MORFOLOGIA WITTGENSTEIN E GEBRAUCH

USO SEMÂNTICO / USO SINTÁTICO

COMPETÊNCIA / DESEMPENHO

SIGNIFICADO / SENTIDO

O DICIONÁRIO: primeira instância

 

1. Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein critica a concepção (ou imagem) agostiniana da linguagem, segundo a qual o significado (al. Bedeutung) é precisamente aquilo que pode substituir, na linguagem, o objeto (al. Gegenstand). Assim, para Agostinho, haveria, na linguagem, uma referência para cada objeto, e a cognição geral do campo deste significado se daria pelo método da nomeação, que é, grosso modo, o que corresponde ao conceito wittgensteiniano de definição ostensiva - o qual, repita-se, há de ser por ele  rechaçado como ineficaz.

 

 

2. Assim se expressa Agostinho no Livro I (A infância), no capítulo 8: “Como aprendi a falar”:

 

             Retinha tudo na memória quando pronunciavam o nome de alguma coisa, e quando, segundo essa palavra, moviam o corpo para ela. Via e notava que davam ao objeto, quando o queriam designar, um nome que eles pronunciavam. Esse querer era-me revelado pelos movimentos do corpo, que são como que a linguagem natural a todos os povos e consiste na expressão da fisionomia, no movimento dos olhos, no gesto, no tom da voz, que indica a afeição da alma quando pede ou possui e quando rejeita ou evita. Por esse processo retinha pouco a pouco as palavras convenientemente dispostas em várias frases e freqüentemente ouvidas como sinais de objetos. (Trecho. A tradução é de J. Oliveira Santos, S.J, e A. Ambrósio de Pina, S.J.)

 

 

3. Como se percebe, Agostinho não repudia o fator afeição, que, também, reveste o conjunto da língua, esboçando, de certa forma, a noção de convêniencia ou inconveniência de uso de uma palavra; dá-se guarida, pois, não apenas ao aspecto referencial da linguagem, senão que, também, à sua faculdade de vir implicitamente carregada de um sem-número de subterfúgios apelativos e de manifestação psíquica, campo, ora, do que se circunscreve hoje à estilística. No entanto, é para ele, sem dúvida, mais nítida a noção de que aprender a falar é estar exposto àquilo a que Wittgenstein chamará de “definição ostensiva”, isto é, um objeto é apontado quando se pronuncia seu nome ( “[....] quando pronunciavam o nome de alguma coisa [....] moviam o corpo para ela”), pelo que se lhe detectará (a este objeto), alfim, esta designação a que se alude. Há, por detrás da faculdade de nomear, portanto, uma outra subjacentemente material, empírica, por assim dizer palpável.

 

 

4. Lembramos o levantamento que Freud faz em Totem e tabu, relativo às tribos que não mencionam os nomes dos mortos por verem, neste nome (assim como nos demais, das demais proveniências), algo demasiado concreto, objetivo, muito próximo da imagem agostiniana, talvez ainda num caráter um tanto mais “sólido” quanto mais primitivas - e, pois, indenes de influências alóctones - sejam-no essas culturas. Também havemos de fazer menção à obra de R. F. Mansur Guérios: Tabus lingüísticos. Muitos outros trabalhos envolvendo o nome próprio na obra de Guimarães Rosa haveriam de contribuir conosco; citamos apenas um deles: o de Ana Maria Machado, Recado do Nome. A fornecermos ainda extensa bibliografia concernente a tal tema, fugiremos da exigüidade intrínseca à essência deste trabalho, dando-se-lhe tessitura de todo em todo alheia a seu escopo.

 

 

5. Pois bem. Em vez daquilo, - de perlustrar nomes como fatos materialmente intrínsecos àquilo por eles representado, - Wittgenstein associa, ao conceito de significado, o de uso (al. Gebrauch), que seria, exatamente, fornecer não apenas o conhecimento do objeto a que se reporta aquele nome, que, tendo-lhe sido dado, deixaria serem previstas as situações, as circunstâncias diversas em que se lhe evocará a contento o próprio “representante” (cf. Ogden-Richards), ou, numa escola cuja primogenitura até hoje nos serve de esteio, por intermédio do  “significante” (cf. Sausure) que se reporte àquele “representante”, chancela que seja, este último, do “mundo dos objetos” (cf. Cassirer). (O conceito de nomes abstratos é uma decorrência inevitável da materialidade do nome em face de um real objeto. Falaremos acerca disso à frente.) Assim, poderíamos dizer que a noção de significado corre em parelha com a de uso, não com a de objeto, de que é, contudo, uma como primícia, conseqüência inconcussa: se se recorresse tão-só à definição ostensiva, só se poderia ter claro o uso de uma palavra mediante a prévia elucidação total da função que deveria ser desempenhada por essa palavra no jogo da linguagem, função seja sintática, seja semântica.

 

6. Tal premissa há de estender-se sobremodo facilmente ao plano contextual da sintaxe, não apenas ao plano situacional da vida; se de outro bordo compreendêramos, estivéramos muito mais circunscritos à imagem agostiniana da linguagem, decerto.

 

 

OBSERVAÇÃO: O grande mestre Gladstone Chaves de Melo, em pequeno - e precioso - prolegômeno a artigo na obra Estudos em homenagem a Cândido Jucá (filho) (Org. Simões Ed.), dá-nos uma como prévia (embora ampla) abordagem do quanto vimos dizendo até aqui; colacionamos tal trecho de seu artigo, aproveitando para subscrevê-lo integralmente, não só pelo que tange à parte que aqui expusemos, como por todo o mais, que, lamentavelmente, pela pequenez  deste trabalho, foi omitido (p. 99):

             (...) basta que se torne mais freqüente e mais generalizado o uso de um termo, para que se lhe vá alterando o conteúdo significativo, ora na linha do enriquecimento, da ampliação, ora na linha do empobrecimento, da particularização.

               Adiante, complementa:

              O que determina o empobrecimento, a redução do campo semântico, a restrição de sentidos é a desproporção entre o pensamento, a linguagem e o objeto. É a pobreza da linguagem, principalmente a carência individual do termo justo.

              Uma conclusão interessante que se tira ao trabalho do professor Gladstone aqui exposto e ao de Ullman (Semântica), posto que de certa forma incompatível um com outro, é que a extensão (do significado), à medida que se vai paulatinamente reduzindo, vai fazendo que o sentido aumente, ou que ganhe em intensidade o que perdera em extensão. Dessarte, um termo que tenha ampliada a sua aplicação, tornando-se uma espécie de chancela genérica no jogo da linguagem, tenderá, a pouco e pouco, a uma perda, ou a uma diluição ao menos, da intensidade com que fora, outrora, aplicado ao objeto que designava.  

             Como se vê, adotamos a diferença que há (e - assim nos quer parecer - deve continuar havendo) entre “significado” e “sentido”, ou, em outras terminologias (como a de Pierre Guiraud, só para darmos um exemplo), “sentido de base” e “sentido contextual”, “sentido”e “efeito de sentido” etc. É o sentido, grosso modo, o que Saussure chamou de “valor”: só nos será  efetivamente consubstanciado em função das relações específicas, do âmbito contextual em que se lida com aquele termo. Há, em inglês, diferença entre meaning (significado) e sense (sentido).  Guiraud nos aponta uma espécie de neutralização de que são passíveis as palavras no concernente à diferença que portam entre significado e sentido: trata-se dos casos de palavras técnicas, como (são exemplos do Autor) “sulfato de sódio” e “encefalite”. Aduzimos os casos de mutios oniônimos (Kodak etc.), que, não raro, não apelam sequer a radicais já existentes e correntes em certa língua. Cabe também a distinção aduzida entre “sentidos” e “valores estilísticos”, em que este último termo se reporta às associações extranocionais que dão “nova coloração” ao sentido. Com esses tais valores - diferentes do quanto se disse em referência aos saussurianos - se preocupa a Estilística; de aí que se pode dar, a eles, a designação, um tanto ou quanto mais específica, “valores expressivos”. E, por fim, constate-se que, com essa dicotomia, corre em parelha estoutra: “conotações”/ “sentido denotado”, conquanto nitidamente revestida de conceitos distintos, de cuja base, no entanto, parece provirem princípios diretores bastante similares.

              

 

7. Assim, com a noção wittgensteiniana que expusemos de significado, é perceptível que o treinamento (al. Abrichtung) centra-se no ensino (al. Lehren), e, mais do que isso, no que ele chama de ensino ostensivo (al. hinweisendes Lehren) de uma palavra, a partir do momento em que este, mais do que denominar um objeto, permite, ao usuário daquela palavra recém-aprendida, certa previsão de seu uso nas situações a que estiver mais intimamente relacionada, por razões que se não quer por ora aventar.

 

 

8. A noção de significado abarca, ainda, elementos outros, que, para nosso fim, não dizem respeito tão intimamente, sendo por isso o que até aqui expusemos bastante a nos servir de base aos estudos ulteriores, a que damos seqüência.

 

 

 

 

O DICIONÁRIO: segunda instância

 

 

 

9. Um dicionário deverá ser capaz de fornecer, dentro do possível, como dissemos, o ensino ostensivo de um determinado lexema: o seu significado será ensinado mediante as virtualidades e potencialidades, consubstanciadas, futuramente (e tendo-o sido, outrossim, previamente), pelo uso, ou no uso. Isto é: o uso de uma palavra é algo colhido dos corpora provenientes dos usuários da língua, as muitas situações diferentes possíveis àquela palavra. Uma vez assim inequivocamente detectados esses usos, devem ser previstos num dicionário para a sua manutenção, - enquanto os usuários não houverem por bem substituí-lo por outro, aprimorá-lo, esquecê-lo, especificá-lo, enobrecê-lo, vulgarizá-lo, estendê-lo etc., etc.

 

 

10. Transposições semânticas, contudo, não são tão necessárias num dicionário, não constituem pedras de toque deste, visto que o falante as poderá promover ininterruptamente mercê de funções por demais psicológicas e subjetivas (parole), de modo que não deveriam fazer parte do inventário comum, o dicionário (langue). (q.v. o parágrafo 225 e os seguintes: NEOLOGISMO SEMÂNTI CO).

 

 

11. Naturalmente, as denominações metafóricas, mas por já se constituírem em lexemas, são arroladas no dicionário - contanto que façam parte do interesse comum dos usuários da língua, ainda que interesse este comum a um grupo circunscrito qualquer, como grupos profissionais (de aí inclusive os dicionários de termos técnicos, ou especializados, ou glossários, ou de jargões, ou de gírias, ou de regionalismos etc.). Se não pensássemos dessa forma, não aceitando a denominação metafórica como processo de enriquecimento do léxico, refutaríamos lexemas como “vira-lata”, para designar um cachorro proveniente das ruas, onde, para alimentar-se, faz exatamente o ato que sua nomeação sugere; ou como “vaga-lume”, forma eufemizada, diga-se em tempo, de “caga-lume”, esta última mais ilustrativa da característica salientada no animalejo denominado. A diferença entre a metáfora e a redução e a ampliação de sentidos, parafraseando Bréal, é que, ao passo que aquela é uma associação subjetiva instantânea entre o objeto a ser nomeado e aquilo que lhe emprestou seu significante, ocorrem estas duas últimas como conseqüência paulatina de uma desproporção - sempre presente na língua - entre um objeto e aquele seu nome originário, que, dessarte, se vai transformando. (Interessante, aqui, seria ir-se ao verbete “transformação”, com todas as muitas remissões aí contidas, do “Dicionário de Filologia e Gramática” de Mattoso Câmara, que, em suas últimas edições, vem com o inexpressivo nome, certamente não aprovado pelo autor, se entre nós estivera, “Dicionário de Lingüística e Gramática”(!).)

 

OBSERVAÇÃO: Naturalmente, não está no escopo deste trabalho desenvolver a questão da elaboração de um dicionário. No entanto, faremos pequena digressão nesse campo.

 

Em primeiro lugar, muitos dicionaristas utilizam, para “entrada”, a expressão  “unidade léxica”, fiando-se no significante como ponto de partida para a fatura dos dicionários, alegando, para tanto, que nem sempre é uma palavra o que vem encetando um verbete, mas, às vezes, frases feitas (os sintagmas fixos - para Herculano de Carvalho, por exemplo, ou as lexias - para Pottier), e, até mesmo, apenas morfemas.

 

Pelo que entendemos, a expressão “unidade léxica” é algo falha, justamente pelo conceito intrínseco que houve por detrás da necessidade de sua adoção: saber que um dicionário não lida apenas com o léxico da língua, senão que, também, com seu eixo estrutural (paradigmático) mais profundo - por exemplo quando averba morfemas em seu rol de “dições”.

 

Quanto à questão dos inventários aberto e fechado - algo de fato diretamente importante para a elaboração de um dicionário -, têm os dicionaristas utilizado duas técnicas distintas, vertentes, embora, de um mesmo conceito. Assim, para as palavras do inventário aberto, utilizam a chamada “metalinguagem de conteúdo” (interessada no “significado” extralingüístico dessas entidades), ao passo que, para os elementos do inventário fechado, utilizam a chamada “metalinguagem de signo” (interessada nas possibilidades de uso dessas entidades gramaticais). Deverá haver uma conjugação das duas metalinguagens para ambos os inventários da língua, estando, assim, os dicionários, mais em conformidade com o uso wittgensteiniano.

 

A lei que rege a fatura dos dicionários, já tendo em vista que mais aplicada diretamente em relação às entidades do inventário aberto, é a lei sinonímica, segundo a qual um significante deve ser igualado, para uso e técnica lexicográficos, a um de seus significados (no caso, naturalmente, de aquele significante possuir mais de um significado), como numa espécie de aposição ou superposição didática. Assim, são virtuemas quaisquer complementos ligados ao significante (incluindo-se os possíveis complementos circunstanciais) que possam, numa dada situação plausível para seu uso (daquele significante), afetar o entendimento do enunciado em que figura. Esses virtuemas podem ser, para só darmos um exemplo, os objetos diretos potenciais (como no caso de verbos cujo morfema lexical o seja também de seu objeto direto, sendo-o morficamente, ou no caso de verbo e objeto pertencentes a uma mesma família ideológica etc.), ou mesmo, num segundo patamar de análise, podem provir de má elaboração dos enunciados dicionarísticos de definição, as metalinguagens; é, este último, o caso de expressões do tipo: Diz-se do..., Ato de... etc. Pela lei sinonímica, infere-se, basicamente, que um verbo deva ser definido com um verbo, não com um substantivo; um adjetivo com um adjetivo etc., tudo isso obedecendo, também no enunciado, às arbitrariedades que se estipularam para a fatura, o que nos quer parecer óbvio.

 

Por fim, quanto à questão da divisão básica que fazem os dicionários (de que falamos no parágrafo acima), partem, eles próprios, dessa tal divisão, havendo, por conseguinte, dois tipos básicos de dicionário, ambos utilizando, grosso modo, aquelas duas metalinguagens de que falamos: 1) os semasiológicos, que partem do signo em direção aos significados e 2) os onomasiológicos, que, ao invés daquilo, partem do significado em direção aos signos.

       

No fim de contas, há, aqui, uma prova, dentre inúmeras outras, de por que se deve separar o conceito de lexicologia do de lexicografia, pois que, neste último, devem estar presentes preocupações com o método de inventariação das dições (ou entidades léxicas e morfêmicas) da língua; a questão de serem inventariados os morfemas gramaticais nos parece, portanto, apenas de valor secundário à lexicologia, não o sendo, contudo, à técnica lexicográfica.

 

12. A palavra composta é, com muito mais freqüência do que as derivações, advinda da expressividade popular, que encontra, nessa modalidade de formação, terreno geralmente benfazejo. Isso é bastante compreensível, na medida em que a palavra composta, bem ou mal, é a união de dois lexemas já devidamente consubstanciados em vocábulos que, no seio do povo, poderão, até, ter adquirido sentidos variados, em função de usos diversos.

 

 

13. Voltando aos questionamentos da linguagem apontados por Wittgenstein, um bom exemplo da questão do treinamento e do uso (que se relaciona, naturalmente, como se verá, à de competência e desempenho) está no elemento propulsor da formação de palavras.

 

 

14. Aplicaremos essa técnica em nossa exposição daqui para a frente.

 

 

15. Por termos utilizado as palavras compostas para ilustramos exemplos da relevância última da metáfora no dicionário (sendo este o depósito de algo já consagrado e propalado), utilizaremos, agora, casos de derivação.

 

 

16. Formamos palavras, muitas vezes, - na verdade, na maioria delas, -exatamente por necessidades impostas pelo conhecimento, internalizado (a competência), do conceito de uso, ou da necessidade de seu conhecimento, que, assim, se coloca em prática a todo o instante.

 

 

17. Mesmo em jogos de linguagem primitivos, somos capazes de discernir, por exemplo, 1) uma coisa de onde parta certa ação, 2) algo que caracterize ou especifique esta coisa (ou lhe seja um complemento indispensável, sem o qual o entendimento do núcleo se faz débil), 3) qual o processo (ou a ação) por ela descrito (e em que momento o foi) e 4) a que ponto chega, ou que ponto foi atingido por ela, a ação. Assim, teríamos, aqui, quatro situações básicas em que o uso imporia quatro (ou talvez, sob um parâmetro meramente sintático, três) significados (ligado este a toda a noção de uso) distintos.

 

OBS. Vendryès nos dá como exemplo (usado, embora, para aplicação quanto à diferença que estabelece entre mots et morphèmes; mas que bem pode ser por nós, com outro fim, utilizado) o caso de estruturas frasais como:

            Elle n’y a encore pas || voyagé, ta cousine, en Afrique [Ela ainda não || viajou, tua prima, para a África]  (...)  

         Poderíamos falar em casos de frases como: Pedro querer comida etc. Perceba-se como a utilização de apenas substantivos e verbos já nos permitiria comunicação.

 

18. Ora, sabemos que o próprio uso é, preliminarmente, determinado por ditames morfossintáticos, isto é, por um como mecanismo interno de funcionamento da língua em que sobejam, por necessidade do uso (vê-se um moto perpétuo), determinações classificatórias, categoriais etc.  

 

 

19. Se se quiser recorrer a um substantivo (ainda que se leve em conta que o usuário nem sequer conheça este conceito), por exemplo quando se quer pôr em uso um objeto direto ou um sujeito, há de ser ajustada morfossintaticamente a palavra com que se quer lidar, ajuste esse feito com os morfemas disponíveis na língua com a faculdade de substantivar aquela palavra (ou de nominalizá-la, se estivermos lidando com verbo que passa a substantivo por meio de afixos, ou de lexicalizá-la, caso, por exemplo, de algumas palavras compostas).

 

 

20. Por isso, ter-se-á formado uma palavra como, para termos um só exemplo, “utilização” tão logo se sentiu a necessidade de usá-la não como especificador de um núcleo (“útil”) ou como um processo descrito por esse núcleo (“utilizar”), mas, sim, como o próprio núcleo, ponto de chegada ou de partida de um enunciado: É preciso que conheçamos a utlização desse material / A utilização desse material é conhecida por nós; e assim por diante.

 

 

21. A própria questão de palavras que não mudam de classe ao se lhes aporem afixos é fator intrínseco à idéia de internalização do conceito de uso por parte do usuário: elementos novos que vão sendo adicionados a um morfema lexical vão dando-lhe especializações semânticas, o que, de certa forma, lhes reduz, ou ao menos restringe, o campo de atuação no jogo da linguagem. Com efeito, vê-se que a função precípua do prefixo é semântica (não é raro que muitos autores o concebam como caso de composição), de especializar o sentido do morfema lexical a que se antepôs, sendo, em geral, motivado, ao passo que ao sufixo cabe um traço de importância antes (embora não exclusivamente) sintática, o de promover atualização funcional de certas palavras nas orações ou nas frases em que se quer usá-las.

 

 

22. Repare como o conceito de lexema se liga, assim, intimamente, ao de formação de palavras: ao termos sentido a necessidade de reformular classificatória, semântica ou categorialmente uma palavra, fizemo-lo, num primeiro nível, quanto à entidade abstrata - o lexema -, partindo, dessa virtualidade (porém prestes à concretização), à atualização morfossintática. Portanto, a necessidade de reformulações lexemáticas (aumento do léxico) parte de necessidades, intuitivas que sejam, antes morfossintáticas, e o próprio ajuste devido daquelas entidades previamente abstratas, uma vez já prontas, depois de estarem estas concretizadas (vocábulos), enfim, se dará, também, por necessidades morfossintáticas, talvez não tão internalizadas em todas as pessoas (daí a necessidade do ensino da gramática), quais sejam as necessidades de atualização semântica (aquisição de sentido etc.), flexional (categorial), classificatória (sintática) etc.

 

CONCLUSÃO:

 

 

23. Para darmos cabo deste assunto, chegou-se à seguinte conclusão: o lexema é conseqüência ulterior do uso: em primeiro lugar, uma palavra “nasce” no meio dos usuários, sem que estes se dêem conta necessariamente dos mecanismos usados para aquela espécie de atualização (competência e desempenho unidos). Isto é, a formação de um futuro novo lexema parte da noção abstrata provinda exatamente de outro lexema já existente; algo como a “captação da essência de um vocábulo” (em outras palavras, o seu lexema), que está, este sim, em pleno uso. Desse passo, o falante, antes de dar o cunho abstrato àquela nova entrada, põe em uso o novo vocábulo - isto é, concreto -,  de que sentira necessidade, com tantas quantas sejam as flexões a ele pertinentes (ou sem elas, num vocábulo invariável). Só então um dicionário se dará conta de que há, surgida e efetivada, aquela nova entidade abstrata, pela qual passa, a partir de então, a ser responsável, dando-lhe a chancela da consagração da langue - o lexema, por fim, veio a lume.

 

 

24. É algo semelhante ao que nos diz Câmara Cascudo em seu excelente Dicionário de Folclore (verbete: lobisomem): Porventura o mito nasceu do rito, assim como da crença vem a enfermidade. O rito é o próprio uso, concreto, e o mito é a abstração desse uso - o lexema -, sua essência imaterial. Antes daquele rito, contudo, assim como antes da crença, houve um sem-número de fatores que sugeriram a necessidade das suas existências: portanto não se poderá prever com facilidade quem tenha vindo antes, o mito-enfermidade-lexema ou o rito-crença-vocábulo. No próprio enunciado de Câmara Cascudo se vê alusão a tal impasse, a tal dualidade: no primeiro núcleo (rito ® mito), parte-se do concreto para o abstrato; no segundo (crença ® enfermidade), do abstrato para o concreto. E em ambos há verdade (q.v. par. 308)

 

 

NÓTULAS FINAIS:

 

 

    Remetemos o leitor às Investigações Filosóficas e ao Tractatus logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein; ao De magistro e às Confissões de Santo Agostinho, onde se percebe bem claramente o seu ponto de vista quanto à linguagem, acepção (ou imagem) que foi alvo de Wittgenstein; aos livros Wittgenstein - O eu e sua gramática. São Paulo, ed. Ática, 1995, de Sílvia Faustino, e On the foundation of knowledge. London, D. Reidel Publishing Company, 1979, de M. Schlick.

 

 

      Especial relevo para o livro Semântica I, de J. Lyons, que traz, na introdução (cujo subitem 1.1 é “O significado de ‘significado’”), já no subitem 1.2, minucioso estudo sobre a distinção entre uso e menção, baseado na possibilidade da língua de apresentar “reflexividade” (falar de si mesma) e em estudos de Quine sobre a notação aconselhável ao se usar uma palavra ou ao mencioná-la. Faz citações à relevância do conceito de “uso” em Wittgenstein, reproduzindo seu aforismo “o significado de uma palavra é o seu uso na língua”. Há também a célebre frase de Humpty Dumpty de Alice in Wonderland: “Quando uso uma palavra, ela significa exatamente o que pretendo que signifique - nem mais, nem menos.” De nossa parte, trazemos outro trecho do mesmo personagem (a tradução é nossa):

 

 

 

    - Não fique aí engrolando [palavra que tomamos à tradução de Sebastião Uchoa Leite] as coisas assim - disse Humpty Dumpty, olhando para ela pela primeira vez - mas diga de uma vez qual é o seu nome e o que faz.

      - Meu nome é Alice, mas...

      - É um nome bem idiota! - interrompeu Humpty Dumpty com impaciência - Que significa?

      - Deve um nome significar alguma coisa? perguntou, com muitas dúvidas, Alice.

     - Claro que sim - respondeu Humpty Dumpty - O meu nome significa a forma que tenho (...)

Ainda a respeito desse livro, trancrevemos, por fim, a 1. estrofe do JAGUADARTE, cuja tradução é de Augusto de Campos:

 

 

                Era briluz. As lesmolisas touvas

                          Roldavam e relviam nos gramilvos

                Estavam mimsicais as pintalouvas

                         E os momirratos davam grilvos.

 

  Adiante, o próprio Humpty Dumpty esclarece a Alice que o poema é composto por “(...) palavra-valise: dois significados embrulhados numa palavra só.” (Briluz = brilho de luz. Lesmolisas = lisas como lesma. Touvas = toupeiras com forma de escovas. Roldavam = rodar como roldão. Relviam = revolver na relva. Etc.)

         É o caso dos ninhos semânticos em português (poderíamos usar, também, as expressões “palavras-valise”, “cruzamento vocabular”, “contaminação”, “palavra portmanteau” etc.), como em crionça (= criança + onça), aborrecente (talvez aborrescente) (= aborrecer + adolescente), sofressor (= professor + sofredor) etc.

         Devemos registrar o excelente estudo introdutório à obra de Lewis Carroll a que deu guarida Sebastião Uchoa Leite (Carroll, Lewis. “Aventuras de Alice no país das maravilhas - Através do espelho e o que Alice encontrou lá”. 3. ed., São Paulo, Summus Editorial Ltda., 1980, p. 21):

 

Como sistema, o material manipulado pelo nonsense são as palavras. Um jogo de equilíbrio entre significados diversos e por isso, informa Sewell noutro texto sobre Carroll [Sewell, Elizabeth. “The balance of brillig” (de The field of nonsense, 1952) in Alice in wonderland. Norton critical edition, op. cit.], seu terreno mais fértil são os trocadilhos e os portmanteaux (e por causa desse equilíbrio, o mestre da lógica do nonsense, está sentado sobre um muro estreito).    

 

       Um pouco abaixo (na mesma página), prosseguindo seu industrioso estudo, acrescenta Sebastião Uchoa Leite:  

 

O nonsense é um processo em si mesmo, sem qualquer outra finalidade. É pura superfície, conclui Holquist [trata-se de Michel Holquist, em sua obra “What is a Boojum? Nonsense and modernism” (publ. orig. in Yale French studies, 1969) in Alice in wonderland. Norton critical edition, op. cit.]. É uma violência contra a semântica, “mas, desde que é sistemático, o sentido do nonsense pode ser apreendido” [sublinhamos]. E nisso é que Holquist vê o maior valor do nonsense e de seu mestre Carroll, o de chamar a atenção para a linguagem, para o fato de que ela não é só algo que conhecemos, mas algo vivo, em processo,“algo a ser descoberto”.Acrescentaríamos nós humildemente: Algo em si mesmo, independente, até certo grau, do mundo.

 

            Importantíssimo foi, por fim, o ter Sebastião Uchoa Leite salientado a relevância da obra “Wittgenstein, nonsense and Lewis Carroll” (publ. orig. in The Massachussets review, 1965, in Alice in wonderland. Norton Critical Edition, op. cit.), de George Pitcher

          Em trabalho de extrema competência, baseado na primogenitura de Louis Guilbert sobre os neologismos em língua francesa (cujas obras principais, - La formation du vocabulaire de l’aviation; Le vocabulaire de l’astronautique e La créativité lexicale, - têm, com efeito, sido propulsoras de  muitos - mas ainda escassos e insuficientes - trabalhos de neologismo em português), Ieda Maria Alves (Neologismo - Criação Lexical, São Paulo, Ática, Série princípios, 1990, p. 69-70), baseada em corpus jornalístico, assim versa sobre o fenômeno (ou mecanismo) de palavra-valise, exemplificando-o com trechos atualíssimos, porquanto, como dissemos, recolhidos da imprensa escrita e da linguagem publicitária dos últimos anos:

 

         Por meio do processo denominado palavra-valise, em que também se manifesta um tipo de redução, duas bases são privadas de parte de seus elementos para constituírem um novo item léxico: uma perde sua parte final, e outra sua parte inicial.

 

        Vamos aos exemplos por ela arrolados:

 

(1) “os ‘brasiguaios[brasileiros + paraguaios; sublinhamos], como são chamados os brasileiros que retornaram do Paraguai atraídos pela reforma agrária” (E, 12-04-86: 2, c. 2).

 

                                                         [...]

 

(2) “‘Descobri que mexer com música faz um bem danado’, define aatriz, que interpreta Cazuza, Chico Buarque, Marina e também C. Gardel e C. Miranda. No show, ela não esquece os números de platéia. ‘Ainda sou uma atriz’, justifica a versátil e bela ‘cantriz’” [cantora + atriz; sublinhamos] (IE, 02-03-88: 60, c. 1).

 

                                                         [...]

 

(3) “A. Moreira Lima encarna uma espécie de mito brasileiro (atualíssimo, aliás, neste período de Novelha [nova + velha; sublinhamos] República) [...]” (F, 24-04-85: 53, c. 1).

 

                                                         [...]

 

(4) “[...] quando serão distribuídas milhares de flores para a população e ‘showmícios[show + comícios; sublinhamos] em regiões carentes como a Baixada  Fluminense e a zona oeste da capital” (F, 02-11-86: 14, c. 4).

 

.

               Numa letra de música de Tim Maia (Razão de sambar), o autor faz-nos quase crer que uma palavra tão de nós conhecida - valor - é, na verdade, uma “palavra-valise”. Assim sendo:

 

     (...) meu samba

            tem seu lugar

            de real valor

            e valente como dor (...)

 

        Poderíamos crer, pela ambiência da letra, que a palavra valor é um ninho semântico de valente + dor. Isto é: o significado de base de uma palavra é como que sobrelevado por um sentido apenas apreensível (e, repita-se, “superior”) em certa atmosfera semântica específica, fora da qual não haveria razão para ele (o sentido de que falávamos), estando, portanto, somente naquele local, a verdadeira “razão de sambar”, nem além , nem aquém.

 

         Parece-nos ter ocorrido algo semelhante quando João Cabral de Melo Neto, em seu poema Mulher cidade, assim procede:

 

      (...) nunca se saberá

             se viva a cidade      

             ou a mulher melhor

             sua mulheridade.

 

         Pode-se ter, com este último vocábulo, a impressão de que se trata, muito mais do que de uma derivação (sufixal, com o sufixo -idade), de uma palavra-valise desta nova palavra derivada com uma outra, composta, dessa vez, dos vocábulos mulher e cidade (como o é o título do poema), além de, aí contido, o vocábulo melhor do verso anterior, em paronomásia, naquele verso, com mulher: houve, pois, palavra-valise entre, basicamente, uma palavra derivada, uma composta e outra (supletiva?), tudo isso calcado num neologismo inconcusso, em que não se deixou de ver, outrossim, o próprio - e autônomo! -vocábulo idade, espécie de concretização (ou libertação textual) de uma forma presa originária, o sufixo -idade, expressivamente, aqui sobretudo, formador de substantivos abstratos, ou, melhor dizendo, de abstrações, acima de tudo semânticas. 

 

 

                                  Hand-out  da Comunicação “Morfologia - Wittgenstein e Gebrauch”.

                                                                      Por Marcelo Caetano.

 

 

1) Uso semântico / Uso sintático; Competência / Desempenho; Significado / Sentido;

    O dicionário: primeira instância.

 

2) Crítica de Ludwig Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas, à imagem agostiniana da linguagem: Bedeutung (significado) e Gegenstand (objeto).

 

3) A imagem de Santo Agostinho exposta no Livro I (A infância) de suas Confissões, de que tirou Wittgenstein subsídios à consecução de sua defesa.

 

4) O conceito de Gebrauch (uso) vs. o de hinweisendes Lehren (definição ostensiva): função vs. “representante” (cf. Ogden-Richards) do “mundo dos objetos” (cf. Cassirer).

 

5) Gladstone Chaves de Melo e as alterações semânticas.

 

6) Breve cotejo com Ullman, Guiraud, Bréal, Bally e Saussure.

 

7) Abrichtung (treinamento) e Lehren (ensino) como pedras de toque do manejo internalizado sintático-semântico.

 

8) O dicionário: segunda instância.

 

9) A técnica wittgensteiniana de definição (ensino) de lexemas (ora verbetes, ora cabeças): o real e o virtual (ou potencial).

 

10) A transposição semântica em face da dicotomia langue/parole.

 

11) As denominações metafóricas.

 

12) Um adejo na técnica lexicográfica tradicional de fatura e arrolamento das dições: “entradas”, “unidades léxicas”, “metalinguagem de conteúdo”, “metalinguagem de signo”, “inventário aberto”, “inventário fechado”, “lei sinonímica” e alguns outros pontos.

 

13) O uso wittgensteiniano como propulsor da formação de palavras: a composição e a derivação; elementos motivadores.

 

14) Vendryès e o “jogo primitivo da linguagem”.

 

15) O uso e os ditames morfossintáticos previamente concebidos.

 

16) Reformulações - categóricas, semânticas, classificatórias, funcionais e distribucionais - dos elementos mórficos concretos e abstratos. Ainda em busca de um método.

 

17) Conclusão: ilustração através de comentário de Luís da Câmara Cascudo.

 

18) Nótulas finais: bibliografia subjacente recomendada e comentada; exemplário extraído de Alice in Wonderland, João Cabral de Melo Neto e Tim Maia. A imprensa escrita e os neologismos semânticos (em trabalho baseado na obra de Louis Guilbert sobre os neologismos em língua francesa). Estudo de Sebastião Uchoa Leite como introdução a “Alice no pais das maravilhas” e “Através do espelho e o que Alice encontrou lá”.

 

 

ALGUMAS INFORMAÇÕES OPERACIONAIS:

 

O presente trabalho, - ajustado aos limites de uma comunicação para congresso, - possui 13 páginas digitadas em letra de corpo 14, sendo sua leitura prevista para 15 minutos; é ele, repita-se, uma como redução programática de trabalho monográfico extenso (130 páginas em letra de corpo 12) intitulado Morfologia: tentativa de elaboração terminológica, apresentado como monografia final de curso de mestrado na disciplina “Tópicos de Morfologia”, ministrada, em 1999, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pelo Professor Doutor José Carlos Azeredo. O original desta redução que ora se apresenta foi escrito em alemão, pois que endereçado a congressos em Viena e Berlim, sendo a presente versão, em português, empresa do próprio autor, cujo fito expresso está em expô-la, agora, em congressos de língua e literatura já no Brasil, já em Portugal, já, enfim, em nações que compartilhem a língua portuguesa.