CRONOS E AION NO TEMPLO ERÓTICO DE MAGMA,

DE OLGA SAVARY*

Maria Alice Aguiar (UERJ / UNIVERSO)

CRONOS E AION

Para melhor compreender  nossa proposta de  análise de algumas poesias do livro Magma[1], da poetisa Olga Savary,  retomaremos a conceituação de Cronos e Aion feita por Deleuze[2]. Segundo  o filósofo, para Cronos, só o presente existe  no tempo, enquanto,  para o Aion, o que subsiste no tempo é o passado e o futuro. Em  lugar de um agora, que estende seus  tentáculos ao passado e ao futuro, tornando o tempo sempre presente, há um futuro e um passado que fragmentam, a cada momento  do tempo,  o presente, e multiplicam, ao infinito, o passado e o futuro. Cronos, assim  conceituado, pode ser infinito sem, entretanto, ser ilimitado. É o movimento marcado dos presentes amplos e abismais. Desta forma, só o presente afeta Cronos. Sob sua égide marcha a ação dos corpos e as qualidade  corporais, a limitação e a infinitude, a circularidade e os acidentes desta mesma circularidade. 

  o Aion, para quem o presente não se faz presente, se instaura como espaço das vivências incorporais e dos atributos distintos das qualidades; é prenhe de efeitos que o povoam sem, entretanto, conseguir preenchê-lo; é ilimitado como o futuro e o passado, mas finito como o instante; estica-se em linha reta, incomensurável, nos dois sentidos. Sendo sempre passado e sempre devir,  Aion redimensiona-se como verdade eterna do tempo. Ainda pensando com  Deleuze, esclarecemos que é este mundo novo, dos efeitos incorporais ou dos efeitos de superfície, que torna a linguagem possível. É ele, o Aion, que  distingue a linguagem, retirando os sons de seu simples estado de paixões corporais, impedindo-a de confundir-se com os barulhos dos corpos; é por isso que a linguagem não pára de nascer. Nasce e renasce como a Phênix, em direção ao futuro interminável ou em direção ao passado insondável: limitadamente ilimitada. A consciência se produz através de um instrumento e este instrumento é o verbo, a palavra. Nossa proposta é analisar o discurso do amor, portanto um discurso erótico.

Destarte, o presente do Cronos tece uma rede de conjugação dos opostos -  todo o passado e todo o futuro estão contidos num presente eterno, porém corpóreo, a que podemos chamar, seguindo a teoria de Bataille, de descontinuidade. Para o filósofo, somos seres descontínuos, pessoas que individualmente morrem, numa aventura enigmática, marcada, contudo, pela nostalgia da continuidade perdida[3]. No entanto, o espraiamento de Aion em direção ao passado e ao futuro aponta para o imponderável, para o labirinto, para o tempo do a-tempo, a que Bataille chamaria de  continuidade, à medida que a morte tem, para o filósofo, o sentido da continuidade do ser, da busca de sua completude primordial.

Mergulhando no abissal presente de Cronos  e penetrando no imponderável labirinto de Aion, atravessaremos o livro Magma. E iniciaremos repensando o significado de seu título.

Magma, resíduo que fica após extraídas as partes mais fluidas de qualquer substância. Aquilo que subsiste. Remanescência.  Desejo do que permanece. Camada ígnea que está no centro da Terra. Centro ardente onde o Templo de Eros inaugura sua voz. Centro da terra-corpo de cuja potência ignescente se manifestam  imagens tão sedutoras quanto sigilosas; tão fendadas quanto obstruídas.   

O Centro é a zona do sagrado por excelência, assim como o erotismo também se funda como espaço do sagrado. Isto porque o sagrado evoca a união primordial ,  a inauguralidade do númem que abarca, a um só tempo, o santo e o diabólico, o ocultamento e a revelação, a vida e a morte, a continuidade e a descontinuidade. Todo ato de Criação se realizou a partir  de um centro, o que determina que todo ser só pode fundar sua existência num espaço sagrado: o centro do mundo, o centro de si. Todos os atos religiosos foram inaugurados pelos deuses. O homem não faz mais do que repetir o ato de Criação. Este pensamento nos encaminha aos rituais de renovação que se caracterizam como rituais que asseguram a continuidade da vida em seu aspecto descontínuo, e em sua versão contínua, pela morte.

ANÁLISE DE MAGMA

Os rituais de renovação de que acabamos de falar se consagram como repetição de um ato cosmogônico, e o ato sexual erótico nasce e renasce nesta concepção de renovante cadeia cíclica. Estendamos a idéia de renovante cadeia cíclica do ato sexual erótico para o livro Magma, que também se estrutura ciclicamente - como o  repetir  do ato da Criação -  transformando, cada Ato Erótico, na inauguração de uma Era, quando o  título do último poema do livro  Sumidouro é Sumidouro. Nossa incursão inicial pelo único poema deste livro se faz porque é significativo o fato de o poema Sumidouro fechar o livro homônimo, onde desponta o erotismo da obra savaryana e abrir o livro Magma onde corre solto o amor carnal[4]. A insistência desta imagem altamente fálica vai estender-se pelos poemas Sumidouro I, II e III que fecham Magma..

Sumidouro quer dizer abertura profunda por onde alguma coisa se some; escoadouro; fenda na terra.  E  é pelo sumidouro que some-surge, escoa-represa, que Olga Savary nos lança, vertente abaixo, pelo templo de Eros, a percorrer os tempos de Cronos e Aion. 

SUMIDOURO

Talha da audácia

da covardia, meu rei e vassalo,

engolir de pássaros

golpe de asa,

fartura de água

na árvore da vida,

na terra me tens

com os pés bem plantados.

Aqui nado, aqui vôo,

telúrica e alada.[5]

Depois de colocar- nas mãos do leitor a essência do que se sugou ao máximo,  e em nossa alma o espaço sagrado do Centro - Magma-fogo - a poetisa talha uma fenda em sua obra -  Sumidouro.  Sumidouro é talhe,  é  feição,  é corpo.  Corpo fendado à audácia e à covardia, à maculação do nobre e da beleza. E quem tem a feição de audácia e covardia é o objeto do desejo do eu poético: seu rei e vassalo. Entendemos, com Bataille, que o sentido último do erotismo é a fusão. O rei e vassalo, vistos aqui como objeto do desejo, estão próximos à fusão que  anunciam. É  o  desvelamento de um ser que prenuncia o instante em que o seu caráter de nobreza se desfará ante ao indistinto  da convulsão erótica. O rei, em sua amplitude, significa o mais universal e arquetípico que há no homem. A coroação de um rei equivale, por certo, ao estágio de culminância e culminação. É, talvez por isso.  que  todo homem tem o privilégio de ser chamado rei nos instantes culminantes de sua ordem existencial. Era tradição, nos casamentos da Grécia antiga, colocar-se, nos noivos, durante a cerimônia, coroas de metais preciosos,  pois o casal - rei e rainha do instante que vivenciavam - juntos, representavam a perfeita imagem da união do céu com a terra, do sol com a lua, do ouro com a prata, do enxofre com o mercúrio; a perfeita imagem hierogâmica.  É ao melhor de cada espécie que se devota o título de rei. É ainda no rei que se concentram ao traços do pai e do herói. Neste passo ficamos diante da questão edípica. O indivíduo se torna humano não pela razão mas, sim, pelo desejo. É enquanto desejo que o homem se revela a si mesmo como  um eu. Mas a psicanálise aponta-nos para um sujeito fendido. O cogito não é mais o lugar da verdade do sujeito mas o lugar do seu desconhecimento. Assim, podemos dizer que o sujeito da psicanálise é um sujeito que está ligado a uma sintaxe que ele próprio desconhece - o inconsciente - que, por sua vez, é recalcado, e  se manifesta nas dobras do discurso. Este recalque e este "não sujeito" do sujeito ocorrem graças à situação edípica, ou seja, ao caráter sexual recalcado. O pai, herói, homem, amante é rei e também vassalo.

A metáfora - Engolir de pássaros -   concretiza uma imagem fascinante e ao mesmo tempo terrífica, pois vem acompanhada  por golpe de asa. Se há golpe de asa no engolir de pássaros faz-se violenta a penetração dos pássaros-espírito na  carne-sumidouro, que engole o vôo da sensação erótica para deixar esvair de e por seu corpo uma fartura líquida, na árvore da vida, representada, aqui, pelo órgão genital feminino. A árvore da vida, biblicamente falando, é aquela de cuja floração nasce o fruto do conhecimento do bem e do mal. É aquela que oferece, ao homem, sua semelhança com Deus, pela incorporação, em si, da consciência. Do saber o do sabor da vida. Da sensação gozoza do ser Eros, pois somente o homem é erótico. O erotismo do homem diverge da sexualidade animal porque, no homem, a exaltação erótica vem eivada de vida interior

Essencialmente o domínio do erotismo é o  domínio da violência e da violação. O que sufoca no erotismo é a violência e a revelação do sentido íntimo desta mesma violência. O golpe de asa rasga o poema, rompe  a mulher;  realiza o  dilaceramento prazeroso no corpo-sumidouro  que escoa na  fartura de água  orgásmica, em  busca da continuidade perdida. A  fartura da água  rega a árvore da vida. Lembremos que no sagrado como no erotismo pulsa a vida e lateja a morte. Nas oscilâncias de sua existência, o homem falcatrua pequenas mortes, propõe a si próprio um grande engodo: transforma o prazer que culmina do desejo, de morte real em sucessivas mortes simbólicas. É o engano da ruptura. É a simbolização da ultrapassagem dos limites para que, não deixando que a morte nos penetre, efetivamente, possamos viver, a cada relação, a cada entrega, o instante pequeninamente eterno do encontro pleno, da congeminação dos opostos no ponto de fuga onde se dá o gozo. O que fica patente aqui, no plano erótico, é o abalo provocado por uma desordem pletórica. No transcorrer do discurso há, no tempo de Cronos -  o presente -   uma clara relação entre um eu possuído e um tu possuidor -  na terra me tens com pés bem plantados. O binômio Eu / Tu reduz-se a um único termo: Eu. Eu nado, eu vôo, eu telúrica, eu alada. É como se, após  o momento de completude  adviesse a satisfação solitária, exaltada, ainda, pela abolição de fronteiras. Fundida num só ser após o gozo,  o eu lírico perpassa pela substância líquida, nadando; pelo ar, voando; pela terra, com  pés plantados. Espelha-se, na natureza humana, o natural da natureza divina, pois todas as sensações são possíveis no instante de entronização erótica.  Entrados que fomos pelo Sumidouro, sorvem-nos as águas sêmens dos poemas Ser, Sensorial, Ycatu e Segredo.

 

SER

o sexo tão livre, natural, obsessivo

como areia e seixos rolados;

regresso à  água.

 

SENSORIAL

Íntima da água eu sou por força

mar, igarapé, rio, açude,

pela água meu amor incestuoso.

 

YCATU

E assim vou

com a fremente mão do mar em minhas coxas

Minha paixão? Uma armadilha de água,

rápida como os peixes,

 lenta como as Medusas

                                           muda como as  ostras.

 

O SEGREDO

Entre as pernas guardas:

casa de água

e uma rajada de pássaros.

Uma constante nos quatro poemas selecionados é a presença da água. Das águas e do inconsciente universal, assim como da Mãe, emerge tudo que é vivente. A imersão nas águas significa o retorno ao pré-formal, com seu duplo sentido de morte e de dissolução, mas também de renascimento e nova circulação, pois a imersão multiplica o potencial de vida.[6] Freud[7] alude o fato de o nascimento vir, normalmente, expresso nos sonhos, pela intervenção das águas. Há, nos poemas escolhidos, um regresso à água, um amor incestuoso com a água, uma armadilha de água entre as coxas, armada para a presa: a mão do mar. A paixão é uma  casa de água entre as pernas. O mar, ao mesmo tempo imagem da vida e imagem da morte, está intimamente ligado ao movimento das águas e tem a propriedade divina de dar e tirar a vida - lembremos da teoria freudiana da vagina dentada: a mãe que dá a vida e, ao mesmo tempo a suga  -, além de, numa visão mística, representar o mundo do coração humano enquanto lugar das paixões.  Desta forma, o erotismo se realiza pela transgressão à proibição, ao interdito: o incesto. 

Ycatu, em língua tupi quer dizer água boa. Esta armadilha,  esta cilada referem-se a elementos ligados ao universo líquido. O peixe, além de possuir sentido  fálico por seu caráter de movimento penetrante, de ser um animal sagrado, segreda, em sua essência,  uma natureza dupla: é uma  espécie de pássaro por sua forma de  fuso, e símbolo  de fecundidade pela abundância de seus ovos. Para os caldeus o peixe era representado com uma cabeça de andorinha, anúncio de renovação cíclica. O sangue da Medusa, por sua vez, tinha, igualmente, dupla propriedade mágica: o que escorreu da veia esquerda tinha um poder mortal; o que se esvaiu pela  veia direita era um remédio capaz de ressuscitar os mortos. A ostra, igualmente, revela dupla acepção: a idéia do ser acorrentado e o ser livre. No mais das vezes, os maiores arrebatamentos são efetivados pelo ser mais reprimido. É Bachelard quem nos diz que, os lobos metidos nas conchas são mais cruéis que os lobos errantes[8]. No entanto sabemos que na esfera do humano a atividade sexual é sempre uma transgressão, daí a paixão  ser esta armadilha de água,  que afoga.

O fecho deste percurso se instaura em casa de água. A casa é o nosso canto do mundo. O nosso universo primeiro. A nossa energia inaugural. O nosso espaço edênico. Toda grande imagem reveladora de um estado de alma. Este estado de alma é o segredo  guardado entre as pernas: a água e uma rajada de pássaros. Este clima de paixão e entrega revela um  orgasmo místico e sagrado, numa aliança  de vôo e mergulho, de céu e terra, de carne e espírito. 

Além do que já foi dito sobre estes elementos simbólicos podemos acrescentar, mais uma vez, a carga pletórica contida neles. A crise de fragmentação, de divisão nasce da pletora. Não se faz ainda na separação mas se realiza como ambigüidade, pois, na pletora, o ser passa do estado de repouso ao estado de agitação violenta: essa turbulência alcança o ser por inteiro, atinge-o em sua continuidade. Mas a violência da excitação que acontece inicialmente no seio da continuidade, invoca a violência da separação donde a  descontinuidade  procede. Os poemas, fazendo passear por suas águas, peixes, Medusas, ostras, pássaros ¾ símbolos indicativos de totalidade, de completude, de mistura dos opostos ¾ tatuam  a presença da vida e da morte, do escondido e do manifesto, do Cronos e do Aion em coalescência.  Uma ordem foi rompida. A convulsão da carne exige silêncio. E, continuando nossa incursão pelo borbulhante silêncio de Magma, escoando-nos pelo Sumidouro, imergimos em Mar I e Mar II, quando o eu poemático funde-se  em surtos de pureza e mácula.

 

MAR I

para ti queria estar

sempre vestida de branco

como convém a deuses

tendo na boca o esperma

de tua brava espuma.

Violenta ou lentamente o mar

no seu vai-e-vem pulsante

ordena vagas me lamberem  coxas,

seu arremesso me cravando

uma adaga roxa.

MAR II

Amo-te, amor-meu-inimigo,

de mim não tendo piedade alguma.

Amo-te, amor-sol-a-pino,

feroz, sem nenhuma sombra.

Estás inteiro em mim

e vou sozinha.

Ao ver-te, amor, minha sorte ficou

como se diz: marcada.

Mar é o nome do meu macho,

meu cavalo e cavaleiro

que arremete, força, chicoteia

a fêmea que ele chama de rainha,

areia.

 

Mar é um macho como não há nenhum.

Mar é um macho como não há igual

¾ e eu toda água.

 

O mar, elemento mediador entre a vida e a morte, se realiza em ambos os poemas aquele com quem o eu lírico dialoga e se relaciona. Na passagem do descontínuo para a continuidade o eu lírico experimenta uma série de sensações acopladas, desfazendo o paradoxo e eivando o poema de uma abrangente totalidade.

O desejo de pureza  se mescla à querência da violação. Na lógica elementar primitiva, há sempre um parentesco entre a cor e o elemento da natureza que costuma apresentá-la, por sugestão do pensamento humano. A moderna psicologia  acolhe esta associação, vendo nela uma ponte entre seu significado e o sentimento. Neste quadro de cores, o branco tem uma função derivada do solar, da iluminação mística do Oriente. Ao querer estar de branco como convém aos deuses, o eu lírico propõe-se um sacrifício. O sacrifício, como sabemos, é um ato religioso por excelência. É uma oferenda. É um ritual de imolação onde a vítima, posta publicamente à morte assume a força do divino. O que é imolado torna-se sagrado. O ato sexual também  é um rito. A ação ritual realiza uma transcendência vivida,  um culto solene que conduz o homem à ilusão da ruptura da descontinuidade, pela revelação, no instante da culminância do rito -  o orgasmo - do sentimento de continuidade divina. Penetrar no mundo da continuidade é uma transgressão da lei que nos delimita como seres descontínuos. Seres descontínuos que lutam, incessantemente, para continuar na descontinuidade desejando, entretanto, por breves momentos que sejam, inundar-se do sentimento do sagrado a-tempo da continuidade. Por esta razão surge o desejo do eu lírico de estar sempre vestida de branco como convém aos deuses, para ser profanada violenta ou lentamente por uma adaga  roxa.  Adaga lembra espada que é um símbolo de conjunção. Associada ao fogo, seu emprego constitui-se numa purificação que  se obtém, geralmente, pela ação do  fogo ou pelo fio da espada. No entanto a adaga é roxa, cor da nostalgia e da angústia.  Contudo, somente o sentimento de  angústia  pode ceder lugar ao prazer.  Assim, dando seqüência a Mar I,  o eu lírico mergulha em Mar II.

Amor e ódio se confundem num só contorno, quando o amor  se revela como  inimigo, ao ser construída uma  palavra composta por justaposição, separada por hífens - amor-meu-inimigo. Em seguida outra palavra  justaposta surge no poema, mais uma vez para reunir opostos, chancelando, a cada passo, o espaço do sagrado: amor-sol-a-pino, e feroz, sem nenhuma sombra. No entanto, mesmo estando inteiro  dentro do eu lírico, ele vai só. Este sozinha, contudo, aponta para a completude do estar penetrada por este amor que teve início em Mar I, quando, num  arremesso, o mar-amor crava no magma do eu poético uma adaga roxa. As ondas do Mar I juntam-se às espumas do Mar II e ato sexual tem continuidade.  O mar-macho-amante é, ao mesmo tempo, cavalo e cavaleiro. O cavalo, timbrando os instintos e os desejos exaltados pertencem também às forças inferiores, assim como a água, daí a sua relação com Hades e Posídon. Crê-se que sua ferradura traz sorte, e o eu tem a sorte marcada. O sentido psicanalítico e sexual da cavalgada vem reforçar o sentido de veículo violento: mais uma vez,  o rompimento do limite. Está ligada à figura do cavalo a noção de movimento temporal, de sua irreversibilidade. Talvez por ser filho de Cronos, Posídon, o deus das águas, teria a forma de um cavalo. Sua carruagem é puxada por seres monstruosos, meio cavalos meio serpentes. Por intermédio do sol o cavalo evolui do nível ctoniano para o uraniano, mantendo em seu significado a convergência entre Deus e o diabo.

O jogo de palavras e de sensações se abrem à intenção de se formar um novo mundo, pois o mundo do jogo cria uma nova realidade regida por suas próprias leis. Estas leis próprias são as da transgressão do interdito, as da profanação, as da mácula. O cavaleiro dominador -  o logos -, o espírito que prevalece sobre a matéria, só consegue realmente imperar depois de um longo período de aprendizagem. No claustro de Silos há, nos baixos relevos dos capitéis, ginetes sobre cabras. Dada a significação favorável das cabras por habitarem locais elevados,  os ginetes montados sobre as mesmas devem ser identificados como santos. Daí podermos afirmar que, da confluência de cavalo e cavaleiro, obtemos a mescla de santo-demônio, assinalando-se, insistentemente, o espaço do sagrado. O climax desencadeia-se na diluição do eu em e eu toda água. A água, mais uma vez,  amadrinha a união universal de virtualidades que se encontram na origem de toda a Criação. Por ter sido imerso no Estige, Aquiles ganhou "certa" imortalidade. É o que conduz ao clima erótico:  um caminho efêmero para a continuidade, uma "certa" imortalidade. A transparente profundeza das águas descortina a comunicação entre o superficial e o abissal, pelo que se pode deduzir que a água perpassa as imagens, transpõe limites, espraia-se. O eu lírico é atravessado pelo erotismo e o atravessa. É todo espuma/ esperma/água.

Dissemos, a princípio, que Olga Savary, em Magma, traçou um caminho circular, iniciando o livro com o poema Sumidouro e reabrindo - no final com Sumidouro I, II, III. E neste ponto, voltamos ao Centro, espaço, aliás, do qual não saímos, já que estivemos, todo o tempo, gravitando em torno da congeminação dos opostos, já que estivemos todo o tempo alinhavando e realinhavando o tempo de Cronos , mas igualmente envolvidos pelo tempo de Aion. Para ratificar tal posicionamento, leiamos Sumidouro I, II e III.

 

SUMIDOURO I

Tocas a fímbria dos desfiladeiros

fruindo a cor do figo e da romã

no nascente e secreto sumidouro.

É tarde nas folhas e nos muros,

nas sombras do tanque de lodo e musgo,

é tarde já, é noite  -   e o sol vem vindo

e a primavera vindo onde a água

é o mel feroz de pássaros em tua língua,

onde o amor deságua em delta e tudo é  fogo.

SUMIDOURO II

Direi então: amor é onde

e junco alto e as dunas soam mais brando

e os frutos cheiram mais e são mais doces,

onde há embriaguez e uma tensão

de  corda esticada no limite

e tudo é lasso, onde

as abelhas perdem a ferocidade

sendo mais mel,

onde tudo é ordem e labirinto.

SUMIDOURO III

E onde é o sol mesmo na sombra

porque tudo arde na grama

quando a língua em chama sobe a fonte

do delta das coxas, onde

a vida é prometida nos dardos,

nas setas e espadas.

E é com o mel da tua espuma

que se encontra a arqueologia

dessa água intemporal.

Dou a noite a quem merece o dia

e é com sabedoria que me matas

no claro interstício dessa faca.

Em Sumidouro I desfazem-se as antinomias: Nascentes e secreto: o que nasce vem à luz e o que é secreto mantém-se na obscuridade;  já é noite e o sol vem vindo: o claro penetrando no escuro da noite; mel feroz de pássaro: a doçura, a pureza sendo violentada pelo estigma da ferocidade; onde o amor deságua em delta e tudo é fogo: a água é fogo. Estes dois elementos -  água e fogo -  transitam em Magma com força de inauguralidade. Se a água detém em si, como já vimos, o significado duplo de vida, se escorre nela a imagem orgásmica do líquido desaguante, o fogo ritualiza o dualismo situacional do homem diante das coisas. Tendo o sentido de mediador entre as formas em desaparecimento e as formas em criação - todas as coisas nascem do fogo e a ele retornam -  o fogo incorpora-se à água que também atualiza o sentido de transformação e regeneração.

Sumidouro II dá continuidade ao ato poético que se vai construindo em tensão e beirando o limite que se precisa romper. As oposições se organizam na desordem da linguagem que se encruzilha, se desloca, transporta-se para o lugar do inesperado, onde há embriaguez e uma tensão/ de corda esticada no limite e tudo é lasso, onde tudo é ordem no labirinto. Ao assistir à encenação da linguagem, imbuídos do Aion, também tornamo-nos extemporâneos. Entramos em êxtase. 

O terceiro momento deste Sumidouro final - porque ele termina o livro - e inicial  - porque reanima a excursão do discurso por outros sumidouros - as imagens ganham a força da festa de Dioniso: de arrebatamento, de loucura, de vertigem de profundidade, de delírio, de vigorosidade, de excesso.

Em Sumidouro III o discurso fala a palavra que mantém o interdito. Mas as imagens eclodem plenas do sentido erótico de que são portadores e portadas. O fogo e a água confundem-se quando a língua em chama sobe à fonte / do delta das coxas. Considerada como chama por possuir a mobilidade da mesma - a língua de Deus é comparada ao fogo que devora[9] -,  é o órgão da palavra, criadora do verbo, além de ser um órgão fálico e extremamente erótico. Assim,  a violação-violência se introduz numa vida que é prometida nos dardos, nas setas e espadas. E a morte anuncia o instante fugaz e pleno de todo delírio dionisíaco quando o eu lírico enuncia:

 

Dou a noite a quem merece o dia

e é com sabedoria que me matas

no claro interstício dessa faca.

Entramos situação de perda. O lugar mais erótico do corpo é aquele que fica no entre-aberto. O que é erótico é a intermitência. E o erótico do texto é exatamente isto: o seu velamento-desvelante. A sexualização da realidade, a erotização do mundo pelo interdito postulam o fio condutor da produção erótica, como também é a base do erotismo dos corpos, do erotismo dos corações e do erotismo sagrado, como classifica Bataille. A repetição insistente das palavras água e fogo, no lance escritural,  vai,  sem dúvida, produzir a fruição. Para que a repetição se torne erótica, é necessário que ela seja formal, excessiva, excêntrica. Afirma Barthes[10] que a palavra pode ser erótica sob duas condições contraditórias, mas igualmente desmedidas: a primeira, se for repetitiva a todo custo, e a segunda, se for inesperada. Pelo exposto, pode-se perceber que Olga Savary  faz retornar as palavras água e fogo de forma inesperadamente adequada. Palavras usadas sem nenhuma cerimônia pois, demitindo de si a insistência, perseguem e adquirem a consistência erótica.

Assim, o fluxo das águas e do fogo que se derrama pela superfície  - Aion - e a concentração das águas e do fogo que escavam a profundidade - Cronos -,  se mesclam neste templo de  significantes em que o exercício erótico da palavra se instaura. Aion e Cronos revelados fazem acontecer o  ritual de Eros: a arte. Sensual e receptiva, a imaginação estética é criadora. É a dimensão estética o espaço no qual a natureza e a liberdade se encontram. Num fulcro livre de sua própria criação ela constitui beleza. O tempo - a juventude - é importante para o conceito de beleza, daí a atemporalidade da arte - eternamente jovem, eternamente hoje, eternamente bela. A arte sempre desafiadora, incita o princípio de razão predominante. Ao invocar a sensualidade invoca a gratificação  em oposição à repressão. Traz à tona sua pureza e sua animalidade: seu Aion e seu Cronos. Seu Aion, o permanente sempre, o permanente que não muda, o divino que perdura na pureza e na identidade. Seu Cronos: seu corte profundo, seus presentes vastos e abissais.



* Olga Savary nasceu em Belém, Pará, em 21 de maio de 1933. Publica Espelho Provisório em 1970,  Sumidouro  em 1971-77,  Alta Onda em 1971-77, Magma, em 1977-82, Hai-Kais em 1977-86, Linha D'água em 1980-87, Retratos em 1987-89, Rudá  em 1990-94, Éden Hades em 1990-94, Morte de Moema em 1995-96, Anima Animalis em 1996, Repertório Selvagem em 1997-98, além de organizar coletâneas poéticas e ganhar inúmeros prêmios com seus livros de poesia, dentre eles, o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras em 1983, com o livro em estudo, Magma, considerado pela crítica como primeiro livro todo em temática erótica escrito por mulher no Brasil.

[1] SAVARY, Olga. Magma. Massao Ohno-Roswitha Kempf / Editores, 1982. Em 1998 saiu a publicação Repertório Selvagem: Obra Reunida: 12 livros de poesia, 1947-1998. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, MultiMais Universidade de Mogi das Cruzes. Nossa análise segue a organização das poesias feita na edição de 1982,  modificada em 1998.

[2] DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo, Editora Perspectiva S. A. p. 167-168

[3] BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad: João Bérnard da Costa. 3ª edição, Lisboa, Edições Antígona, 1988, p. 14. Todas as alusões que serão feitas ao pensamento do filósofo,  neste trabalho,  tem, como fonte, o livro aqui  indicado.

[4] TOLEDO,  Marlene Paula Marcondes e Ferreira. A voz das águas: uma interpretação do universo poético de Olga Savary. Lisboa. Edições Colibri, 1999, p. 27

[5] SAVARY, Olga. Sumidouro. São Paulo, Massao Ohno/ João Farkas Editores, 1977.

[6] CIRLOT, João-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Trad: Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo. Editora Moraes, 1984, p. 372

[7] FREUD, Sigmund. "A interpretação dos sonhos", In:Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud.. Trad: Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro, Imago Editora LTDA, v. IV, 1987.

[8] BACHELARD, Gaston. A poética do espaça. Trad: Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro, Livraria Eldorado Tijuca Ltda, s/d.

[9] ISAÍAS, 30, 27.

[10] BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad: Maria Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1980,  p. 84.