HEITOR VILLA-LOBOS
O PROCESSO DE CRIAÇÃO  DO PRELÚDIO N.2

(Para violão solo – Rio, 1940)

Fernando Pacheco

O COMPOSITOR

Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) em seu percurso de experimentação, buscou na riqueza natural do Brasil, bem como no folclore, o desenvolvimento de seu projeto poético, nas florestas, rios,  cascatas; nos pássaros,  peixes e bichos;  o caboclo, o índio, o sertanejo, e a sociedade com seus contrastes, foram imagens geradoras de seu processo de composição, fontes de inspiração deste compositor que criou, no exterior, a face musical do Brasil. “É interessante observar que, independentemente da forma que a experimentação toma, esse momento é sempre relacionado a trabalho, que significa, em última instância, criação”. (Salles, 1998:147). “O projeto poético está também ligado a princípios éticos de seu criador: seu plano de valores e sua forma de representar o mundo. Pode-se falar de um projeto ético caminhando lado a lado com o grande propósito estético do artista”. (Salles, 1998:38).

                      Villa era imprevisível, um sujeito de personalidade múltipla. Ele tinha imaginação de uma criança, a audácia de um adolescente, e a capacidade de realização de homem feito, e uma grande tendência para o monumental, para o grandioso. O volume de suas composições, é registrada no Museu Villa-Lobos, em aproximadamente 1.056 obras. Era uma pessoa desconfiada, como o índio. Ele dizia que tinha prazer no que fazia. Dizia também que quando fazia alguma coisa ou era boa ou uma porcaria, isto mostra o grande contraste interior que existia em sua personalidade. Escrevia quando era preciso, não se incomodava, que no mesmo ambiente onde trabalhava, tivesse barulho de qualquer espécie. Ele se abstraía do que acontecia a sua volta, e se concentrava em seu trabalho de composição. Foi um compositor nacionalista, pois buscava no folclore sua poética, e contribuiu muito com o Estado Novo no governo de Getúlio Vargas, apesar de não considerar influências políticas em sua obra.

                      Villa não era chegado aos livros, dizia que seu livro era o mapa do Brasil. Suas primeiras obras para violão datam de 1899 (Mazurca em Ré Maior), e 1900 (Panqueca), ambas partituras perdidas, compostas a partir dos doze anos. Ele conseguiu levar o violão brasileiro às grandes salas de concerto. Em toda sua obra violonística o interpretante pode notar a presença marcante do violoncelo,  - instrumento que apreendeu precocemente com seu pai Raul Villa-Lobos -  como uma representação de signo icônico a sua sonoridade, em melodias desenvolvidas na região grave do instrumento. Muitas vezes, essas melodias são apresentadas em bloco de acordes, onde a significação principal é o sentido de simultâneidade sonora. “O signo é algo (qualquer coisa) que é determinado por alguma outra coisa que ele representa, essa representação produzindo um efeito, que pode ser de qualquer tipo (sentimento, ação ou representação) numa mente atual ou potencial, sendo esse efeito chamado de interpretante. Para funcionar como signo, basta alguma estar no lugar de outra, isto é, representando outra. Basta qualquer coisa, de que tipo for, encontrar uma mente que algum efeito será produzido nessa mente. Esse efeito terá sempre a natureza de um signo ou quase-signo. Ele é chamado de interpretante”. (Santaella, 1998:39/40). “No caso do signo degenerado no seu mais alto grau, o que se apresentas é uma simples qualidade, a qualidade reduzida a si mesma, cores sem forma, sons sem melodia, voz sem discurso, alegria sem pensamento, enfim, a pura qualidade desprendida de qualquer objetualidade, abstraída daquilo em que toma corpo. Ora qualidades em si mesmas são altamente sugestivas. Podem se assemelhar a qualquer outra coisa, mas é só quando um intérprete qualquer estabelecer uma relação de comparação de uma qualidade com outra é que a qualidade poderá funcionar como signo. Ela estará no lugar de uma outra qualidade devido a uma comunidade de qualidades entre ela e a outra. Isso foi chamado de ícone por Peirce. Um tipo de signo que funciona como tal unicamente em virtude de atributos que ele possui, e que podem eventualmente ser semelhantes aos atributos de uma outra coisa. Quando se estabelece a semelhança, então ele funciona como signo”. (Santaella, 1998:43). 

                      Villa-Lobos foi o principal compositor do século XX, na evolução do violão brasileiro. Contribuiu de maneira significativa no desenvolvimento técnico e estético do instrumento, deixando uma obra para violão de fundamental importância, não só para os estudantes e concertistas, mas também para o desenvolvimento futuro das novas gerações de compositores, como Egberto Gismonti, Carioca, André Geraisati, Ulisses Rocha, Eduardo Agni, e outros, influenciados diretamente por sua obra, os quais desenvolvem novas propostas para o violão brasileiro do terceiro milênio. 

                      A fusão do clássico com o popular, foi marcante na fisionomia contemporânea de seus gestos profundamente brasileiros. Villa desenvolve uma imaginação criadora que trabalha com imagens do pensamento. A paisagem sonora é marcada pela instantaneidade do olhar transformador: ação do olhar sobre a realidade externa à obra. Seu projeto poético são personagens conceituais, e não figuras estéticas, que descrevem seu plano de composição, e não seu plano de imanência. “A diferença entre personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte: uns são potências de conceitos, os outros, potências de afectos e de perceptos. Uns operam sobre um plano de imanência que é uma imagem de Pensamento-Ser (númeno), os outros, sobre um plano de composição como imagens do Universo (fenômeno)”. (Deleuze e Guattari, 1997:87/88). “O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro. Em cada caso, com efeito, o plano e o que o ocupa são como duas partes relativamente distintas, relativamente heterogêneas. Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar, traçar uma nova imagem do pensamento, instaurar um novo plano de imanência, mas, em lugar de criar novos conceitos que o ocupam, ele povoa com outras instâncias, outras entidades, poéticas, romanescas. Ou mesmo pictóricas ou musicais”. (Deleuze e Guattari, 1997:89).

                      Villa foi um inovador da música, foi mais que isso, Villa mudou a maneira dos brasileiros verem seu país, sua cultura, e a si próprios. Ele mergulhou nas fontes de nossa nacionalidade nativa, e a colocou lado a lado com o estilo clássico europeu, aos nossos olhos e aos olhos do mundo.

 

PRELÚDIO N.2

No início da adolescência, após a morte de seu Pai, de varíola aos 37 anos, Villa-Lobos desenvolvia-se no violão, contra a vontade de sua Mãe Noêmia Umbelina Santos Monteiro que desejava que o filho fosse médico. Villa  pulava muros para reunir-se aos chorões – gente mais velha do que ele, e que no Rio de Janeiro do princípio do século fazia  música popular e brasileira. O choro, que apareceu no Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX, era música instrumental freqüentemente virtuosística: ocupação de gente da pequena classe média, que tocava em troca de bebida ou mesa farta, animando as festas; músicos que partiam dos gêneros importados da Europa – valsa, schottisch, polca – e que, através de um estilo próprio de execução, foram transformando esses gêneros numa “arte instrumental brasileira” da melhor qualidade.

                      Além da forte influência do Choro, Villa teve outra importante manifestação musical em sua formação auto-didata, que mais tarde aparece em sua obra, ao ouvir prelúdios e fugas do Cravo bem temperado, de Bach, interpretados ao piano por sua tia Zizinha. Essas fortes experiências vividas com os Chorões e a liberdade de improvisar, somados ao contraste da disciplina da obra de Bach, marcaram toda sua obra.

                      No Prelúdio n.2, Villa resolve homenagear “o malandro carioca”, através do choro, onde podemos observar seu projeto poético desenvolvido através do percurso de experimentação de sua experiência no contato com os Chorões do Rio de Janeiro, como também nos documentos de processo deixados por Villa, entre eles seus manuscritos.

                     Este Prelúdio apresenta para o intérprete um importante     recurso      de                          expressividade na execução, envolvendo flexibilidade na escolha do tempo dentro de compassos ou frases. Isso é normalmente realizado mediante trocas em bases iguais, quando uma nota tocada ligeiramente mais tarde em relação à marcação estrita é compensada por outra tocada ligeiramente mais cedo, de modo que a frase, tomada como um todo, não deixa de respeitar o seu tempo. Esse recurso é chamado na linguagem musical de “Rubato” ou 


“Tempo rubato” do italiano - “Tempo roubado”. 


                      A estrutura da forma do Prelúdio n.2 é  ternária (A – B – A1). A imagem geradora é apresentada no início da obra, através do encadeamento tradicional do choro nas funções de tônica (I grau), dominante da dominante (V do V grau), e dominante (V grau), as quais se repetem com centro na subdominante. A partir do compasso 23, Villa apresenta um encadeamento de V’s estendidos, ou seja uma seqüência de dominantes de dominantes (V de V’s graus) que se sucedem.



Compasso 23: 


                      Destaco duas diferenças importantes, as quais devem ser observadas pelo interprete, pois trata-se de erro de edição: no compasso 02 da partitura editada, da segunda para a terceira nota aparecem (sol – mi – ligadas), enquanto que no manuscrito as notas corretas são (sol e fa# - ligadas). No compasso 23, aparecem na partitura editada as duas últimas notas (ré – lá – ligadas), enquanto que o correto é mostrado no manuscrito, onde a nota escrita é “dó natural”.


Comp. 2 – manuscrito                Comp. 23 – manuscrito


                     A seção “B” apresenta um harpejo de combinação repetitiva em semi-colcheias, onde pode ser observado a visão futurística do compositor em valorizar a simultâneidade do som, onde a melodia não é o motivo principal, e se apresenta subtendida na região grave do instrumento. Esta seção se inicia com um acorde de F#, que muda de casa (passeia por diferentes regiões do instrumento) porém com o mesmo desenho de digitação, mantendo um pedal harmônico nas segunda e primeira cordas, sendo este um efeito muito característico da estética violonística de Villa-Lobos, na qual ele utiliza como recurso criativo, os próprios recursos naturais oferecidos pelo instrumento, na exploração de suas cordas soltas, dando maior liberdade de ação à mão esquerda do instrumentista.



                      O manuscrito apresenta um sinal de coda no compasso 16 e FIM no 33. Na obra editada não aparece o sinal, e sim a repetição do trecho equivalente a este período à partir do compasso 106.  Seu percurso de experimentação,  mostra a intenção do compositor em repetir   apenas este motivo para terminar a obra, porém na Seção (A1) o compositor repete a Seção (A) completa, caracterizando uma mudança de idéia. Por isso na obra editada a Seção (A) é repetida por inteiro, à partir do compasso 91,  sem a necessidade do sinal de coda.   


16                                            33

       obra editada compasso 91


 

 


                      No compasso 34 (último da Seção “A”) no segundo tempo o bicorde se apresenta no manuscrito com “Ré bequadro”  e  “Mi sustenido”. Na partitura editada esse bicorde não aparece com “Mi sustenido”, e sim natural. Neste caso existem duas possibilidades:

                      1) Villa teve a intenção de cromatizar o baixo (mi, mi#, fa#) na ascendente, em contraste com a outra nota de cada bicorde na descendente (re#, re, do#), o resultado sonoro neste movimento contrário é satisfatório, por isso não podemos considerá-lo um erro no manuscrito, porque o erro pode ter acontecido na edição da partitura.

                      2) Villa em seu percurso de experimentação, ao editar a obra, resolveu mudar do movimento contrário para o movimento oblíquo, onde uma voz se mantém na mesma nota enquanto a outra se movimenta em qualquer direção, cujo efeito sonoro também é satisfatório.

 

                      Como já observamos a caracterização de alguns erros de edição, fica a dúvida, neste caso, se houve o erro na edição, ou se foi intenção do compositor de fazer essa alteração ao  editar a obra.

Compasso 34 – manuscrito



Compasso 34 – obra editada



                   Villa-Lobos não indicou no manuscrito, na Seção “B” – Più Mosso, apenas a barra dupla de compasso e alteração na armadura de clave para 05 sustenidos, modulando de “Mi maior” para “Si maior”, sendo que nos 03 últimos compassos dessa segunda Seção (88, 89 e 90), fica caracterizado a tonalidade de “G#m” com a presença de “F##” (referente a escala de G#m harmonico).

 

     Compassos 88, 89 e 90 – obra editada:

 



                      No compasso 79 existe mais um erro de edição. No manuscrito o dedilhado tem duas notas “si”, a segunda e a última, as quais na partitura editada foram trocadas por “la#” e “sol#” respectivamente. Neste caso não existe dúvida sobre o erro na edição, pois tanto fica incoerente para se digitar, como também durante toda esta Seção “B”, Villa desenvolve sua temática sobre o mesmo desenho da mão esquerda, mudando apenas de região.

 


Comp. 79 – manuscrito                Comp. 79 – obra editada

 


                      Outro erro de edição pode se observado no compasso 96. A primeira nota “Ré#” , foi trocada na partitura editada por “Si”. Também não existe dúvida neste caso, pois trata-se do acorde de “B” em cadência para o acorde de “E7” , onde a nota “Re#” (terça de Si), passa para “Re natural” (sétima de Mi). Também podemos observar que este compasso é a repetição do compasso 06, onde a nota “Re natural” aparece em bicorde com o baixo “Mi”.

        

 Comp. 96 – manuscrito                 Comp.96 – obra editada


CONCLUSÃO

Os solos virtuosistas dos Chorões, com suas estruturas improvisadas e modulações surpreendentes, somados a  boemia do Rio de Janeiro, aparecem em ressonância no Prelúdio n.2. A simultâneidade dos acordes em blocos harpejados com as campanelas em pedais repetitivos da segunda e primeira cordas soltas  (si - mi), correspondem ao esteticismo futurista e aparece como uma textura tônica e ritmicamente complexa, muitas vezes fortemente dissonante.

                      Villa-Lobos sempre se interessou em experimentar novas sonoridades para o violão, e neste Prelúdio ele consegue o extremamente complexo, e o extremamente simples, o banal e o profundo, andamentos seqüenciais e auto-repetitivos estáticos e energia rítmica. A passividade e a atividade do temperamento latino, em especial a do malandro carioca,  se alternam com qualidade intrínseca a obra.

                      Os monumentais contrastes em sua obra são sinônimos de sua personalidade, bem como de suas múltiplas influências do rico folclore brasileiro, da grandiosidade do seu país, e criatividade de seu povo. 

                      Villa-Lobos desenvolve o pensamento como tradução intersemiótica em seu caráter de transmutação de signo em signo, onde qualquer pensamento é necessariamente tradução. Villa procura traduzir suas imagens do pensamento em imagens geradoras de sua poética, através de códigos sonoros muito pessoais, em representações de signos icônicos a sonoridade do violoncelo, e aos desenvolvimentos do baixo melódico tradicional ao choro, criados de forma genial na região grave do instrumento.

                      Em seus recursos criativos, Villa explora toda extensão do braço do violão, usando as cordas soltas como pedal harmônico, para maior liberdade da mão esquerda no desenvolvimento melódico, e nos saltos contrastantes de regiões.

                      No Prelúdio n.2 podemos observar os princípios éticos e estéticos, de caráter geral, que indicam o momento singular que esta obra representa. Na série dos 05 Prelúdios de Villa-Lobos, podem ser identificados gestos sucessivos e múltiplos numa inter-relação de pensamento profundo, o qual se desenvolve num percurso de experimentação em processo de tendências poéticas nacionalistas.

                      A criação é um ato comunicativo. O processo de criação mostra o projeto poético que a direciona.

 

BIBLIOGRAFIA

Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. (1997). O que é a   filosofia? São Paulo: Editora 34,  tradução Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz, 2ª edição.

 

Salles, Cecilia Almeida. (1998). Gesto inacabado : processo de criação artística. São Paulo: FAPESP : Annablume.

 

Santaella, Lúcia. (1998). A percepção : uma teoria semiótica. São Paulo: Experimento: 2ª edição.

 

Síntese curricular do pesquisador

Fernando Antonio Pacheco, guitarrista, compositor, e professor de música, natural de Santos (SP) – Brasil. Formado em violão clássico pelo Conservatório Musical Heitor Villa-Lobos (SP). Bacharel em Música – instrumento violão – Faculdade Mozarteum de São Paulo. Pós Graduado em Didática pela Faculdade São Luis – Jaboticabal (SP). Mestrando em Comunicação e Semiótica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), onde desenvolve um trabalho de pesquisa, na área de Crítica Genética em Música, sobre o processo de criação dos 05 Prelúdios para violão solo de Heitor Villa-Lobos, sob orientação da Profa. Dra. Cecilia Almeida Salles.

Fernando Pacheco

Tel/fax: (35) 423-0313

E-mail: fpacheco@net.em.com.br

 

Esta pesquisa esta sendo realizada com o apoio da Fapesp