VINCULAÇÃO EM CLÁUSULAS ADVERBIAIS: UMA ANÁLISE DE CLÁUSULAS FINAIS

Mário Eduardo Martelotta

 

1- Introdução

 

O objetivo desse trabalho é propor que o subprincípio da proximidade, indicado em Givón (1990), para explicar o processo de encaixamento de cláusulas objetivas diretas não dá conta da vinculação de cláusulas adverbiais e sugerir novas alternativas teóricas para a abordagem do fenômeno.

A proposta aqui é argumentar que, pelo menos no caso de cláusulas adverbiais, que apresentam mais restrições de caráter discursivo do que propriamente sintático (Matthiessen & Thompson: 1988; Hopper & Traugott: 1993) existem outros aspectos semânticos na base dos processos de vinculação. Esses aspectos estão relacionados a mapeamentos metafóricos e a outros mecanismos semânticos que nossa mente processa durante a produção lingüística em determinados contextos de uso. Essa visão está baseada em autores como Lakoff (1987), Sweetser (1990), Lakoff e Turner (1989) e Fauconnier (1997), para quem as línguas operam metaforicamente, através de analogias entre domínios conceptuais no nível do pensamento.

 

2- Iconicidade no processo de encaixamento de cláusulas

 

Givón (1990: 515), propondo a existência de diferentes graus de encaixamento ou integração entre a cláusula principal e sua subordinada com função de objeto, relaciona esse fato ao conceito de iconicidade, mais especificamente ao subprincípio da proximidade. Segundo essa proposta, há um isomorfismo entre a semântica e a sintaxe da complementação verbal, no sentido de que os graus de integração sintática entre as cláusulas não refletem aspectos arbitrários, sendo, ao contrário, a expressão gramatical dos níveis de vinculação semântica entre o evento expresso pela cláusula principal e o expresso pela subordinada.

Givón (1990: 560) propõe os seguintes princípios de iconicidade para a sintaxe da complementação:

 

a) Quanto mais integrados são dois eventos, mais integrados são os verbos que os exprimem. Uma das principais manifestações da vinculação semântica é o nível de controle do sujeito da principal sobre o sujeito da subordinada:

 

(1) Ele pediu que Maria saísse.

(2) Ele fez Maria sair.

 

No exemplo (1), existe um grau menor de integração entre as cláusulas, que se relaciona ao menor comando ou manipulação do sujeito da cláusula principal sobre o sujeito da subordinada. O fato de “ele” pedir, não implica necessariamente que “Maria saia”. Já no exemplo (2), ocorre total manipulação do sujeito da principal sobre o da subordinada, já que, “ele fez” e “Maria sair” constituem praticamente uma única ação, sendo o sujeito “Maria” totalmente manipulado pelo sujeito “ele”, da cláusula principal. Segundo Givón, o maior grau de encaixamento estaria na co-lexicalização.

 

b) Quanto mais integrados são dois eventos, menor a probabilidade de eles serem separados por um subordinador, ou mesmo por uma pausa física. Nesse sentido, levando em conta os exemplos (3) E (4), o segundo reflete maior encaixamento do que o primeiro:

 

(3) Ele quer que Maria saia.

(4) Ele fez Maria sair.

 

O maior grau de integração entre as duas cláusulas, no segundo exemplo, se manifesta na possibilidade de união sem conectivo, que não existe no primeiro exemplo.

 

c) Dada uma hierarquia de graus de agentividade, AG > DAT > ACC > OUTROS, quanto mais integrados são os dois eventos, menos agentivo será o sujeito da cláusula complemento. No exemplo (4), o elemento “Maria” pode ser analisado como objeto da primeira cláusula ou como sujeito da segunda. Se substituirmos o nome “Maria” por um pronome, este aparecerá com marca de objeto, como se vê no exemplo (5):

 

(5) Ele a fez sair

 

d) Dada uma hierarquia de graus de finitude (ou seu inverso graus de nominalidade), da forma verbal, os mais integrados são os casos que apresentam o verbo da subordinada com características mais nominais e com menos morfologia verbal. Assim, por exemplo, quando na cláusula principal ocorre o que Givón (1990) chama verbo cognitivo (com menor integração), o verbo da subordinada está conjugado no indicativo e seu sujeito tende a estar presente:

 

(6) Penso que os livros estão ficando muito caros.

(7) Comecei a estudar a teoria evolutiva.

 

Esse processo, que Givón (1990) descreve para as objetivas diretas, não funciona para as adverbiais.

 

3- Vinculação de adverbiais

 

Parece não haver, no que se refere às cláusulas adverbiais, uma tendência geral na direção de um nível de encaixamento semelhante ao que Givón (1990) chamou co-lexicalização ao analisar o fenômeno de encaixamento das cláusulas objetivas diretas. Entretanto, há alguns poucos casos, envolvendo cláusulas modais e cláusulas finais, que indicam auxiliarização, tipo de construção que apresenta grau de encaixamento avançado, mas não a ponto de constituir co-lexicalização.

 

3.1 - Cláusulas modais

 

Observando os exemplos abaixo, pode-se ver um processo crescente na direção da auxiliarização:

 

(8) a. Ele está em casa estudando. > Ele está estudando > Está chovendo.

b. Ele continuou em casa estudando. > Ele continuou estudando. > Continuou chovendo.

 

No caso da construção está chovendo, o verbo estar perde definitivamente seu valor lexical de localizar-se, para progressivamente assumir valor aspectual de cursividade. No caso de continuou chovendo, o auxiliar assume valor permansivo.

Parece que, de fato, determinados verbos, quando ocorrem ao lado de cláusulas modais, podem passar a auxiliar. Outros exemplos podem ser vistos nos verbos de movimentação dêitica ir e vir:

 

(9) a. Ele foi para São Paulo dirigindo. > Ele foi dirigindo. > Ele foi (logo) falando o que queria.

b. Ele vem de São Paulo dirigindo. > Ele vem dirigindo. > Ele vem trabalhando duro nesse projeto.

 

Nesses casos, os verbos ir e vir, como auxiliares seguidos de gerúndio, assumem respectivamente valor inceptivo e permansivo. Esse casos refletem uma tendência maior para a gramaticalização dos verbos de movimento de sentido mais genérico, já que o movimento físico é tomado como base para a expressão metafórica do tempo. Entretanto, outros verbos que expressam ação parecem não tender à auxiliarização:

 

(10) Ele pensa segurando o queixo.

 

Nesse caso, tem-se duas ações distintas, que ocorrem simultaneamente. Adotando o argumento de Haiman (1985: 196), esse tipo de cláusula reduzida pode ser parafraseada por uma coordenada: Ele pensa e segura o queixo. Portanto não há, nesses casos , maior grau de integração. Isso sugere que o surgimento de orações adverbiais reduzidas nem sempre está relacionado a níveis mais altos de integração ou encaixamento, pelo menos em relação aos princípios de iconicidade envolvidos no processo de encaixamento que as caracteriza.

 

3.2 - Cláusulas finais

 

Um processo de auxiliarização envolvendo cláusulas finais que merece menção está relacionado ao uso do verbo ir como elemento indicador de futuro:

 

(11) Ele vai para falar com o professor. > Ele vai falar com o professor > Vai chover.

 

Segundo essa visão, o uso do verbo ir como indicador de futuro se relaciona com uma origem adverbial, em que o ponto de chegada está representado por uma oração final.

 

4 - Processos de vinculação envolvendo cláusulas finais

 

Os próprios manuais de gramática tradicionais apresentam casos de encaixamento de cláusula final em construções do tipo exemplificado abaixo:

 

(12) a. Não sei para que ele veio.

b. Não me interessa para que ele veio.

Nesse caso, a cláusula final literalmente se encaixa na anterior, passando a funcionar como objeto direto do verbo saber em (12.a) e como sujeito de interessar em (12.b). Trata-se na verdade de cláusulas subordinadas substantivas. Entretanto, esse processo não vai adiante na direção de um maior encaixamento. Em construções desse tipo, não há, controle de um sujeito sobre o outro, não há possibilidade de uso de formas reduzidas, não há como o sujeito da subordinada assumir marca de objeto do verbo da principal

Além desses, há uma série de outros usos de cláusulas finais mais interessantes, que refletem gramaticalização na direção de uma maior integração e que apresentam o verbo no infinitivo. É o que está no exemplo abaixo:

 

(13) ... é muito bagunceira essas turmas... e:: sabe que bagunça todo mundo faz um pouco... né? mas... assim é demais... aí não dá pra ensinar... nego cantando... toda hora... entrando na porta...

 

Este é um caso diferente da final prototípica, que, a exemplo de Salomão (1990), estou chamando de construção habilitativa. A estrutura para + infinitivo e a noção de finalidade estão presentes, mas não há, na cláusula anterior, um verbo de ação, relacionado a um sujeito marcado pelo traço +intencional, que visa a alcançar o objetivo expresso na construção encabeçada pela preposição para. Por outro lado, esse tipo de construção transmite a idéia de que algo de um recurso, habilitando alguém a fazer alguma coisa.

Uma análise interessante para esse uso é oferecida por Salomão (1990), que vê essa construção como um dos vários padrões oracionais possíveis, envolvendo o verbo dar, relacionados por sua conexão com uma construção central, que serve de base para as outras. Eis o exemplo que a própria autora dá para essa construção central:

 

(14) Antônio deu um anel pra Maria.

 

Segundo Salomão (1990: 5) essa sentença representa o cenário de transferência de posse, que é a estrutura conceptual associada a essa construção central. O que motiva o sentido habilitativo do exemplo (13), relacionando-o à construção central apresentada no exemplo (14), é o mapeamento da metáfora recursos são posses na metáfora habilidades são recursos. A metáfora recursos são posses ocorre nos exemplos apresentados por Salomão (1990: 106), reproduzidos em (15):

 

(15) a. João me deu dinheiro pra eu comprar uma casa.

b. O Consulado deu o visto pro Maurício poder entrar no país.

 

Nesses exemplos, tem-se ainda um cenário de transferência de posse, em que um agente provê os meios pelos quais um receptador se torna capaz de praticar uma determinada ação. A entidade transferida, nesse tipo de caso, é um recurso.

Salomão (1990) afirma que a característica básica da construção habilitativa, exemplificada em (13) – [Æ] não dá [Æ] pra ensinar – é que o agente (do verbo dar) e o recurso não são especificados, como se pode ver no esquema abaixo:

 

 

DOADOR ® RECEPTADOR

NÃO ESPECIFICADO RECURSO

NÃO ESPECIFICADO ¯

 

PARA ALCANÇAR

UM OBJETIVO

 

Segundo esse esquema, a construção do exemplo (13) apresenta um doador não especificado, que transfere um recurso não especificado a um receptador normalmente especificado, para que esse possa alcançar um objetivo também especificado.

Essa estrutura cognitiva pode explicar algumas outras construções finais não-prototípicas, também com verbo no infinitivo, em que parece haver gramaticalização envolvendo maior vinculação:

 

(16) ... como você pode dar escola se você não tem dinheiro para construir uma escola?

 

Apesar da estrutura para + infinitivo, típica das cláusulas finais, e de uma idéia de finalidade, essa cláusula não se enquadra no que se considera uma final prototípica: não há, na cláusula anterior, uma ação à qual se possa relacionar a finalidade expressa pela cláusula grifada. Ao contrário, essa cláusula, que parece penetrar no sintagma nominal, pode ser interpretada como se referindo ao nome dinheiro, assumindo assim uma função de caráter adjetivo: uma espécie de completiva nominal em sentido lato. Portanto, apesar de ser considerado por Bechara (1976:163) como adverbial final reduzida de infinitivo, esse tipo de construção será aqui tratado, como um caso de cláusula completiva nominal (por falta de termo melhor), que reflete maior vinculação sintática, uma vez que se refere a um nome localizado no interior da cláusula a que se refere.

Outra construção igualmente interessante é a que está exemplificada abaixo:

 

(17) A parte da minha casa em que mais gosto é a sala-de-estar, pois é nela que se tem um cantinho e uma luminária que é ideal para se ler um livro, assistir um filme, etc.

 

Novamente a cláusula marcada por para + infinitivo não apresenta níveis de vinculação típicos de adverbial final, funcionando com uma espécie de completiva nominal, dessa vez, porém, relacionada a um adjetivo (ideal).

Os dois últimos exemplos, parecem indicar um processo de gramaticalização segundo o qual a cláusula, originariamente final, se encaixa ao elemento de natureza nominal antecedente, passando a caracterizá-lo. É possível também ocorrerem usos em que cláusulas, originariamente finais, encaixam-se à antecedente, assumindo função de predicativo:

 

(18) ...“ah:: o nome dele é Arruda... André...” eu falei “ih... arruda é pra tirar olho grande...” aí o cara... sério... “arruda nada... eu sou cristão... não acredito em nada disso...”

 

Postula-se também para essas construções um processo de topicalização do elemento que expressa o recurso. Nesse sentido, haveria um movimento do tipo: é ideal ler um livro com essa luminária > essa luminária é ideal para se ler um livro ou tira-se olho grande com arruda > arruda é pra tirar olho grande. A ação, com essa mudança, passa a ser expressa em forma de cláusula final, que indica a utilidade do recurso, ou seja, a ação passa a ser atribuída ao instrumento e não ao sujeito que o utiliza. Pode-se notar que, no exemplo (18), o nome arruda havia sido mencionado, o que é, possivelmente, um dos fatores responsáveis por sua anteposição na construção analisada.

Em favor dessa análise está o fato de que, em todos os casos (exceto um: ver ex. (20)) de para + infinitivo aqui classificados como cláusulas predicativas e completivas nominais de adjetivos encontrados no corpus, o recurso foi explicitamente mencionado anteriormente:

 

(19) I: minha sala não tem muitos móveis... a gente... tem um te/tem um/ uma televisão... tem um aparelho de som... tem vídeo... ah... não... tem a rede também... (fico) entre a rede e essa cadeira aqui... eh::... a cadeira é o melhor lugar pra estudar... a rede é o melhor lugar pra ver televisão... não tem nada em volta... tem uma mesinha pequena... uma luminária de pé...

 

A única exceção está no trecho de um relato de procedimento escrito, reproduzido abaixo, em que o falante disserta sobre um jogo de cartas chamado sueca. Nesse caso, pode-se dizer que há topicalização no sentido de que sueca ocorre logo no início do relato para indicar o tema:

 

(20) A sueca é um jogo de cartas para ser jogado por duas duplas. O baralho não é completo, são retirados o oito, o nove e o dez. A carta que mais vale pontos é o az seguida pelo sete, rei, valete e dama. O dois, o três, o quatro, o cinco e o seis não valem pontos.

 

Os casos de complemento nominal de substantivo são diferentes, já que o recurso é apresentado sintaticamente como um sintagma da cláusula anterior, desempenhando, na maioria dos casos, a função de objeto de verbos relacionados ao cenário de transferência de posse: ter, possuir, perder, ganhar, pedir, dar, etc. É o que se vê nos exemplos (16) e (21):

 

(21) ... os professores perdem um pouco do estímulo para dar aula...

 

Nesses casos, o recurso vem na frente do objetivo, mas não propriamente por causa de uma topicalização, mas pelo fato de ser codificado como objeto do verbo da cláusula anterior. Essa estrutura sintática, em que o recurso é normalmente anteposto ao objetivo pela natureza da função que desempenha na cláusula anteriormente mencionada, propicia o surgimento da cláusula iniciada por para, que indica o objetivo a ser alcançado com aquele recurso.

Outro uso, envolvendo a preposição para, que merece menção em um trabalho acerca das cláusulas finais é aquele que Salomão (1990) analisa como um movimento em direção de um hábito. Como não foram encontrados exemplos desse tipo no corpus analisado, os exemplos abaixo são retirados da própria autora:

 

(22) Ele deu pra escrever poesia.

(23) Ele dá pra escrever poesia.

 

Segundo Salomão (1990) esses usos constituem uma das construções de movimento possíveis envolvendo o verbo dar, que apresentam um sentido adicional de habitualidade. Salomão (1990) propõe que essas construções estão associadas metaforicamente à construção de movimento que ela mesma exemplifica com:

 

(24) O carro deu no muro.

 

Os exemplos (22) e (23) se associam a (24) através da seguinte metáfora:

 

MUDANÇAS NA VIDA SÃO MOVIMENTOS

AQUELE QUE MUDA É A FIGURA

O ESTADO PARA O QUAL ALGUÉM MUDA É O ALVO

 

A noção de alvo justifica a presença da preposição para. Além disso, uma outra distinção semântica entre os exemplos (22) e (23), por um lado, e o exemplo (24), por outro, é a presença em (22) e (23) de um processo de avaliação segundo o qual a mudança é expressa de acordo com o ponto de vista do falante. De acordo com Salomão (1990), isso motiva a ocorrência da preposição para encabeçando os complementos de dar.

A diferença entre os usos exemplificados em (32) e em (33) é que, no primeiro caso, a construção é perfectiva e, conseqüentemente, factual, enquanto que, no segundo caso, é imperfectiva e, portanto, não necessariamente factual.

 

6- Referências Bibliográficas

 

BECHARA, Evanildo. 1976. Lições de português pela análise sintática. Rio de Janeiro: Grifo.

FAUCONNIER, Gilles. 1997. Mappings in thought znd language. Cambridge: Cambridge University Press.

GIVÓN, Talmy. 1990. Syntax: a functional-typological introduction. Amsterdam: John Benjamins.

HAIMAN, John. 1985. Natural Syntax: iconicity and erosion. Cambridge: Cambridge Univerity Press.

HOPPER, Paul J. & TRAUGOTT, Elizabeth Closs. 1993. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press.

LAKOFF, George. 1987. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about mind. Chicago: The University of Chicago Press.

LAKOFF, George & TURNER, Mark. 1989..More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago: The University of Chicago Press.

MATTHIESSEN, Christian & THOMPSON, Sandra. 1988. The structure of discourse and “subordination”. In: HAIMAN, John e THOMPSON, Sandra. Clause combining in grammar and discourse. Amsterdam: John Benjamins.

SALOMÃO, Maria-Margarida Martins. 1990. Polyssemy, aspect and modality in brazilian portuguese: the case for a cognitive explanation of grammar. Berkeley: University of California.

SWEETSER, E. 1990. From etymology to pragmatics: metaphorical and cultural aspects of semantic structure. Cambridge: Cambridge University Press.