esses dois grupos corresponde, exatamente, o que se define como português do Brasil e Português no Brasil. Dois grupos possuindo, segundo relatos indiretos, duas normas distintas.

À norma brasileira estariam incluídos os pardos integrados, falantes do português. Interessante que, apesar da denominação pardo identificar uma parcela mestiça da sociedade, não é totalmente seguro afirmar que todos os brancos mapeados pelos encarregados das contagens oficiais fossem europeus. Pode-se dizer que os brancos são, na verdade, «pessoas socialmente aceitas como Caucasianas»[1] conforme um verdadeiro branqueamento social. Sobre esse aspecto colonial, Silva (1986:224) ensina que:

Todos os estrangeiros que visitaram o brasil no fim do período colonial são concordes em afirmar que a população parda passara por um processo de «branqueamento», uma vez que muitos indivíduos conseguiam dispensa do defeito de cor e ocupavam cargos militares, civis e eclesiásticos que, por lei, só podiam ser desempenhados por brancos.

Note-se a diferença entre os grupos apresentados na tabela e o conceito contemporâneo de classes sociais. As categorias apresentadas não discriminam os habitantes livres nem segundo suas posses, nem pelo nível cultural. No entanto, vale saber com que especificidades. Por exemplo, mestiços chegavam a ocupar cargos eclesiásticos e militares.

A realidade brasileira na última fase colonial era bastante complexa. No tocante à distribuição populacional, cidades grandiosas para os padrões americanos da época diferiam de lugar para lugar. Pernambuco, a segunda maior capitania, por exemplo, contava com mais negros livres do que escravos.

O aculturamento de indígenas e de negros somente corrobora a idéia do aumento do número de falantes da Língua Portuguesa no último quartel do século XVIII.

Em relação aos índios, desde 1755 que a Lei da liberdade dos Índios e a lei promovendo o casamento entre brancos e índios favoreciam o abandono, por parte das gerações mestiças subseqüentes, das línguas ameríndias.

Socialmente, os negros estavam divididos «independentemente do facto de serem ou não escravos»[2] entre negros crioulos, aqueles que tinham a possibilidade de juntar dinheiro e de ascensão na sociedade, e negros africanos. A aculturação nos primeiros deveria ser quase categórica, ao passo que nos africanos, cativos, o processo de perda da identidade devia-se fazer sentir mais forte a cada geração.

É de se supor que, pelo menos nos contextos urbanos, por menores que fossem as cidades e vilas, esse processo de aculturação tenha favorecido, pouco a pouco, de uma geração a outra, a opção pelo português, em detrimento da identidade lingüística original. Nesse sentido, diante do quadro quantitativo de aloglotas acima demonstrado, impossível não deduzir que quão maior a interação com a parcela branca, maior o incremento desse mesmo processo. No Rio de Janeiro, por exemplo, os efeitos da vinda da Corte e do status de capital do país elevou tanto o número de habitantes que o contingente populacional de toda a capitania do Rio de Janeiro, no início do século XIX (1803 - 1810), a saber, 249.883 pessoas, passa a ser, praticamente, o da cidade do Rio de Janeiro sessenta anos depois: 274.972, sendo desses 226.033 homens livres e 48.939 escravos.[3] Note-se que, se vale a hipótese de os homens livres falarem português, o número de aloglotas seria de 17,8% ao passo que, no século XVIII, na capitania do Rio de Janeiro, era de 45,9%. Teria havido um considerável avanço, pois teriam passado as línguas africanas à situação de minoria lingüística.

Para Mussa (1991), dentre os brancos, o número de portugueses equivaleria, mais ou menos, ao dobro do número de reinóis brasileiros.[4] Nesse sentido, vale ressaltar que, no Brasil colonial, a subida do quantitativo populacional branco está diretamente ligado aos ciclos econômicos. Martiniére constata que

o surto demográfico do Brasil no ciclo do ouro encontraria as suas origens na notável corrente migratória proveniente de Portugal. Ora, Portugal, no momento da Restauração, atingira perto de 2.000.000 de habitantes; e só conheceria um crescimento demográfico a partir de 1730, para atingir 2,5 milhões de habitantes em 1758 e cerca de três milhões, quarenta anos mais tarde. Se se tiver em conta a importância desta emigração para o Brasil, no século XVIII, seria preciso, portanto, admitir que Portugal perdeu 1/5 da sua população em plena força da idade no momento da mineração brasileira. [5]

Wehling & Wehling (1994:275), com números impressionantes, chegam a afirmar: “Mas a vinda para o Brasil, atraídos pelas minas, de cerca de 800 mil portugueses certamente contribuiu para consolidar a língua do colonizador”.

Contudo, apesar das implicações que os fatores de mobilidade populacional apresentam para o fato social língua, concluem em seguida: “Mas o fator decisivo parece ter sido a firme determinação do governo pombalino de impor o português como língua falada no país, extinguindo o bilingüismo existente até então”.

Essa supervalorização dos efeitos das Leis Pombalinas merece ser revista e avaliada à parte.

 

3.     AS DIFICULDADES DO ENSINO NA ÚLTIMA FASE DA COLÔNIA.

O ato de Pombal teria encerrado um longo período de despreocupação com o ensino na colônia americana que abrira espaço para o domínio ideológico-educacional jesuítico, favorecedor da criação e fomento do uso das chamadas línguas gerais[6]. É a que alude Villalta.

Até 1759, a Companhia de Jesus foi o principal agente da educação, possuindo várias escolas, voltadas para a formação de clérigos e leigos. Além dos colégios jesuíticos, existiram as escolas vinculadas às ordens dos beneditinos, dos franciscanos e dos carmelitas, e, a partir de fins do século XVII, os seminários, criados em várias localidades do país e marcados pela influência jesuítica.” [7]

De fato, em virtude do forte propósito da catequese dos gentios, os jesuítas procuraram descrever, publicar e ensinar aos seus noviços não apenas línguas indígenas como o kariris, o guarani e o tupinambá. Houve tentativas de formarem-se, mediante, primeiro, a descrição latinizada, depois o treinamento de religiosos, línguas gerais de intercurso entre os missionários e negros, e mesmo entre escravos de diferentes etnias. Nesse sentido, foi impressa, pela Companhia de Jesus, em 1697, uma Arte da Lingua da Angola feita, em 1796, pelo padre Pedro Dias, religioso do colégio da Bahia.[8]

A política pombalina destrói toda a estrutura montada pela Companhia de Jesus no Brasil para, supostamente, substituí-la por outra favorecedora da implementação da Língua Portuguesa.

Quando se entende o ato de Pombal, em 1757, como um fator favorecedor da “vitória” da Língua Portuguesa no Brasil, está-se assumindo que de uma superioridade de falantes aloglotas passou-se à predominância do Português, na maior parte do território, duas ou três gerações depois do Marquês, apesar da deficiência do sistema por ele implantado.

Também nos manuais de Letras verifica-se a ênfase nos efeitos das leis pombalinas. Veja-se o que vem colocado por Mattos e Silva (1991), citando também Houaiss (1985):

O destino do português no Brasil se definiu nos meados do século XVIII, quando o Marquês de Pombal, por lei de 3 de Maio de 1757, primeiro aplicada ao Pará e Maranhão e que depois se estende a todo o Brasil (CUNHA, 1981-92), dá início a uma nova política lingüística e cultural na colônia americana, ao criar a primeira rede leiga de ensino, expulsos os jesuítas, ao estabelecer um ordenamento jurídico e administrativo em que a língua portuguesa passa a ser obrigatória, proscrevendo-se o uso de quaisquer outras línguas (HOUAISS, 1985-85). Esse fato histórico marcou definitivamente o fim de um processo que poderia ter definido outro destino lingüístico para o Brasil.[9]

No mesmo texto, a autora reafirma o peso do fato histórico mesmo ao reconhecer o avanço demográfico como um fator decisivo no avanço do Português no século XVIII.

Confluindo no século XVIII, entre outros, fatores demográficos significativos tais como o avanço da população branca e mestiça integrada (cerca de quinhentos mil) e alcançando um milhão a população escrava negra, associados à nova política colonial pombalina, se definiu por aquele século o português como língua dominante.[10]

O fator decisivo deveria ter sido, realmente, o primeiro, porque não se muda uma opção lingüística de uma sociedade complexa como aquela do Brasil colônia por decreto. O caminho mais provável seria o do crescimento e conseqüente sobreposição do continente populacional detentor de prestígio e provedor da dinâmica social. É evidente que, aliado a esse deslocamento de população branca falante do português diminuindo a força da língua geral na vida familiar de brancos, deve-se considerar o recuo para o interior das massas indígenas e o aculturação tanto de aborígenes quanto de negros.

A educação regular dos indígenas cessara com a expulsão dos jesuítas. A educação em relação aos negros não ia além do aprendizado de uma língua de emergência, de comunicação básica para o trabalho.

Diante dos dados sobre a população negra escrava no Brasil, àquela altura, um contingente igual à soma de brancos, pardos e negros livres, não há como compreender o glotocídio empreendido a não ser pelo aculturamento dos negros ladinos.

É preciso lembrar que, além da aculturação, o próprio genocídio colonial também explica a não permanência de línguas crioulas no território brasileiro. A morte de milhares de pessoas foi o saldo das condições de transporte para o Brasil, do dia a dia de cativeiro, e, ainda, do massacre dos núcleos de resistência.

Ao lembrar-se que o número total de brancos, ainda no final do século XVIII, não era predominante no Brasil, compreende-se o quanto o ato pombalino está longe de ser um fator de definição do Português como “vitorioso” por sobre as demais línguas faladas na colônia: negros e índios, estes, pelo menos, desde a expulsão dos jesuítas, não iam à escola. Não há maneira de compreender o desaparecimento dos falares negros e o isolamento dos falares ameríndios a não ser por um silencioso holocausto[11] aliado a eficazes métodos de aculturação. De geração para geração, a passagem de negros das fazendas às vilas deve ter feito cativos bilingües verem seus descendentes optando pela Língua Portuguesa como língua única.

Mas mesmo que se restrinja o peso do fator obrigatoriedade do ensino do português, a partir de Pombal, aos brancos nascidos no Brasil, continuariam a existir contradições. Qual deveria ter sido a dimensão do sistema de ensino do Português para que milhares de pessoas pudessem ter acesso a um ensino de alguma forma regular? Segundo relatos indiretos, havia falantes de língua geral, mesmo dentre os brancos e, conseqüentemente, mesmo a eles, estar-se-ia ensinando a falar (e escrever?) o português como segunda língua. Para os bilingües, o trabalho dos professores estaria voltado tanto à escrita, quanto ao aprimoramento da oralidade. Contudo, para a maioria analfabeta dos reinóis já falantes, o ensino das primeiras letras consumiria todo o tempo. Em relação à incapacidade estrutural da colônia em cumprir os designos da política pombalina, afirma Villalta:

As reformas (...) enfrentaram problemas, estabelecendo-se uma grande distância entre as intenções legais e a realidade. (...) Faltaram professores, manuais e livros sugeridos pelos novos métodos. Os recursos orçamentários foram insuficientes para custear a educação pública, havendo atrasos nos salários dos mestres.[12]

Veja-se que, no Grão-Pará e no Maranhão, ao norte, o ensino do Português não levou ao abandono da língua geral nheengatu, devido a sua força tanto na linguagem familiar quanto pública. A língua portuguesa permaneceu a língua de cultura da elite local para além do século XVIII, a tal ponto que «o nheengatu avançou pelo século XIX, sobrevivendo em alguns locais até hoje»[13].

No caso de São Paulo, cuja parcela da economia voltada para o mercado interno utilizou mais a mão de obra escrava indígena que a negra, a língua geral «tornou-se hegemônica, difundindo-se por todas as camadas sociais e irradiando-se do privado para o público. Apenas no domínio público encontrava alguma rivalidade do português.»[14]. Essa situação paulista, ao contrário daquela amazônica, muda radicalmente ao longo do século XVIII.

Vê-se, portanto, que na articulação entre o público e o privado para os brancos de posses, falantes de uma língua geral, o ensino do Português desempenhou, de fato, papel decisivo.

As aulas tornaram-se-lhes o caminho para o domínio do principal instrumento de interação, dentro de seu estrato social, com os quadros de população branca que se renovava com os portugueses atraídos pelas riquezas do século XVIII. Essa é a dimensão da importância do ato de Pombal. O espaço criado para o contato entre os lusos e as camadas bilingües - talvez aloglotas - que estavam assumindo a Língua Portuguesa como referencial de prestígio lingüístico deve ter determinado uma série de alterações no quadro sociocultural naquela última fase da América portuguesa. Mas essa já será uma nova história.

 

4.     REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALDEN, Dauril.  Late Colonial Brazil 1750 - 1808.  In: BETHELL, Leslie (org.).  Colonial Brazil. Cambridge : CUP, 1987.

BURKE, Peter e PORTER, Roy.  Linguagem, indivíduo, sociedade.  São Paulo : Unesp, 1993.

CASTILHO, A. T. de. Projeto de história do português de São Paulo. In: Para a história do português brasileiro.  São Paulo : Humanitas, 1998, vol. 1, p.21-52.

LABOV, William. Principios del cambio lingüístico.  Madrid : Gredos, 1996.

MARTINIÈRE, Guy. A implantação das estruturas de Portugal na América (1620-1750).  In: MAURO, Frédéric (coord.).  Nova História da Expansão Portuguesa - O Império Luso-Brasileiro (1620-1750).  Lisboa : Editorial Estampa, 1991, vol. 7.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Diversidade e Unidade: a aventura lingüística do Português.  In: CASTRO, Ivo (org.). Curso de História da Língua Portuguesa: leituras complementares.  Lisboa : Universidade Aberta, 1991.

––––––. Idéias para a história do português brasileiro: fragmentos para uma composição posterior.  In: Para a história do português brasileiro.  São Paulo : Humanitas, 1998.

MUSSA, Alberto. O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. Dissertação de Mestrado.  Rio de Janeiro : UFRJ/Faculdade de Letras,1991. Mimeo.

RODRIGUES, J. Honório.  A vitória da língua portuguesa no Brasil colonial.  In: História viva.  São Paulo : Global, 1985, p.11-48.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Nova História da Expansão Portuguesa - O Império Luso-Brasileiro (1750-1822). Lisboa : Editorial Estampa, 1986, vol.8.

VILLALTA, Luiz Carlos.  O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.).  História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José C. de.  Formação do Brasil Colonial.  Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1994.



[1] “Persons socially accepted as Caucasians”. Cf. Alden (1987: 291).

[2] Silva (1986:225).

[3] Ver Relatório de 1873. Directoria Geral de Estatística Rio : Tipografia Franco-Americana, 1874.

[4] Segundo Mussa (1991:151), do total da população estimada para o século XVIII, 22% era de europeus e, 10%, de brancos brasileiros.

[5] Martinière (1991:213).

[6] Segundo Villalta (1997:336), no litoral, numa extensa faixa de São Paulo até o Nordeste, vigorou a língua brasílica, também chamada língua do mar, mais tarde conhecida como tupinambá. Em São Paulo também existiu, até a metade do século XVIII, uma variação do tupinambá, a chamada língua geral do sul. A assimilação do tupinambá por parte de caboclos e índios de língua não-tupi gerou, no Maranhão, Pará e ao longo do vale do Amazonas, o nheengatu. Como exemplo de língua geral não-tupi, pode-se considerar a língua geral guarani, falada ao sul da colônia, na região às margens do rio Uruguai.

[7] Villalta (1997: 347).

[8] Nas Licenças de impressão, lê-se: “antes tem regras muito proprias, & conformes ao idioma da dita lingua, q serão sem duvida de grande utilidade para os principiantes(...). In: Arte da Lingua de Angola, do Pe. Pedros Dias, impressa em Lisboa, na Oficina de Miguel Deslandes, em 1697.

[9] Mattos e Silva (1991: 19). Grifo nosso.

[10] Mattos e Silva (1991:20). Grifo nosso.

[11] Vivallta (1997:339) afirma: “Em Minas Gerais, a eliminação dos povos e das línguas indígenas foi radical (...). Os índios na região, na região mineradora, foram sendo massacrados e empurrados progressivamente para além das fronteiras da ocupação lusitana.”.

[12] Ibidem p. 349.

[13] Ibidem, p. 341.

[14] Ibidem, p. 339.