Universidade Federal Fluminense
Centro de Estudos Gerais
Instituto de Letras
Departamentos de Letras Clássicas e Vernáculas e de Ciências da Linguagem
Grupo de Estudos Discurso & Gramática
Projeto integrado: Gramaticalização e integração no encaixamento de cláusulas
Autora: Cíntia Faria de Souza
Orientador: Sebastião Josué Votre

 

POR UMA ABORDAGEM FUNCIONAL DA ORDENAÇÃO SINTÁTICA
 
NO PORTUGUÊS ARCAICO

INTRODUÇÃO

 

    Este trabalho, inserido em pesquisa do projeto integrado Gramaticalização e integração no encaixamento de cláusulas, consiste em um breve estudo acerca da ordenação dos constituintes S (sujeito), V (verbo) e O (objeto direto) no português arcaico (PA), em que a ordem não é considerada uma opção essencialmente estilística, mas imbuída de significado.

    O levantamento da ordenação vocabular baseou-se em Vita Christi, traduzido/adaptado para o português em 1495 - época em que não existia uma gramática padrão que pressionasse a língua normativamente, aproximando-se mais, assim, a linguagem escrita da oral.

    Consideramos que o caráter do livro influencia em sua sintaxe, ou seja, que a sua integração semântica afeta a sintática. Como texto religioso, Vita Christi é um discurso “amarrado”, que, como detentor de verdade, não pode deixar margem a outras interpretações. Um dos recursos mais utilizados, para dar-lhe esse aspecto de integração, é o uso da repetição, girando o texto em torno de uma mesma temática, utilizando diversas metáforas, diversos significantes, para atingir o mesmo significado: provar que Deus é Cristo, que ambos sejam coeternais.

    Com base nos pressupostos do Funcionalismo norte-americano (suporte teórico desta abordagem), procuramos apontar algumas tendências acerca da disposição sintática linear de S, V e O. Para isso, consideramos apenas as cláusulas transitivas prototípicas como fonte de investigação. As demais construções (intransitivas, transitivas indiretas, de ligação), por não corresponderem aos requisitos necessários à análise, foram excluídas juntamente com as cláusulas iniciadas por pronome relativo, cujas funções são sujeito e objeto. Ainda entre as excluídas, estão as “estruturas cristalizadas” (construções que atingiram um alto grau de fixidez), as construções de infinitivo com acusativo (ICA), as cláusulas apositivas e as transitivas diretas preposicionadas.

 

EXEMPLOS

 

- cláusulas que não são “transitivas diretas”:

     * “ Nom procede o Verbo do Padre per obra ou procedimento” (§  69)

- cláusulas iniciadas por pronome relativo:

     * “Esta vitória da morte havia de haver aquel que tevesse tam gram caridade”  (§ 95)

- “estruturas cristalizadas”:

     * “mas verbo ou palavra nom soo se diz respecto do que o diz”  (§ 67)

     * “E como quer que o Verbo seja acêrca de Deus...”  (§ 70)

- cláusulas apositivas:

     * “E disse o ângeo: ‘Tua molher te parirá  ua filha...’ ”  (§ 102)

- construções de infinitivo com acusativo (ICA):

    * “alguus hereges (...) diziam Cristo seer puro homem”  (§ 66)           

 

    Quanto às tendências básicas de ordenação vocabular no português arcaico, um exame dos dois primeiros capítulos de Vita Christi permite que se formule a tabela abaixo:

VO ® verbo transitivo + objeto direto

SVO ® sujeito + verbo transitivo + objeto direto

VOR ® verbo transitivo + objeto direto oracional

SOV ® sujeito + objeto direto + verbo transitivo

OV ® objeto direto + verbo transitivo

VORi ® verbo transitivo + objeto oracional (infinitivo)

 

 

 

nº bruto

%

VO

167

48

SVO

48

14

VOR

37

11

SOV

28

8

OV

21

6

VORi

7

2

Outras ocorrências

34

11

Nº DE CLÁUSULAS

 

342

 

100

 

 

    Observando a tabela das ocorrências, os dados coletados e a freqüência de determinadas construções, percebe-se uma manifestação de fusão entre o verbo e seu complemento, evidenciando a atuação de um dos princípios básicos da perspectiva funcional: a iconicidade, que propõe a relação função > forma como motivadora dos usos lingüísticos. A iconicidade, aqui, apresenta-se com duas dimensões: distância e ordem. De acordo com o subprincípio da distância, entidades que se encontram mais próximas entre si no plano do conteúdo tendem a posicionar-se próximas no plano sintático. Assim, ainda que se considere SVO (Sujeito-Verbo-Objeto) a ordem “normal” dos enunciados, verifica-se que, na maior parte das ocorrências, o sujeito não tem realização fonética. Essa preferência pela ordenação VO demonstra que o objeto tende a aparecer unido ao verbo, manifestando um processo de fixação da ordem.

    O alto índice de posições vazias na função de sujeito evidencia em favor da hipótese que prevê que o sujeito em geral é “velho”, já conhecido. Uma vez que a obra verse acerca da vida de Cristo, é natural que, em geral, o sujeito seja o próprio Cristo. Assim, se no fluxo da informação o sujeito for o mesmo, tende a ser “apagado” (não expresso graficamente). O mesmo acontece, muitas vezes, quando o sujeito é marcado no morfema número pessoal do verbo.

    Considerando a hipótese de que a integração semântica mantém estreita correlação com a sintática, notamos que um dos motivos-chave para que a fusão entre V e O exista é o fato de o verbo não fazer sentido sem o seu complemento, integrando-se este àquele sem a interposição de conectivo. Quanto mais próximos estiverem o complemento e o verbo, mais estarão integrados. Essa integração será aqui observada sob o enfoque de uma gradação (menos integrado/mais integrado). Assim, podemos dizer que as orações completivas desenvolvidas, por exemplo, são menos integradas à principal (porque se ligam a ela através de conectivo) do que as reduzidas, que se ligam à principal diretamente, sem intermediário.

 

1. VERBO + COMPLEMENTO

- VO       1.“ ‘[Como] o esplendor nace da sustância do sol, assi entendamos o Filho geerado da sustância do Padre’ ”  (§ 84)

                2.“ (Maria) Fugia os gabos, seguia a razom, amava a virtude  (§ 109)

                                                                                                             

    Os exemplos acima manifestam a fusão entre o verbo e seu complemento. Ambos ligam-se diretamente, sem a interposição de elementos.

                                                  

- VOR     3.“(evangelista Sam Joam) Demostrando como o Verbo se há a tôdalas criaturas em geeral...”  (§ 77)

                4.“Conveo, e nom é maravilha, que ela tôda sua vida vivesse sem pecado  (§ 103)                                                                                                 

 

    Nos exemplos 3 e 4, o objeto oracional, que complementa a principal, mantém sua identidade em relação à outra oração, possuindo um sujeito próprio (distinto do da principal) e um verbo finito. Dentre as orações desenvolvidas, podemos falar em graus de integração. A cláusula subordinada 4, por exemplo, é menos integrada à principal que a 3, uma vez que não se liga diretamente ao verbo que complementa.

 

- VORi    5.“cobiiçando tirar algumas gotas, tomemos comêço na divinal geeraçom de Jesu Cristo”  (§ 66)

                6.“Pêsa-me haver feito o homem  (§ 96)                   

 

    Na oração reduzida de infinitivo, o grau de integração com a principal é maior do que na desenvolvida, porque há perda do conectivo (o infinitivo ligando-se diretamente ao outro verbo), supressão do sujeito (por ser igual ao da principal) e redução flexional, perdendo o verbo suas características pessoais e temporais. Dentre as reduzidas, também há graus de integração. A cláusula subordinada 6, por exemplo, é menos integrada do que a anterior, porque um objeto indireto se posiciona entre a oração principal e a subordinada.

    Passemos agora ao outro subprincípio da iconicidade: a ordem. De acordo com este subprincípio, observa-se a existência de cadeias tópicas, constituindo blocos em que a topicalização de O, através do seu deslocamento à esquerda, quebra a tendência que, nas línguas indo-européias, tem sido considerada “natural” (SVO) e não-marcada.

 

2. TOPICALIZAÇÃO DO COMPLEMENTO

- SOV     7.“Que Deus seja, a fé dereita dá dêlo testimunho, a Santa Scriptura o diz, a comparaçom das cousas a el o demostra, a razom natural o afirma, os santos o preegam e as criaturas o braadam, e tôdalas cousas per sua guisa o dizem: ‘el nos fêz, porque [é] Deus’ ”  (§ 81)

    No exemplo 7, a chave do tópico “Que Deus seja”, deslocado em primeiro lugar na oração, é retomado através dos complementos pronominais dos verbos que fazem parte da cadeia tópica, mantendo os objetos a posição de destaque. O elemento que possui maior relevância informacional, assim, funciona como ponto de referência, manifestando a topicalização do objeto uma estreita correlação com a relevância pragmática.

 

- OV       8.“As tuas mercees, Cristo, preegamos e a memória da tua doçura com grande avondança falamos” § 99

                9.“A arca tiinha duas argolas per que a traziam  (§ 113)     

 

    O elemento de maior importância informacional tende a ser colocado em primeiro lugar na oração. Nesse sentido, o objeto é deslocado à esquerda, pondo à primeira vista o que é relevante.

    O complemento tende a aparecer contíguo ao verbo (antes ou depois), o que reforça a idéia de fusão entre os elementos. Assim, também se pode falar em diversos graus de integração entre OV. Os complementos topicalizados em 8, por exemplo, mostram-se menos integrados ao seu verbo do que em 9. No primeiro, há a interposição de elementos entre o objeto e o verbo, o que não se observa no último.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

    A partir de dados de Vita Christi, considerado como documento representativo do Português Arcaico, postulamos que há uma relação icônica entre função e forma, que uma integração sintática reflete, na verdade, uma integração semântica. Esse é o princípio de iconicidade na dimensão da distância. Segundo o subprincípio da ordem, a alteração na construção SVO não é aleatória, mas característica de uma estratégia discursiva, que visa a pôr em relevo o elemento de maior destaque, enfatizando um constituinte em detrimento de outros.

    Nossa opção metodológica consiste em, inicialmente, tentar captar as tendências da ordenação, visando a trabalhar, num futuro, com a interpretação dos dados coletados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

MAGNE, Augusto. 1960. Vita Christi. Edição

  crítica dos incunábulos de 1495, traduzidos

  pelos monges do mosteiro de Alcobaça.  

  Rio: INL.

MARTELOTTA, M. et alii. 1996.

Gramaticalização no português do Brasil.

Rio: Tempo Brasileiro.

MATTOS E SILVA, R. V. 1988. Estruturas

Trecentistas: elementos para uma

gramática do Português Arcaico. Lisboa:

         Imprensa Nacional, Casa da Moeda.