Aspecto verbal no grego antigo

 

SILVIA COSTA DAMASCENO (Professor Adjunto de Língua e Literatura Grega da UFF e Coordenadora do Setor de Grego da mesma Universidade)

O estudo da Gramática situa-se entre as várias indagações feitas pelos gregos, na busca do entendimento do mundo. Discutia-se, a partir do V século a.C., o caráter natural ou convencional da língua: seria ela natural, estaria em consonância com a physis, adviria de princípios eternos e imutáveis, fora do próprio homem, ou seria uma instituição convencional, resultante de um contrato social entre os membros de uma comunidade?

De todas as contribuições para os estudos lingüísticos, sem sombra de dúvida, a dos estóicos ocupa um lugar relevante, não somente para o estudo da língua grega, como também por servir como ponto de partida para os posteriores  estudos das línguas indo-européias, em geral.

Segundo a filosofia estóica, a conduta correta humana deveria pautar-se em se buscar viver em conformidade com a natureza, e assim, pois, o verdadeiro conhecimento consistiria  em colocarem-se em consonância, idéias e natureza. Partindo-se desse pressuposto e, sendo a língua, veículo do pensamento, os estudos lingüisticos ocupavam  lugar essencial nesse sistema filosófico.

Entre os aspectos lingüísticos relevantes descobertos e descritos pelos estóicos, situa-se a distinção, no verbo grego,  de duas noções lingüisticas expressivas do tempo: a noção de tempo propriamente dita e a de aspecto. Do ponto de vista físico, ambas as noções, referencialmente, baseiam-se no tempo concreto; mas, do ponto de vista semântico, diferem: o tempo propriamente dito  localiza o fato enunciado em relação ao momento da enunciação. Em geral, são as noções de presente, passado e futuro e suas divisões. Como diz Luis Martins (1974: 8. Dissertação de mestrado: Aspecto e tempo na flexão do verbo em português) “Chamamos de tempo gramatical à ordenação temporal que no verbo se manifesta por meio de significantes particulares. Estes possuem valor rigorosamente didático-temporal: situam o processo em relação ao agora realmente vivido do emissor em cada ato particular do discurso.”

Mas, para Mattoso Câmara no Dicionário de Filologia e Gramática (1964: 336), esta definição rígida de tempo deve ser acrescida da expressão do aspecto para compreender-se a forma verbal.

A  noção aspectual, que possui como referente o tempo físico, atém-se às noções de duração, instantaneidade, começo, desenvolvimento e fim, ou seja, explicita o tempo decorrido dentro dos limites do fato tratado. Assim sendo, configura-se como uma noção verbal, exprimindo a representação que o falante faz do processo expresso pelo verbo. Há enormes divergências sobre o assunto, o que levou Vèndryes a afirmar: “Il n’y a guère en linguistique de question plus difficile de celle de l’aspect, parce qu’il n’y a pas de plus contronersée et sur laquelle les  opinions divergent davantage (apud. A. Klum. Verbe et adverbe. D. 32, p. 23)

De modo sucinto, pode-se dizer que o tempo, no verbo indica o momento de realização da ação, ao passo que o aspecto encara a ação no seu grau de acabamento.

Os sábios alexandrinos continuaram os estudos lingüísticos anteriores realizados pelos estóicos, contudo sem levar em conta a noção de aspecto verbal. Modernamente, a ação verbal vem sendo enfocada sob os dois ângulos  -  temporal e aspectual – ressaltando-se a necessidade de se analisarem neles componentes lexical e semântico.  Em português, por exemplo, percebe-se que atribuir ao pretérito imperfeito meramente o caráter durativo no passado e, ao pretérito perfeito, a noção de completude, não explicaria frases do tipo: O ônibus levou parado duas horas.

Como se sabe, didaticamente, constroem-se esquemas na tentativa de se entender o funcionamento das línguas;  mas, sendo um organismo vivo, a língua está em constante mutação, escapa a esses esquemas, sobretudo, na oralidade. A frase em português citada demonstra esse fato.

Em grego, como em português, o presente do indicativo expressa a duração, seja  referindo-se ao momento da enunciação, seja uma duração eterna. Na Grécia, a partir de Heródoto, o primeiro historiador grego (480-425), o presente do indicativo ganha um novo valor expressivo, passando a ser empregado para descrever fatos passados; dessa maneira, o escritor consegue abolir a distância entre os leitores e os fatos narrados, presentificando-os diante dos leitores possibilitando uma melhor compreensão desses fatos.

Como relata Jean Humbert em Syntaxe grecque  (1972: 139) nas Histórias de Heródoto, 1-10, há um exemplo desse fato. Trata-se da passagem em que o rei de Sardes, Candulo, obcecado pela beleza da esposa, não consegue guardar para si esse segredo e o conta ao guarda do palácio, confidente do rei, chamado Giges. Candulo além disso, propõe ao guarda que este se esconda no quarto da rainha para vê-la  despida e comprovar o quão é bela.

Todas as ações que descrevem o movimento de Giges encaminhando-se para o quarto da Rainha para vê-la despida, e em seguida, aquelas que mostram o guarda saindo do quarto sorrateiramente, assim como os atos da Rainha despindo-se, são relatados em verbos com matiz de passado. No entanto, a ação que descreve a rainha percebendo o guarda no seu quarto, é contada no presente. (kai h gunh epora min  axionta. 1-10,C. E a mulher o (guarda) vê saindo.)

O surgimento inesperado de um presente, numa série de tempos passados, alcança grande expressividade; esse presente tenta  transmitir para o leitor o impacto provocado na rainha pela descoberta de ter sido vista despida em seu próprio quarto ou em sua própria intimidade. Realmente, nessa passagem, a serviço de uma maior expressividade, o presente perde seu aspecto durativo e passa a ter um forte valor pontual; não se cogita, nesse passo da duração da ação, mas sim, da ação pura e simples.

Percebe-se, nessa passagem, o que dissemos anteriormente: para análise da expressão verbal em grego, como em português, há que se levar em conta, não só a ação temporal, pura e simples mas também o aspecto; e em ambas as noções, o morfema lexical, bem como o aspecto semântico, aparecem combinados.

Habitualmente nas narrativas, o imperfeito pelo aspecto durativo do passado,  aparece com grande freqüência, embora não seja o único tempo verbal empregado; ao lado deste, os textos gregos valem-se do aoristo, tempo que exprime a ação pura e simples sem que  dele, se cogite duração ou acabamento. O aoristo indicativo exprime um fato passado, do qual a duração breve ou longa não tem nenhum interesse para o sujeito falante. Em realidade, ao empregar o aoristo o sujeito falante objetiva apenas a ação em si mesma, sem lhe importar o grau de acabamento.

Nas narrativas homéricas, a escolha do imperfeito ou do aoristo possui, muitas vezes, um caráter semântico mais acentuado do que o gramatical; se ao poeta interessa mais narrar os preparativos de um combate, ele emprega o imperfeito; mas se esses preparativos são corriqueiros ou usuais, usa-se o aoristo com seu caráter meramente pontual. Tal fato é percebido em Ilíada V,297-310, a seqüência de aoristos empregados demonstra que não interessa ao poeta alongar-se nos fatos narrados nesta passagem, ao passo que em Ilíada XV, 101-111, o acúmulo de imperfeitos  revela-nos a intenção de o poeta  descrever pormenorizadamente a cena. Nessa passagem Heitor incendeia as naves dos gregos e Homero relata a resistência heróica de Ájax, diante do inimigo que luta com furor.

Os exemplos podem ser multiplicados. Esperamos ter evidenciado, nessa breve comunicação, o quanto a pesquisa sobre o aspecto verbal pode ser profícua, tanto em se tratando de língua grega, como das línguas românicas em geral.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BARROS, Luiz Martins Monteiro de.    Aspecto de tempo na flexão  do  verbo  português.

Dissertação de Mestrado. UFF, Niterói, 1974.

CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. Rio de J    

Janeiro, J. Ozon Editor, 1964.

COSTA, Sônia Bastos Borba. O Aspecto em português.  São Paulo, Contexto, 1990.

HERÓDOTE. Histoires. Trad: E. Legrand. Paris, Les Belle Lettres, 1967.

 

HOMÈRE. Ilíade. Trad:  Paul Mazon. Paris, Les Belle Lettres, 1967.Tome I et III.

 

HUMBERT, Jean. Syntaxe Grecque. Paris, Éditions Klincksieck, 1972.

 

LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. Trad. Rosa Virgínia Mattos e Silva. São

Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979.