ANTROPÔNIMO A METONÍMIA DO PODER, DA LIBERDADE, DA COERÇÃO (PRELIMINARES)

Aileda de Mattos Oliveira (FGS)

 

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Dizem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant que os egípcios da Antigüidade consideravam o nome pessoal mais que um signo de identificação. Para eles, era uma dimensão do indivíduo, pois acreditavam no poder criador e coercitivo do nome. O nome, portanto, seria uma coisa viva, por estar, simbolicamente, carregado de significação.[1]

O índio escritor Kaká Werá Jecupe[2] fala da importância do nome na sociedade tupi-guarani de onde ele provém. Quando uma criança é batizada, junta ao seu nome, o de um dos três protetores espirituais da tribo, que seria equivalente ao sobrenome e que vai nortear a sua linhagem, protegendo-a das intempéries da vida terrena.

Conhecer o nome de alguém ou escrevê-lo em algum lugar em rituais de magia, dependendo das intenções de quem o faz, pode ser benéfico ou não à pessoa nominada, por força do dinamismo simbólico que a liga ao nome. Não é justamente esse liame que se estabelece entre o nome e a pessoa, que levava (ou ainda leva, em algumas regiões do Brasil) a adolescente escrever a faca na folha de bananeira o nome do seu escolhido, na noite dedicada a Santo Antônio, a fim de prender-lhe o coração?

Não é objetivo deste trabalho desenvolver considerações sobre a antropologia filosófica em relação ao pensamento dos antigos, nem tampouco deter-se nas antigas manifestações culturais brasileiras, mas fazer observações de fatos que participam do cotidiano do povo e são registrados, com freqüência, no noticiário da imprensa.

Justifica-se, então, o preâmbulo inicial, como uma demonstração de que o poder do nome não é um fato que dominou um determinado tempo, mas que ultrapassou a barreira evolutiva do indivíduo e permanece, hoje, como um traço da mentalidade primitiva, como uma forma arquetípica de autoridade.

É, justamente, através da realidade vivida pelo povo, que se considera o fato de o nome estabelecer com o indivíduo que o recebeu um tal vínculo de natureza psicológica, que o vai substituir na sua representatividade dentro do grupo social do qual faz parte. Nesse ponto, o valor metonímico do antropônimo se desvia da regra do valor metonímico dos nomes comuns, quando os signos lingüísticos ocupam, apenas representando-o, o lugar dos referentes do mundo bio-social. Mattoso Câmara diz que “O nome indica as ‘coisas’, quer se trate de objetos concretos ou de noções abstratas, de seres reais ou de espécies”.[3] Nessa caso, considera-se o nome, apenas, um dado indicial do indivíduo.

Representar ou indicar não significa que o objeto se dê a conhecer em todos os seus detalhes à simples menção de seu nome. O conhecimento dos detalhes pode ser mais evidente no nome próprio do que no nome comum, mas em ambos os casos, a apreensão de suas características, depende da capacidade de observação ou da conquista cultural de cada um.

Quando se diz que um objeto é um legítimo carrara, é necessário que se tenha a priori, pelo menos, uma noção de arte e de geografia, a fim de admirar a estética do objeto talhado em tão belo mármore e relacioná-lo à região que lhe deu o nome, e assim poder dar a ele o seu verdadeiro valor artístico, ou venal.

Ao se comparar alguém a um Demóstenes, é imprescindível que se saiba, antecipadamente, as qualidades do comparante, para que se possa admirar, ou avaliar, o gabarito do comparado e reconhecer-lhe os dotes oratórios.

A diferença que aqui se destaca entre nomes comuns e nomes próprios reside no fato de que o nome pessoal impregna-se das características personalíssimas do nominado, representando-o na comunidade a que pertence, mesmo na ausência física dele. O simples mencionar de determinados nomes é responsável pela mudança de comportamento de pessoas que os ouviram, ou porque lhes causam admiração (“E um nome de peso!”), ou porque lhes causam abominação (“Não gosto nem de ouvir falar nesse nome!”).

Nesse caso, não há também uma preocupação voltada para o estudo etimológico do nome, o que não significa que não se recorra à etimologia, desde que assim exijam as circunstâncias nascidas por força de um trabalho comparativo. Preferiu-se, no entanto, o caminho da análise do significado, adquirido através do liame que passa a existir entre o nome e aquele que o detém e por ele é reconhecido na sociedade.

A dificuldade em desenvolver um trabalho dessa natureza surgiu ao estabelecer os critérios de escolha dos antropônimos que se deveriam tornar objetos de estudo, uma vez que cada um que nomeia alguém se preenche de uma essência significativa não encontrada em idêntico antropônimo, quando identificador de diferente pessoa. Isso significa que duas pessoas de nomes iguais, isto é, com o mesmo significante, fazem que seus onomásticos adquiram um valor diferenciado pela maneira muito pessoal de serem. Assim, é mais admissível que o significante ‘Paulo’ remeta-nos ao apóstolo, e não ao nosso vizinho que dessa forma foi registrado, se suas qualidades não foram, até então, suficientemente reveladoras.

Na impossibilidade de se reconhecer a pessoa através do nome, por ser alguém perdido nos escaninhos da memória ou por não se ter com ela uma convivência mais assídua, é habitual dizer-se “não estou ligando o nome à pessoa”. Essa afirmação é demonstrativa de que o antropônimo enunciado, ainda se mantém sem os dados identificadores da pessoa que nomeia, tornando o objeto da referência — a pessoa nomeada — apenas um elemento indicial e não metonímico no campo da informação ou da comunicação.

Essa marca reveladora que individualiza um antropônimo de outro idêntico está relacionada ao conjunto de qualidades inerentes a um tipo de personalidade, independente de essa personalidade conduzir por caminhos sinuosos ou por estradas retas e justas. É esse conjunto de predicados que vai ser transferido ao significante, impregnando-o do carisma ou dos atributos de seu referente.

John R. Searle, citando J. S. Mill, diz que “os nomes próprios não têm um sentido, são marcas sem significação, denotam mas não conotam”. Ainda, segundo os dois autores, isso porque o nome próprio não descreve o objeto, isto é, o fato de conhecer-se o nome de alguém não significa que, simultaneamente, saber-se-á de qualquer dado descritivo desse alguém.[4]

Presume-se que nenhum significante, seja nome comum seja nome próprio, tenha essas duas características concomitantes: a de identificá-los e a de definir-lhes os atributos.

Os atributos vão preenchendo o vazio do nome, à medida que o nominado vai construindo a sua história de vida na profissão, na sociedade. Quando se ouve dizer “eu tenho um nome a zelar” significa que os atributos adquiridos pelo nominado, através de sua atuação pública ou particular ultrapassaram os limites de sua pessoa física e estenderam-se ao seu nome como elemento de contigüidade. A partir daí, o nome pode descrever, sim, as qualidades do nominado.

Não é sem razão que as pessoas lutam para retirar os seus nomes que, segundo elas, “estão presos” no S.P.C. (Serviço de Proteção ao Crédito), a fim de que (ainda, segundo palavras das mesmas) fiquem “limpos” e possam novamente, “andar de cabeça erguida”.

É essa característica metonímica do nome próprio que se pretende analisar nesta parte do trabalho que me coube desenvolver.[5]

Não é preciso, portanto, regressar ao tempo do patriciado romano para justificar a posição aqui assumida, pois a identificação de um indivíduo pelo seu gene, ainda permanece nos dias atuais como um fator referencial de sua ancestralidade.

O gentílico mantém a sua importância na identificação e na descrição de determinados grupos consagüíneos quando estes situam-se num patamar social, militar, político e econômico de destaque, como por exemplo: os Monteiro de Carvalho (social e econômico); os Menna Barreto (considerada a maior estirpe militar do Brasil); os Mello Franco (atuação política); os Magalhães Pinto (mundo financeiro).

O indivíduo pertencente a grupos sociais medianos ou próximos à base da pirâmide social tem, ao contrário, o seu prenome como elemento identificador. Um grande número dos que pertencem a este último estrato social — o da base — muitas vezes não são reconhecidos nem mesmo pelo nome de batismo, mas por algum cognome ou alcunha que lhe detalhe ou lhe configure uma característica física (o Macarrão, por ser alto e magro); uma característica moral (o Mãozinha, por surrupiar as coisas alheias); uma característica comportamental (o Soneca, por estar sempre sonolento); ou que lhe recorde a origem de seu nascimento ou de sua ascendência (o Gaúcho, o Japona).

Isso ocorre, também, em certas localidades interioranas, nas quais costuma haver um catálogo de cognomes ao lado da relação oficial da companhia telefônica local, a fim de facilitar o reconhecimento das pessoas da região, jamais nomeadas ou conhecidas pelos prenomes ou pelos gentílicos. Quando o prenome é empregado, normalmente sofre o processo de abreviação (Zé) ou transforma-se no hipocorístico (Zezé), acompanhado de sua habilidade profissional, mas sempre antecedido do artigo definido: o Zé Marceneiro; a Zezé Costureira.

Passa-se a crer, em conseqüência, que o nome primeiro, isto é, aquele que se recebeu em batismo, nem sempre estabelece uma relação harmoniosa com o seu nominado. Há como que algo incômodo a ser carregado pela existência afora.

A mudança de nomes por alguns atores e cantores, ou para que se ajustem à eufonia e tenham um apelo público, ou se enquadrem no esquema místico da numerologia, caracteriza bem a procura de uma relação harmônica entre o ser identificado e o nome identificador. Este começa, assim, a adquirir um valor que transcende o campo meramente relativo aos hábitos sociais de identificação, para significar uma busca de proteção cósmica, já no âmbito do campo mítico-temporal. Essa tendência não se mantém restrita aos atores-pais, mas já se faz presente nos nomes dos filhos que, ao nascerem, são nomeados de acordo com o complicado cálculo realizado por um conhecedor dos mistérios que determinam valores matemáticos a cada letra do alfabeto.

Cecília Meireles, após o suicídio do marido, em 1935, buscou reencontrar o equilíbrio emocional e a tranqüilidade perdida, consultando uma astróloga que a aconselhou a retirar um ‘l’ de seu gentílico ‘Meirelles’. Com o nome simplificado, passou a assinar seus trabalhos literários, sem alterar, entretanto, os documentos oficiais.

Por ser a antroponímia um campo vasto para a análise, limitar-se-á este trabalho a importância do nome como senha para abrir as pesadas portas do favorecimento; para desimpedir o acesso aos mais variados cargos e funções; para intimidar aquele que pertence a estrato inferior; para desrespeitar as leis ou normas estabelecidas; para ter seus atos justificados mesmo que ferindo a letra da lei e o direito de outros homens.

Esta é a razão do título do trabalho: Antropônimo: a metonímia do poder, da liberdade, da coerção, que predispõe a uma releitura do signo antroponímico. Esse novo signo em que se transforma o nome, é proporcional a abrangência da atuação pessoal ou familiar de quem o tem, o que lhe vai estender os privilégios civis para além da permissividade legal.

 

 

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É característico da cultura brasileira sobrepor-se o nome às qualidades intrínsecas do indivíduo. As fontes fidedignas da história da formação do país, se analisadas sem o entrave da visão já condicionada pelo enfoque normativo dos livros escolares, vão fornecer dados importantes para a compreensão desse fato.

Se, como diz Sérgio Buarque de Holanda, há uma “tendência para a omissão do nome de família no tratamento social” como forma característica da “cordialidade” brasileira[6], mantém-se, no entanto, o gentílico, quando há uma relação entre nome de família e domínio regional, o que significa domínio político e, em conseqüência, força de aplicação dos meios persuasórios e poder de manutenção desses meios sempre ativos e crescentes.

É certo que os domínios regional e político estão imediatamente condicionados ao poder econômico sem o qual seria difícil manter a força de uma imagem associada a um nome, quase sempre sem valor merecido. Isso porque a mitificação de um nome faz-se quase sempre por vias em que trafegam a corrupção de idéias e, em conseqüência, a inversão de valores e o descomprometimento com a ética.

Os registros históricos oferecem exemplos de nomes que são lembrados por emissores e muitas vezes citados, apenas, como prática intelectual para valorização do conteúdo conversacional sem que os possuidores desses nomes sejam verdadeiramente conhecidos no seu campo de atuação. A incidência do uso desses antropônimos faz que eles sejam incorporados ao léxico da língua, já agora transformados em epítetos, como o do exemplo seguinte: Tomar uma atitude maquiavélica tornou-se uma norma política para justificar os objetivos dantescos a que visam alguns políticos, cujo comportamento napoleônico vem de prejudicar irremediavelmente o povo. Isso significa que o antropônimo subsiste àquele que nomeia, transformando-se já pelas seguidas gerações de falantes em acidente categorial, mesmo que do sujeito que outrora identificou nenhum vestígio de sua atuação histórica tenha-se perpetuado na memória da grande maioria dos povos.

Ao contrário, os nomes bíblicos, por inserirem-se num outro tipo de contexto histórico — o mítico-religioso — permanecem na memória dos povos como exemplos a serem ou não seguidos, de acordo com o caráter e as ações dos seus possuidores, descritos nos textos sagrados. Salomão será sempre lembrado como o sábio justiceiro, enquanto Judas nunca será reabilitado, assim como Caim. Aliás, não há quem ouse nomear algum filho com os dois últimos antropônimos, marcados pelos atos ignóbeis de seus possuidores e constrangedores, portanto, aos novos portadores.

Isso é uma prova de que o nome é uma dimensão do indivíduo, e que permanece através dos séculos a estigmatizar os que, por capricho paterno, venham receber, como identidade social, prenomes que se tornaram execrados por aqueles que escreveram a história da humanidade.

 

BIBLIOGRAFIA

CAMARA Jr, Joaquim Mattoso. Dicionário de filologia e gramática. 4. ed. Rio de Janeiro: J.Ozon, /s.d./, p. 280.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p.641.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988, p. 109.

Revista ISTOÉ/1555, 21/7/1999,  p.7, 10-11.

SEARLE, John R. Os actos de fala. Coimbra: Livraria Almedina, 1981,  p. 215.



[1] Dicionário de símbolos.12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 641.

[2] Isto É, 21/7/1999, p. 7

[3] Dicionário de filologia e gramática. 4. ed. Rio de Janeiro: J.Ozon, [s.d.], p. 280.

[4] Os actos de fala. Coimbra : Livraria Almedina, 1981, p. 215.

[5] A Profa. Maria Lúcia Mexias Simon desenvolveu o trabalho São os nomes próprios puros “significantes”?

[6] Raízes do Brasil, p. 109.