PROPOSTA DE EDIÇÃO DAS ATAS DA CÂMARA DE SALVADOR

Maria Helena Ochi Flexor (UFBa/CNPq)

Desde o começo da publicação de documentos históricos de arquivos, no século passado, se discute a melhor forma de transcrevê-los.

Existem várias tendências, antigas e mais recentes que, por vezes, se aproximam ou divergem radicalmente umas das outras. Produto dessas diferenças, as transcrições de documentos não seguem, até o presente, normas padronizadas, ficando sujeitas a critérios individuais ou de grupos.

O projeto do NIPED-S450 busca, por isso mesmo, trabalhar com um corpus significativo de documentos do Arquivo Municipal de Salvador – as Atas da Câmara[1] - com o objetivo específico de fornecer material, tanto para estudos lingüísticos, quanto históricos, além de aplicar Normas que já vêm sendo consagradas.

A título de exemplo das variações cite-se o Registo Geral da Câmara de S. Paulo, 1583-1636[2], de 1717, que modernizou a transcrição. Sem analisar as precisões históricas, esses documentos afiguram-se inúteis para os lingüistas estudar a língua portuguesa do Brasil dos séculos XVI e XVII, pois, além da modernização da grafia, é preciso constatar, entre outras alterações, se a pontuação foi obedecida. Mesmo para o estudo da língua em 1917 é preciso averiguar se não houve inserção ou manutenção de fatos ortográficos, ou gramaticais, mais antigos. Basta verificar a grafia das palavras Tamanduatei (Tamandoatihi) e Anhangabaú (Anhangobahi) que foi mantida dentro do texto todo modernizado. Existem, ainda, os erros tipográficos. Essa prática da transcrição literal, sem indicações de acidentes ou desdobramento de abreviaturas, já era encontrada no século passado[3].

Emanuel Araújo[4] defende a modernização dos textos, argumentando que os documentos devem ser accessíveis ao grande público, devendo ser publicados numa forma próxima do original, mas numa versão contemporânea.

Toma-se desse próprio autor um exemplo de confronto de texto modernizado, e resumido, e tirado de outro autor. Uma carta autógrafa de José de Anchieta, escrita em 20 de março de 1556, para os irmãos enfermos de Coimbra, foi transcrita por Simão de Vasconcelos, cerca de cem anos depois, a sua maneira. Foi esta transcrição que se publicou nas cartas de Anchieta, da Academia Brasileira de Letras, coletânea assinada por Afrânio Peixoto e Alcântara Machado[5]. Serafim Leite, nos anos 1950, fez o confronto entre o texto de Simão de Vasconcelos com o manuscrito reproduzido em seu próprio trabalho sobre as cartas jesuíticas[6].

“Texto divulgado Serafim Leite

Muito tendes caríssimos Irmãos, que Muyto tendes, charissimos enfermos, que

dar graça ao Senhor, porque vos faz agradecer a Nosso Senhor por vos fazer

participantes de seus trabalhos, & participante(s) de suas infirmidadades, nas

enfermidades as quais mostrou o quais, pois elle mostrou mais o

amor que nos tinha: Rezam sera amor que nos tinha, rezão hee que lho

que o siruamos ao menos algum paguemos ao menos algun poquichinho

pouco, tendo grande paciência nas com teremos grande patientia em as

enfermidades, & nestas perfeiçoar infirmidades, e em ellas perfeiçoar

a Virtude. A larga conuersaçam que a virtude. Há muita e longa conversação

tiue nessas enfermarias, me faz nam que tive com essas enfermarias me faz,

poder esquecerme de meus Charisismos, não me poder esquecer de

caríssimos coenfermos, dezejando meus antigos coinfirmos, desejando de

velos curar, com outras mais fortes os ver curar com outras mezinhas

mezinhas, que as que lá se vsam; mais fortes das que lá tendes, porque

porque sem duuida pello que em sem duvida, segundo o que quá tenho

mim experimentei vos posso dizer visto e experimentado em mym,

que estas mezinhas materiais, pouco conheço quam enganado vivia

fazem, & aproueitam. Enquanto usey dessas tam exquisitas

meezinhas, as quais tenho para mym

que servem mais de acrescentar a

doença e mimo, que de sarar ou dar

algum pedaço de patientia[7].

Com o mesmo argumento, o Diretor do Arquivo, Divulgação e Estatística, da Prefeitura de Salvador, Percy Esteves Cardoso, editava as Cartas do Senado[8], 3º volume, em 1953. Dizia que

a divulgação dessas missivas que a Corte se endereçavam e vice-versa, copiadas com fidelidade religiosa e postas em letra de fôrma na obediência rigorosa a abreviaturas, sinais e convenções de cada escrivão ou amanuense, tem sido objeto de comentários antagônicos, desde que encetado pela Prefeitura do salvador, através desta Diretoria. Julgam-nas uns desnecessária e, até mesmo, prejudicial ao valor que os documentos históricos se empresta, pela raridade. Dizem-na outros louvável e útil ao ensino da História e ciências correlatas. Somos dos que afinam por este último diapasão.

Os documentos da Câmara seguiram essa forma de transcrição até os anos 1970. Se, de um lado, se desdobravam as abreviaturas sem distinguí-las do resto do texto, já fazia notar as palavras ilegíveis através de pontilhado e o vocábulo (ilegível), entre parêntesis, ou completando palavras colocando as letras danificadas entre [ ] colchetes. Também marcavam a mudança de linhas. Essas convenções não aparecem, explicitamente listadas, na publicação. Com essas mesmas características aparecem as Atas da Câmara de Salvador publicadas nos anos 1990, com a diferença de que as abreviaturas não foram desdobradas[9]. Continuam a indicar as palavras ilegíveis, complementação de letras, divisão de linhas, diferente das publicações de 1915, das Atas da Câmara da Vila de São Paulo, sem nenhuma dessas indicações e sem desdobramento de abreviaturas.

Dos anos 1910, até o presente, foram adotadas várias convenções para indicar acidentes nos documentos como, por exemplo:

Convenções complexas

. . . . . . . . quando rasgado ou roído por papirófagos

----------- quando apagado pelo tempo ou por umidade

(ilegível) quando visível, mas incompreensível

em grifo quando a leitura do trecho só tenha sido possível com o auxílio de aparelhamento especializado (ultra-violeta, p.ex.)[10]

[ ] para reconstituição de lacunas

( ) para o desenvolvimento de fórmulas abreviadas ou a correção de erros (letras em lugar de outra)

< > para letras omitidas

[[ ]] para letras supérfluas.

Convenções simples

Entre parêntesis: (corroído) (rasgado) (ilegível) (mutilado) (papel úmido) etc.

São apenas dois exemplos. Como se vê, foram criadas convenções, sendo a mais freqüente a que usa simplesmente pontos para suprir todos acidentes nos documentos.

Outros apresentam normas muito complexas como fizeram Emanuel Araújo[11] e Vera Acioli. Esta adotou as convenções publicadas pela Escola de Estudos Medievais, de Madri, de 1944[12]. Há quem prefira os critérios do Padre Avelino de Jesus Costa, de Coimbra. São normas muito complexas, que exigem muito tempo para absorvê-las e para aplicá-las, tornando o trabalho de transcrição quase impraticável, especialmente este último autor que tem uma publicação inteira[13] em que expõe e discute a problemática.

Em 1990 criou-se o Comitê de Paleografia e Diplomática, hoje integrante da Associação dos Arquivistas Brasileiros, no I Encontro Nacional de Normatização Paleográfica e de Ensino de Paleografia, promovido pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Na oportunidade foram dadas sugestões para o estabelecimento das “Normas técnicas para transcrições e edição de documentos manuscritos”. Acatando várias sugestões de estudiosos, consultados por três anos, uma Comissão de Sistematização, no II Encontro, com o mesmo patrocínio e também realizado em São Paulo, em 1993, estabeleceu as Normas divulgadas por algumas publicações[14] e já utilizadas em arquivos e por pesquisadores brasileiros.

Essas Normas foram feitas para o uso de historiadores, tendo sido aplicadas, por exemplo, por componentes da equipe do NIPED nos Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates[15], em 1998. Foram adaptadas, para a área de Letras, pelo Dr. Heitor Megale, do Instituto de Letras da Universidade de São Paulo, nas “Normas para transcrição de documentos manuscritos para a história do português do Brasil[16], introduzindo algumas modificações. Recomenda, por exemplo, marcação do desenvolvimento das abreviaturas com itálico, salientando critérios referentes à adoção de desdobramento de abreviaturas adotando grafia antiga ou moderna; não separa as palavras apresentadas juntas nos manuscritos não recomendando, também, introdução de hífem ou apóstrofos inexistentes. Aconselha apontar a existência de espaços em branco [espaço]; indicação em nota de “erros do escriba ou do copista”; indicação de repetição de vocábulos com [[ ]], entre outras diferenças.

De todas essas normas recomenda-se o uso de grifo com traço em lugar de itálico que pode não se destacar nos textos impressos muito longos ou que foram feitos com fontes de corpo pequeno.

Para a transcrição das Atas da Câmara de Salvador, que constituem o corpus, para os próximos dois anos, do NIPED-S450, serão adotadas as Normas estabelecidas pelo Comitê de Paleografia e Diplomática, com algumas adaptações, (que deverão ser sugeridas para modificações no próximo encontro do Comitê, provavelmente em outubro do corrente ano em Salvador), produzindo, dessa forma, uma edição semidiplomática, passível de ser utilizada, tanto por historiadores, quanto por lingüistas.

Sugerem-se as seguintes adaptações:

1. as palavras separadas ou juntas serão grafadas como aparecem nos manuscritos;

2. os R, S e outras letras maiúsculas, insertas no início ou meio dos vocábulos, como C e L, serão transcritos conforme o original;

3. os desdobramentos de abreviaturas, inserções, indicações de acidentes serão indicados com grifo sublinhando os acréscimos para torná-los mais visíveis no texto impresso e

4. serão inseridas divisões de linhas com / (barra) e mudança de páginas com // (duas barras).

De qualquer forma, há necessidade de adoção de convenções que poderão indicar, por exemplo, palavras ilegíveis para o transcritor que poderão ser “desvendadas por outro leitor. A palavra “ilegível” poderá fazer o pesquisador voltar ao documento original, ao contrário das indicações “rasgado”, “corroído”, etc.

Não se pode terminar o texto sem recomendar cuidado na transcrição e impressão de textos, pois erros de leitura ou de impressão podem, especialmente no caso do estudo do português, gerar fatos lingüísticos inexistentes. Essa leitura e transcrição podem ser facilitadas se se adotarem Normas e se estas forem generalizadas e acessíveis à maior parte dos estudiosos, tanto de história, quanto da língua portuguesa.



[1] Do antigo Senado da Câmara.

[2] SÃO PAULO. Arquivo Público do Estado. Registo geral da Câmara de S. Paulo, 1583-1636. São Paulo: Typ. Piratininga, 1917. v. 1, 621p.

[3] SÃO PAULO,. Archivo do Estado de S. Paulo. Documentos interessantes para a história e costumes de S. Paulo. São Paulo: Typ. Aurora, 1895. v. 13, 287p.

[4] ARAÚJO, Emanuel. Publicação de documentos históricos. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça / Arquivo

Nacional, 1985. p. 15-16. (Publicações Técnicas, 43).

[5] ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas jesuíticas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1931-1933. v. 3, p. 62-64. Cit. por ARAÚJO, M. Ob. Cit., p. 28-29.

[6] LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário, v. 2, p. 155-163.

[7] ARAÚJO, E. Ob. Cit., p. 29.

[8] SALVADOR. Prefeitura Municipal de Salvador. Cartas do senado, 1684-1692.. Bahia: Prefeitura Municipal de Salvador, 1953. v. 3 p. IX-X (Documentos Históricos do Arquivo Municipal).

[9] As publicações do Arquivo de Salvador complementam os documentos com índices, de assunto, de nomes, toponímico, apelidos, nos anos 70, ou modernizando: de assunto, geográfico, prenome, sobrenome nos anos 1990. Por exemplo: SALVADOR, Prefeitura Municipal. Atas da câmara, 1731-1755. Salvador: Câmara Municipal / Fundação Gregório de Mattos, 1994. v. 9. 399p. (Documentos Históricos).

[10] Até este ponto, essas convenções eram utilizadas pelo Arquivo do Estado de São Paulo, segundo indica MENDES, Ubirajara Dolácio. Noções de paleografia. São Paulo: Departamento de Arquivo do Estado de S. Paulo / Secretaria da Educação, 1953. p. 106.

[11] ARAUJO, E. Ob. Cit., p. 32-38.

[12] In: Instruciones para la catalogación de manuscritos. Madrid: Junta Técnica de Archivos, Bibliotecas y Museus, 1957. p. . Cit. por ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia.; um gruía para leitura de documentos manuscritos. Recife: Editora Universitária/ UFPE, Massangana, 1994. p. 59-60.

[13] COSTA, Avelino de Jesus (Pe). Normas gerais de transcrição e publicação de documentos e textos medievais e modernos, 3ed. Coimbra: Faculdade de Letras / Instituto de Paleografia e Diplomática, 1993. 80p.

[14] COMITÊ DE PALEOGRAFIA E DIPLOMÁTICA. Normas técnicas para a transcrição e edição documentos manuscritos. In: Boletim da Associação dos Arquivistas Brasileiros, Rio de Janeiro, ano 4 , nº 3, p. 2-3, jul-ago.-set. 1994; Idem. In: Circular nº 2 da ASBRAP, Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia, São Paulo, s.n.p. 1993; Idem. In: BERWANGER, Ana Regina e LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de paleografia e de diplomática, 2ed. Santa Maria: Editora da UFSM, 1995. p. 67-70. Anexamos estas últimas por estarem impressas mais corretamente.

[15] ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA. Autos de devassa da Conspiração dos Alfaiates. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo / Arquivo Público do Estado da Bahia, 1998. 1274p.

[16] MEGALE, Heitor. Filologia bandeirante. In: Itinerários, Araraquara, nº 13, p. 32-34, 1998.