Constituição e importância das Atas do Senado da Câmara

Maria Conceição Barbosa da Costa e Silva (IPAC/UFBa)

Esta comunicação abordará um pouco do conteúdo da série documental das Atas da Câmara de Salvador no período colonial, evidenciando a importância desses documentos para o estudo da nossa história e alertando ser um campo a ser estudado por outras áreas do conhecimento.

Conselho de Vereança ou Mesa de Vereança; Senado da Câmara; Repúblicas Municipais ou Câmara Municipal. Múltiplas denominações para designar o responsável pela administração das vilas e cidades desde os primórdios de nossa história. De fundamental importância no período em que o Estado do Brasil integrava a Monarquia Portuguesa, instalava-se juntamente com a criação de vilas e cidades, copiando o modelo da congênere portuguesa e seguindo as orientações contidas nas Ordenações Manuelinas e Filipinas.

Base da pirâmide administrativa, era um órgão de poder legislativo, executivo e judiciário. Atuava como representante dos interesses da população, uma vez que tinha amplo raio de ação em questões econômicas, políticas e sociais.

De sua composição faziam parte os “homens bons”, isto é, pertencentes à nobreza, ao clero e à milícia, sendo chamados de oficiais devido ao fato de cada membro possuir um encargo. Eram eleitos dois Juizes ordinários ou do povo, que serviam alternadamente; um Juiz de Fora assim chamado por ser nomeado pela Coroa com o propósito de que viesse a administrar melhor a justiça, por ser estranho às disputas locais. Apenas Salvador, Rio de Janeiro e Pernambuco tiveram em suas Câmaras essa figura. Ambos usavam o símbolo do poder judiciário - a vara - , sendo de cor vermelha para os juizes ordinários e de cor branca para os de fora. Também por eleição eram escolhidos três Vereadores e um Procurador. Completava esse quadro a nomeação de funcionários especiais, assim determinados: um tesoureiro, um escrivão, um juiz de vintena, almotacéis (fiscais), entre outros.

As atribuições dos oficiais e funcionários do Senado da Câmara compreendiam todos os assuntos de interesse local, sejam de ordem administrativa, judiciária, policial. Não se vai aqui elencar essas atribuições porque ao se enveredar no corpus documental que é objeto dessa comunicação - as Atas - , se pode detectar a diversidade delas.

A instalação do Conselho de Vereança da Bahia em 1549, não lhe dá a primazia de ser o primeiro do Brasil, isso fica com a vila de São Vicente em São Paulo (1532), mas era, sem dúvida, o mais importante politicamente por estar na sede da colônia. Assim permaneceu até 1823 quando as Câmaras passaram a ser administradoras das rendas municipais. Pela lei de organização municipal de 1828, viram ruir qualquer possibilidade de alargamento de atribuições. Foram elas declaradas “corporações meramente administrativas, que não podiam exercer qualquer jurisdição contenciosa”. (Leal, 1975, p. 74). Ficaram por todo Império submetidas ao controle dos Presidentes de Províncias.

Encarregado da administração dos bens e de orientar a vida da cidade, o Conselho de Vereança da Bahia foi elevado a Senado da Câmara por alvará de 22 de março de 1646, com os privilégios da Câmara do Porto. O título, segundo estudiosos, representava uma “alta dignidade”, porém não significava nenhuma mudança estrutural.( Leal, 1975, p. 66)

Verear consistia em “andar vendo como se cumpriam as postura municipais; quais as necessidades novas ou abusos; como se conservavam os bens do município; como se abasteciam os mercados evitando a ruinidade, a carestia e o atravessamento de víveres”, define Diogo de Vasconcelos, citado pelo historiador baiano Afonso Ruy, em sua História da Câmara.

Registrar essas ocorrências era função do escrivão da Câmara, cargo de grande importância, que lhe dava um caráter de vitaliciedade e de nomeação real, atendendo a proposta enviada pela Câmara. As atribuições que lhe era delegadas estavam registradas no Título LXXI do Livro das Ordenações. Competia-lhe fazer, a cada ano, livro contendo a movimentação financeira, apresentando mensalmente as contas comprovadas da receita e da despesa. Cargo de confiança, cabia-lhe a guarda de uma das chaves da arca (cofre) da Câmara. Tinha de lavrar as atas das sessões, percebendo um ordenado, além de propinas que o regimento permitia por prestar outros serviços. (Ruy, 1953, p.31)

As Atas do Senado da Câmara eram registradas em livros para tal fim determinado, como se pode observar nos termos de abertura de um deles:

“Este Lo. Hade servir pa. as V[ere]asons do Senado da Cam.ra desta cidade da Ba. q. vai rubricado por mim Juiz de fora da dita cid.e com a rubrica q. diz Mesquita Ba. e Cam.ra de Septro 12 de 1730

Mel. Correa Mesq.ta Borba

Neles se encontram anotados os termos de vereação, termos de abrimento de provisões, termos de juramento e posse, termos de resolução, termos de nomeação de requerentes, entre outros.

Os documentos mantinham um esquema de padronização de linguagem no seu início, passando em seguida a informar o assunto em pauta. Os termos de vereação, por exemplo, eram abertos com a data e local das sessões, dos oficiais da Câmara presentes e seguindo-se do ou dos assuntos tratados.

“Termo de Vereação

Aos dezanove dias do mês de Fevereiro de mil esetecentos eCincoenta e sette annos nesta Cidade do Salvador Bahia de todos os Sanctos nas cazas da Camara della estando em Meza de Vereação o Doutor Juis de fora joão Ferreyra Bettencout eSá e mais Vereadores e Procurador da Camara que oprezente anno servem abayxo assignados tractão dobem comum despachando as peticoens ...”

Termo de posse ejuram.to qse deo dos Almotasses ant.o Teixra. Marinho eMel da Silva ribr.o

Ao 1o.dia do mês de Mayo demil eseteCentos e trinta esetteannos nesta cid.e do Salvador Ba. Detodos os sanctos nas Cazas da Cam.ra prez.te Ant.o Per.a corte real juis de fora dos orfãns q.serve geal della e a mais Vereação q. o prezen.te anno servem abaixo assignados apareceram Ant.o Teixeira Marinho eMel.da Silva ribr.o ...” .

A variedade de assuntos que as atas registraram é o maior demonstrativo da riqueza que esta série oferece. Afirmando sua condição de liderança, os oficiais da Câmara atuavam nas mais diversas situações, algumas delicadas, porém cientes da responsabilidade, sobretudo nos dois primeiros séculos, quando a lei lhes obrigava a vigilância na distribuição da justiça, denunciando ao juiz as falhas encontradas. De flagrantes comuns de ordem administrativa, a fatos que marcaram a vida da cidade no seu cotidiano como o fiscalizar gêneros alimentícios, tabelar os preços, verificar os pesos, acompanhavam os almotacéis atentamente e prestavam conta. Se isso não acontecia eram chamados:

“Aos vinte enove dias do mês de Mayo de mulSetecentos ehum anno esta cidad.e do Salvador bahia de todos os Sanctos nas cazas da camr.a estando em meza de Vereação os off.es ella que o prezente anno Servem abaixo asinados tratarão do bem comu despachando todas as petições deferiraão a todos os requerim.os e na dita vereação apareceo o condutor de gado Manoel Lopes aqm. O Dr Juis de fora deo ojuram.o dos S.os Evang.os, ... não tinha vend.o gado nem na fr.a nem no com.o e o queria cortar por Sua conta e que o d.o gado o trazia docertam e na d.a vreação requereo o Procur.or actual da Cam.ra que oescrev.m da almotaçaria não tem apresentado aesta meza os livros da almotaçaria para se Saber as coima que Seha de cobrar por esta Cam.ra...”.

A série Documentos Históricos do Arquivo Municipal traz já transcritas e impressas as atas desde o agitado período da invasão holandesa a meados do século XVIII. Infelizmente a destruição provocada pelo holandês na cidade do Salvador atingiu a documentação da Câmara referente ao século XVI e o primeiro quartel do XVII. Na apresentação do primeiro volume das atas, impresso em 1944, o então diretor do Arquivo Municipal esclareceu que as transcrições foram feitas de uma cópia do século XIX, mantendo-se a forma e ortografia.

O perigo das invasões estrangeiras no século XVII obrigou que se fortalecesse o sistema defensivo da cidade do Salvador. Sebastião da Rocha Pitta, escrivão da Câmara em 1643, lavrava em 14 de dezembro o:

“asento que se fes com Francisco Teixeira de Lemos sobre o cuida[do que há] de ter das fortificações desta Cidade pera ter cuidado de as limpar he do maes que do termo se decla[ra]”. (Atas , v. 2, p.205)

A limpeza da cidade, o cuidado com o abastecimento de água através das fontes públicas, os consertos das vias públicas, muitas vezes ordenando a feitura ou condenando, eram assuntos discutidos nas sessões. Ficou registrado em ata de 24 de outubro de 1753 que o vereador mais velho o sargento mor Jerônimo de Araújo requereu

“que não convinha em q Se mandase continuar ocano q. se mdou. fazer na rua do Maciel pa. Sam Miguel e requeria Semandase escrever o Seo protesto ... que se fizese odito cano o mais estreito que pudese Ser athé oadro de S. Miguel tãosom.te aencorporar com outro atendendo a otilid.e publica...” (Atas. V.10, p. 65-6).

A vadiagem era coibida não só nas áreas mais centrais da cidade, como também do subúrbio, conforme se pode constatar em detalhado termo de resolução de 20 de janeiro de 1730, no qual por petição de Manoel Francisco Gomes dizia de sua preocupação com um telheiro existente em frente a sua casa na zona da praia em que durante o dia trabalhavam uns tanoeiros e “denoite servia de se recolherem homens rebuçados e pessoas vadias, donde especullavão os meyos defazerem robos eoutros mallefeitos”, resolveu a Vereação mandar demolir não só o telheiro solicitado pela petição como também

“todos os mais telheyros e alpendres que estavam armados pellas ruas e paragens publicas desta cid.e e seus suburbios, por serem de muita utilidade ao bem comum, e m.to abem do serviço de Deos e de Sua Magestade, econforme as leis do Reyno, oevitarem se as cauzas de que se sigam escandalos e maleficios ...”. (Atas v. 9, p.75/76).

Junta-se a essa relação de atribuições, as atitudes de crença religiosa. A Câmara participava de algumas celebrações religiosas, a ponto de ter obrigação de manter festas e procissões. O termo de vereação citado abaixo atesta esse compromisso:

“Aos dez dias do mês de Dezembro demil eSetecentos e trinta e Sinco annos nestacid.e do Salvador ... elogo pello d.os offes do Senado mandão declarar que em oito do corr.te dia da Conceição de N.Senhora fora oSenado em corpo de Camara aoMostr.o da Graça levar aCoroa de ouro que tinhão prometido amesma Senhora emgratificação doBeneficio que della recebeo estacidade eSeus reconcavos nas chuvas, que deu estando amesma cid.e padicendo hua rigorosa Seca perto de dous annos ecom effeito lhe oferecerão na Sua Igreja ecolocada em Sua Santiss.a cabeça Se lhe mandou dizer hua missa com asollenid.e possível ...” (Atas, v. 9. p. 90) .

Os acontecimentos eram registrados pelo escrivão, como foi o caso da chegada da notícia da morte de D. João V. A coroa portuguesa passa para D. José I, cujo reinado será muito mais concentrado na figura do seu ministro Sebastião José de Carvalho Melo, Marques de Pombal ,cuja administração deixou para nós entre outra marcas, o processo de expulsão dos padres da Companhia de Jesus - 1759 e, quatro anos mais tarde tira de Salvador o privilegio de capital passando para o Rio de Janeiro.

Os anos cinqüenta do setecentos, como se pode ver, foram um tanto quanto delicados para a administração do Senado da Câmara. Ilustramos ainda mais com outro fato. Em 1755, a cidade de Lisboa é arrasada por um terremoto. Através de uma Carta Régia enviada a D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, vice-rei do Estado do Brasil, o rei de Portugal solicita auxílio para recuperá-la. No termo de vereação de 16 de março de 1756, o Juiz de fora, Dr. João Ferreira Bittencourt e Sá, convocou o Cap. Antão Joseph Leyte de Vasconcellos, Pedro de Albuquerque da Camara, Francisco Gomes de Abreu Lima Corte Real e o Procurador Dr.Antonio Duarte Silva para a abertura da Carta Régia e de:

“... dispor as ordens para aconvocação do Povo as mesmas Cazas da Camara para quelida aCarta do dito Senhor movesse os animos aConcorrerem com hum subsidio que correspondesse os motivos da justa confiança com que Nosso Soberano espera ajudar-se para a reedificação da Nobre Cabeça Luzitana por ora avizada da Onipotente mão de Deos com hum tão infausto elamentavel estrago...” (Atas, v. 10, p.122)

Um longo e minucioso termo de resolução foi lavrado em 7 de abril pelo Senado da Câmara, escrito por Joachim Rodrigues Sylveira, determinando a forma como a Bahia poderia arrecadar os “três milhoens” de cruzados que foram solicitados. Ponderaram os vereadores o peso de tal quantia, diante da pobreza da população. A fim de se puder cumprir com a doação de cem mil cruzados anuais, recai em uma taxação sobre “cinco generos uzuais, em que com mais suavidade e menos Vexação tem mostrado a experiência se pode tirar a dita contribuição ao povo”. Assim foram aumentados os impostos sobre a carne de vaca, azeite doce e de peixe, aguardente e escravo da Costa da Mina. Tal resolução atingiu também as vilas do Recôncavo e do interior, a capitania de Porto Seguro e a cidade de Sergipe del Rey..

Diante desses fragmentos da série de Atas do Senado da Câmara que foram aqui citados, fica evidente a importância dessa fonte de pesquisa, não só para o estudioso da história mas como um manancial a ser explorado em diversos aspectos num processo interdisciplinar.

Referências Bibliográficas.

AVELAR, Hélio de Alcântara. História administrativa e econômica do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1976.

FERREIRA, Manoel Rodrigues. As repúblicas municipais no Brasil. 1532-1820. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo/Secretaria Municipal de Cultura, 1980.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 2 ed. São. Paulo, Alfa-Omega, 1975.

RUY, Afonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal de Salvador, 1953.

RUY, Afonso. História Política e administrativa da Cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador, 1949. (Publicação comemorativa do IV Centenário da Cidade).

SALVADOR, Câmara Municipal. Atas da Câmara 1731/50; 1750/65. Salvador: Câmara Municipal/Fundação Gregório de Matos, 1994/1996. (Documentos Históricos do Arquivo Municipal. V.9 / 10).