A ESTILÍSTICA DOS AFIXOS EM A CIDADE E AS SERRAS DE EÇA DE QUEIROZ

Maria Alice Aguiar (UERJ/UNIVERSO)

Pensando com Riffaterre, definimos o contexto estilístico como um pattern, rompido por um elemento imprevisível. O estilo, nesta óptica, define-se como “o realce que impõe à atenção do leitor certos elementos da seqüência verbal, de maneira que este não pode omiti-los sem mutilar o texto e não pode decifrá-los sem achá-los significativos e característicos”[1]. Ter um estilo portanto, não significa possuir uma técnica de linguagem. É, sim, assimilar uma visão própria do mundo e encontrar uma forma adequada para expressar esta paisagem interior”. A luta pela expressão é o fundamento da criação literária. Criar em literatura, portanto, é realizar o dizer de forma expressiva e singular. É reesculpir cada palavra, reinventando cada estrutura para que a linguagem, gasta no dia a dia, invista no desconhecido em busca do reconhecido.

Nosso estudo pretende, pela descrição do texto de A Cidade e as Serras, obter, de uma das inúmeras isotopias possíveis, a mensagem estética desta obra de Eça, partindo do estudo dos afixos. Assim, lido o romance, procuramos identificar, na obra, os morfemas de acordo com as relações semânticas que os ligam entre si e aos diversos níveis do texto. Percebemos, de pronto, que o romance A Cidade e as Serras assenta-se sobre dois grandes pólos – civilização e genuidade – sendo, este último, dimensionado numa perspectiva de terra como elemento gerador de vida, volta às raízes da nacionalidade portuguesa.

Desenha o escritor, nesses dois pólos, dois personagens: Jacinto e Zé Fernades. E é sobre a permanência e mudança na personalidade do personagem narrado – Jacinto – e sobre o conhecimento que vamos obtendo pela voz do personagem narrador – Zé Fernandes –, que reside o nosso estudo. O jogo do sim e do não em relação à cidade e ao campo, montado por Eça na composição destes personagens, foi o caminho que encontramos para demonstrar a temática desta obra – a genuidade como perfeita fruição de vida. Para tal, seguiremos, com exemplos significativos e comentários sobre eles, o caminhar de Jacinto no sentido de aceitação da cidade e do campo.

A civilização, do ponto de vista do personagem Jacinto passa por três estágios, bem delineados: fanatismo → cansaço → saturação. Logo ao primeiro instante em que Zé Fernandes nos coloca diante de Jacinto, é-nos mostrado um homem “bem-aventurado”. Ouçamos o narrador:

“Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao Governo dos homens, nunca lhe conhecemos outra ambição além de compreender bem as idéias gerais”. (p.14)

“O seu valor genuíno, de fino quilate, nunca foi desconhecido nem desapreciado”. (p.14).

“Este Príncipe concebera a idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. ( p.15)

A presença dos morfemas in e des mostram a negação de engajamento político-social de Jacinto e a positividade de sua valorização como homem bem aventurado que era, a ponto de dominar, inclusive, a natureza, pois “nuvens pejadas e lentas, se avistavam Jacinto sem guarda-chuva, retinham com reverência as suas águas até que ele passasse”(p. 14). O morfema –mente, do último exemplo, denota a idéia de excessividade da importância de civilização para o personagem, idéia esta não só carregada pela própria significação do radical superior como também pela soma, a ele, do sufixo -mente. Este “bem-aventurado” entrosa-se de tal forma à engrenagem da civilização/máquina, que nada que não possua a chancela de civilizado tem, para ele, potencialidade para gerar prazer. São estas suas palavras: “... sou mais feliz que o incivilização, porque descubro realidades no Universo que ele não suspeita...”(p.18).

Deste modo, a idéia de civilização não se separa da imagem de uma enorme cidade, com todos os seus órgãos funcionando “poderosamente”. (p.18) E jacinto clama: “ Aí tens tu, o fonógrafo!... Só o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa do bicho. Acredita, não há senão a cidade, Zé Fernandes, não há senão cidade!” (p.19). E Eça de Queiroz coloca na boca do personagem-narrador Zé Fernandes uma insistente demonstração do pavor de Jacinto pelo campo e de seu amor à cidade usando abusivamente os afixos de negação e advérbios:

“Ao contrário do campo, entre a inconsciência e a impassibilidade de natureza, ele tremia com o terror de sua fragilidade e de sua solidão.”(p.20).

“Depois, em meio da natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores.”(p.20).

“Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só restava um estômago e por baixo um falo! a alma! Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na cidade, mergulhar nas ondas lustrais da civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir, reumanizado, de novo, espiritual e jacíntico!”(p. 21)

“Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão que os seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror.”(p.21).

“No silêncio do bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo.” (p. 21).

“Depois de uma hora naquele honesto bosque de Montmorecy, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando penetramos no lajedo e no gás de Paris ...” (p. 21-22).

“Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da cidade, eu era arbusto desarraigado que não reviverá (...). E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente como se cerra a grade de uma sepultura, eu quase solucei − com saudades minhas.”(p..24)

Os morfemas in-, re-, des-, dos exemplos emprestam ao contexto a significação positiva da cidade para Jacinto. Os afixos, assim organizados, apontam para uma leitura semanticamente invertida. O efeito estilístico faz com que percebamos o fanatismo de Jacinto pela civilização através de sua antítese − o campo. Desta maneira o que se denota negativo, conota-se positivo. Há que se notar, ainda, a expressividade do uso do afixo -mente nos exemplos selecionados. Nestes casos o advérbio apresenta-se como reverso neológico do adjetivo. Sua função, parece-nos, é, primordialmente, evocar imagens. Procurando derivá-los de adjetivos, cuja natureza é puramente descritiva, consegue, Eça concretizar, para nós, a imagem exata do que quer descrever.

A exceção do primeiro advérbio, verdadeiramente, que indica no exemplo a reafirmação de seu pensamento positivo em relação à cidade, todos os outros se apresentam com a significação descrita do adjetivo. É fato que verdadeiramente também deriva de adjetivo, mas dilui-se no sentido de descrição. Sentimo-lo mais abstrato que os demais. Nobremente, gravemente e supremamente pintam de forma concreta, a figura do personagem.

Percebe-se, então que o contato fecundo de Eça de Queiroz com a língua viva faz com que o escritor compense a simplicidade de seus processos estilísticos com uma rica concentração expressiva através da repetição de palavras e de morfemas de forma ousada e habilidosa. Ele procura, trabalha, sublinha tais processos de forma a chamar a atenção do leitor, transformando tal repetição em vantagem estilística. Obtém o escritor, deste modo, fórmulas de grande musicalidade evocativa.

Após o primeiro estágio em que os afixos tão especiosamente usados por Eça possibilitaram-nos demostrar a importância da cidade para Jacinto, num desenvolver de entusiasmo para fanatismo, o personagem, saltará, do excesso de sua bem-aventurança para um cansaço profundo e palpável. A cidade já não o atrai. Só lhe causa enfado. Assim o descreve Zé Fernandes: “Considerei o meu Príncipe. Estirado no divã, de olhos miserrimamente cerrados, bocejava, num bocejo imenso e mudo.”(p.43).

Este momento narracional, emerso após uma série de tantos outros, cujo perseverante uso dos afixos vai demonstrando o desgosto do “Príncipe” pela vida da cidade, foi o que mais evidenciou a fadiga que já tomava conta de todo Jacinto. Ao adjetivo mísero, que já traz uma carga semântica negativa intensada, Eça acopla dois sufixos igualmente intensificativos: – érrima e – mente demarcando, de forma clara, o clímax do cansaço de Jacinto.

Por meio de habilidoso jogo de colocação, “de olhos miserrimamente cerrados” conseguiu Eça, fazer com que o advérbio, por extensão, se referisse a Jacinto, e não apenas aos seus olhos. Usando a palavra ajustada o mais possível à situação do personagem, ajusta, igualmente, seu significado à expressão da realidade exterior, ganhando com isto, a matéria verbal, um emprego novo retratando, com mais veemência, o espírito íntimo desta mesma realidade. A partir daqui, Jacinto vai se desintegrando cada vez mais como ser. O seu estado, então, será o do não ser. Ouçamos:

“Depois, a pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, pisava aqui e além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta, e reclamava impacientemente o café [...]” (p.44-45)

“Agora porém, apesar de minha companhia, só lhe davam uma impaciência e uma fadiga que desoladoramente destoava do antigo iluminado êxtase.” (p.45-46)

“− o meu Príncipe emudecia molemente engelhado no fundo das almofadas, de onde só despejava a face para escancarar bocejos de fartura.” (p.49)

“Mas, do topo da Avenida das Acácias, recomeçávamos a descer em passo sopeado, esmagando lentamente areia, na fila vagarosa que subia, calhambeque atrás de landau, vitória atrás de fiacre, fatalmente revíamos o binóculo sombrio do homem do Boulevard, e os bandós furiosamente negros de Madame Verghane; e o ventre espalpado do neoplatônico, e a barba talmúdica, e todas aquelas figuras de uma imobilidade de cera, superconhecidas do meu camarada, recruzadas a cada tarde através de revividos anos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó-de-arroz, na mesma imobilidade de cera; então Jacinto não se continha e gritava ao cocheiro: - Para casa, depressa!” (p.49)

“Jacinto circungirou os olhares muito abertos, como se, através da vida universal, procurasse ansiosamente uma coisa natural e simples.” (p.58)

“E o meu pobre Jacinto, numa aplicação, conscienciosa, pendia sobre o teatrofone tão tristemente como sobre uma sepultura.”(p.73)

“No entanto Jacinto, desesperado com tantos desastres humilhadores − as torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o vapor que encolhia, a eletricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as resistências finais da matéria e da força por novas e mais poderosas acumulações de mecanismo.”(p.58)

A repetição dos estados e das ações se mostram pela presença dos prefixos re- e pelo sentido de abundância do prefixo super-. As citações evidenciam, sem dúvida, a gradação crescente de desânimo que prostra o personagem narrado. Seu sentimento surge pela insistência dos prefixos de sentido negativo i-, in- , im-, des-, e do sufixo mente, apontando todos para a civilização. Observe-se que aqui a negação se faz diretamente à cidade e não através do campo, como a princípio. É impacientemente que Jacinto reclama o café; sua fadiga retrata-se desoladamente; desce a ladeira lentamente; revia fatalmente o binóculo do homem do Boulevard e os bandós furiosamente negros da Madame; é também molemente que ele emudece; ansiosamente que procura uma coisa natural e simples; tristemente que pende sob o teatrofone; e é, ainda, claramente, que pede silêncio, refugiado nos braços de Zé Fernandes. A insistência do sufixo – mente vem corroborar a idéias de cansaço até o momento em que “decide valorosamente vencer as resistência finais da matéria e da força por novas e mais poderosas acumulações do mecanismo”.

É a reação. Reação ao cansaço. Reação que já representa um processo inconsciente por que passa o personagem, no sentido de atingir a perspectiva do não à civilização. Reage e recarrega o “202”, local onde mora, de máquina. Mas a semente da repescagem do Jacinto rural que havia dentro do Jacinto citadino já estava lançada e o solo era propício. A tentativa malogra o personagem continua sua trajetória de desânimo:

“Pobre Príncipe de Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão bravamente todo o recheio mecânico e erudito do “202”, na sua luta contra a força e a matéria!” (p.96)

¾ “Oh vida maldita!” Eram apenas expressões saciadas, um gesto de repetir com rancor a importunidade das coisas, por vezes uma imobilidade determinada, de protesto, no fundo de um divã, de onde se não desenterrava, como para um repouso que desejasse eterno...” (p.97)

“ ... cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda. Também lentamente se despegava de todas as suas convivências, as páginas da agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas.” (p.98)

Desventurado Príncipe! Com o seu dourado cigarro de laca a fumegar, errava então, pelas salas, lenta e murchamente como quem vaga em terra alheia sem afeição e sem ocupação. Esses desafeiçoados e desocupados passos monotonamente o traziam ao seu centro, ao gabinete verde...” (p.99)

“Valente Jacinto... Então, como tens vivido? Ele respondeu, muito serenamente:

¾ Como um morto.” (p.123)

“Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o saturava. (p.124)

“ Só quando crescera, e da animalidade penetrava na humanidade, despontara nele esse fermento de tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades...” (p.125)

“Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente desde o Eclesiastes até Shopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do pessimismo. Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação de que seu mal não era mesquinhamente “Jacíntico¾ mas grandiosamente resultante de uma lei universal.” [2]

“E para que pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de no luxo, de interesses novos de espírito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades sobrenaturais”[3]

Incessantemente aludia à morte como a uma libertação.

“Uma tarde mesmo, no melancólico crepúsculo da biblioteca, antes de refugirem as luzes, consideravelmente me aterrou, falando num tom regelado de mortes rápidas, sem dor, pelo choque de uma vasta pilha elétrica ou pela violência compassiva do ácido dianídrico.”

- Tudo é indiferente, Zé Fernandes! E tão indiferentemente sairia à sua janela para receber uma coroa imperial oferecida por um povo ¾ como se estenderia numa poltrona rota para emudecer e jazer.” (p. 129)

Depois de renovar tão bravamente o “202”, seu palacete em Paris, o personagem entra em fastio e o cansaço inicial cede lugar à saturação. O que temos, então, é a importunidade das coisas, uma imobilidade, um enfiar-se na poltrona de onde não se desenterrava. Despejava-se de toda a sua convivência o desventurado Príncipe. Seus passos, desafoiçados, desocupados. Estava revestido de uma moleza descoroçoada e sua face exprimia indecisão. Passou a sofrer de uma tristeza há muito tempo indesenvolvida e incessantemente aludia à morte como libertação. A insistência dos prefixos indicativos de negação torna clara a gradação intensificada de que falamos anteriormente: cansaço para saturação. Tudo é não. Tudo é in . Tudo é des. Até o momento em que, indiferente, “vive indiferentemente”. Para carregar mais ainda esta atmosfera de nulidade, vale-se Eça de uma quantidade de sufixos - mente, indicando um arrastar da vida, um deixar cair os braço no solpor do esforço. É a náusea da existência. Uma náusea envolta de tristemente, lentamente, monotonamente, serenamente, claramente, escancaradamente, apaixonadamente, mesquinhamente, grandiosamente, incessantemente, indiretamente, que o personagem nos é apresentado. Em oposição a tudo isto há o prefixo re e sobre. Quase todos representam, no contexto, uma tentativa de emergir o personagem dessa letargia

Clarifica-se então o fato de que depois de renovar bravamente o “202”, encontrando nas leituras escolhidas a reconfortante comprovação de que o mal da angústia não era só seu e sim universal; de sobrecarregar a sua vida de luxos e até de curiosidades sobrenaturais, chega à triste conclusão de que a existência o saturava. Esses prefixos que poderiam significar aqui seu redespertar para a vida, nivelam-se no campo semântico do não. Logo há uma aparente oposição denotativa e uma mesma significação no plano conotativo.

Há que observar também a profunda ironia conseguida por Eça colocar o afixo –ico, criando o adjetivo jacíntico. O neologismo no discurso de Eça é uma força verdadeiramente expressiva. A criação e incorporação de novos termos passa a ser um dos recursos do escritor. O neologismo morfológico, na obra, se manifesta em todas as categorias gramaticais. O processo, entretanto, que nos interessa aqui, é aquele que consiste na aplicação de certos prefixos e sufixos a vocábulos, que por seu próprio sentido não os toleram, em busca de um efeito de contraste.

Nas citações escolhidas, enumeramos: importunidade, indesenvolvida, desaforçados, jacíntico. Esclarece Guerra Da Cal em seu estudo sobre Língua e estilo de Eça e Queiroz que foi “nos neologismos de significado que a criação do escritor realizou verdadeira ampliação dos horizontes lingüísticos do vocabulário funcional da língua portuguesa, submetendo as palavras a toda uma sorte de transposições gramaticais e semânticas, fazendo adjetivos de relação funcionarem como epítetos de qualidade, dando um inteligente valor estético à impropriedade adjetiva, aplicando sentido transitivo a verbos intransitivos e vice-versa: invertendo palavras de sentidos ativo para sentido passivo, e submetendo-as a variadíssimas manipulações sintáticas e associativas que afetam sua função e significado”. [4]

Observada a visão da cidade, passemos à análise da perspectiva do campo para Jacinto, que vai se desenvolver neste caminhar: negação, participação, integração. A negação do campo na visão de Jacinto pode ser lida nas mesmas citações apresentadas na primeira parte do trabalho. Neste enfoque, os afixos lá estudados não ganham relevo de conotação, sendo puramente denotativos: negação do campo. Isto se deu quando o nosso Jacinto passava pela fase de fanatismo em relação à civilização. Quando este fanatismo transforma-se em saturação, vamos encontrar o não de Jacinto para a cidade correndo paralelamente ao não para o campo. Atingiu Jacinto uma visão tal da infrutuosidade das coisas que a sua visão de não transforma-se de não ser, para ser-não.

Recebendo uma notícia de que sua propriedade em Tormes ¾ Portugal ¾, fora praticamente devastada pelas águas de uma impiedosa chuva de inverno, resolve mandar reconstruir a Igreja que desabara para serem recolocados em seus devidos lugares os ossos de seus antepassados. Pronta a obra resolve ir de Paris para Tormes a fim de assistir à cerimônia do reenterro dos ossos.

Ao sentir que se vai afastar da cidade ressurge, dentro dele, seus antigos sentimentos de aversão às serras e de deslumbramento pela cidade. Mas isto acontece como um último agarrar-se ao conhecido. E Eça, magistralmente, apresenta-nos um personagem em conflito, desalentado frente aos abrolhos da incivilização, inquieto por se ver desgarrado da civilização, arrastado para a natureza que já o cercava de brutalidade agreste. Foi com desgosto que sentiu o comboio deslizando pelos trilhos. Contudo, a semente lançada pelo morfema-índice começa a germinar, pois, segundo Zé Fernandes, “No meu Príncipe já devidamente nascera uma curiosidade pela sua rude casa ancestral. Mirava o relógio, impaciente.

Nesta parte do livro - da p.149, início da viagem, à p.161, fim da viagem, há uma incidência relevante e intencional de prefixos indicativos de negação. Além dos prefixos, observamos a preocupação de Eça em usar palavras, de significação negativa ou não, iniciadas da mesma maneira que os prefixos. Pelo contexto não, percebemos a contaminação semântica dos prefixos a essas formas presas. Jacinto deitou-se desconfiado, suspirou com desalento, as serras se desenrolavam arrepiadas; Jacinto penetra nas terras de seu desterro; sofria de inquietação; sentia-se desgarrado da civilização; a claridade da vidraça era incerta; esfregava desesperadamente os vidros embaciados; a paisagem era um descampado; o comboio desengatava em Medina; eles poderiam ser despejados em Medina. Passar a noite em Medina é uma desventura. Zé Fernandes fitou Jacinto com desassossego. O trem rompe a planura desolada; o trem despegou e rolou. De novo o descampado, sob a chuva despenhada. Zé Fernandes acalma seu desgraçado amigo. As emoções são desencontradas. Jacinto desembrulhou os pés do paletó. O comboio deslizou, com descanso. Penhascos desabam. Destaparam o cesto. Zé Fernandes desarrolhava uma garrafa. Jacinto copiosamente desembrulhava um queijo. Novamente o comboio deslizou, o que foi um desgosto para o Príncipe. Jacinto olha o relógio impaciente. A estação é lisa e despovoada. O chefe descortina as malas. O comboio desapareceu. Tudo em torno pareceu o mais calado deserto O Grilo é desgarrado...

Nesta aventura, o nosso super-civilizado personagem fica despojado de toda e qualquer presença civilizatória pelos inúmeros incidentes ocorridos. Fica perdido na serra, sem seu servo, o Grilo, sem procurador, sem caseiro, sem cavalos, sem as 23 malas. Perde tudo. Chega em Tormes apenas Jacinto homem, sem qualquer elemento material que o pudesse caracterizar Um dos traços estilísticos utilizados por Eça para comprovar a depuração de Jacinto, foi o processo repetitivo da partícula des - , prefixo ou não.

Recomendamos a releitura atenta das páginas indicadas para uma melhor observação do que está sendo comentado e pela riqueza de materiais lingüísticos outros a serem estudados. É um momento de mudança de espaços. É o instante em que o personagem Jacinto começa a soltar-se da pretensa civilização e a enfiar-se na também pretensa in-civilização. Nesta parte da narrativa, a artificialidade cede lugar à naturalidade. Mas, entre estes dois espaços definidos - Paris/ Portugal, Cidade/Campo - há o espaço do ir. O espaço da locomoção. O espaço em que somente o andar, determinará a chegada ao objetivo último. - Tormes, Jacinto Ser, Genuidade Portuguesa. A viagem, simbolicamente, revela o espaço do movimento interno do estar-Jacinto para o ser-Jacinto. Do ser-português para ser-Portugal - “velhos Jacintos rurais”.

E o despojar-se da cidade para vestir-se de velho Jacinto rural se faz pelo exímio trabalho de linguagem. Chegado a Tormes, não encontra os caixotes de civilização enviados para sua casa. Foram desviados. E, na escritura, os sentimentos confusos de Jacinto:

“Inabitável, dizia Jacinto surdamente.” (p.167)

“Jacinto caminhou lentamente para o poial de uma janela, onde caiu esbarrondado pelo desastre sem resistência ante aquele brusco desaparecimento de toda a civilização!”(p.168)

“Era noutra sala, mais nua, mais abandonada; e aí logo à porta o meu super civilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo desconforto, escassez e rudeza das coisas.”(p.171)

“Depois desconfiado, provou o caldo que era de galinha e recendia.”(p.173)

“E quem não viu então Jacinto, senhor de Tormes, acaçapado á borda da enxerga, rente da vela de sebo que se derretia no alqueire, com os pés encafuados nos socos, perdido dentro das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo num pedaço velho da Gazeta, pensativamente, as partidas dos paquetes - não pode saber o que é uma intensa e verídica imagem do desalento.”(p.181)

Está claro o sentimento de Jacinto para com o campo. O desespero diante da casa inabitável, do desconforto das coisas e o estar desconfiado da comida, transforma-se na “intensa e verídica imagem do desalento”. A tensão do não, trabalhada numa gradação crescente, eclode no sema núcleo da locução adjetiva desalento, que por sua vez vem intensificado pela idéia dos outros dois adjetivos “intensa” e “verídica”. Aliás, a adjetivação em Eça sempre foi motivo de estudo. Como elemento estrutural é um dos alicerces sobre o qual se apóia, em grande parte, o sistema de gravitação do edifício de sua prosa.

Destarte, após os primeiros contatos desastrosos com a sua Tormes, o super-civilizado Jacinto começa a sentir a doçura daquela paz serrana, pois, “Sobre a sua arrefecida palidez de super-civilizado, e ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizou soberbamente.”(p.187). Na citação, os prefixos super e re opõem-se. O prefixo super apresenta-se semanticamente negativo no sintagma “arrefecida palidez de supercivilizado”, e o prefixo re, indica a afirmatividade do verdadeiro viver, no sintagma “quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente”. Supercivilizado, juntamente com arrefecida, qualificam o substantivo palidez, cujo significado dilui o sentido denominativo de exagero de super, emprestando-lhe conotativamente um sentido negativo; renovado trazendo já em si a intensificação positiva do prefixo re , adjetiva sangue, além de estar contaminado semanticamente pelas palavras rubor, trigueiro, quente, virilizava, todas indicativas de vida. O adjetivo adverbializado, soberbamente, torna a enuciação prenhe de vigor. É o ressurgimento de Jacinto. Observe-se que “Até o bigode se lhe encorpara. E já não deslizava a mão desencantada sobre a face - mas batia triunfalmente na coxa.” (p. 187).

O prefixo des, precendido da partícula não, denota o sim. É a tecedura da linguagem que Eça borda de forma exemplar no tapete de linguagem de A cidade e as serras. A intencionalidade de Eça em trabalhar a oposição, estabelecida por nós em relação aos pontos de vista do personagem Jacinto, mostra-se inconteste no exemplo: “Ele encolheu jovialmente os ombros realargados. E só me soube contar, trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho remendado que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorma, e de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desanuviado, desvencilhado.” (p.188)

Se voltarmos a um exemplo a já citado, quando procuramos, pelos afixos, provar o sim de cidade para Jacinto, observamos ter Eça usado o verbo desanuviou quando penetramos ao lajedo e não gás de Paris”. Agora, à página 188, pintando um Jacinto “novíssimo”, “renascido”, “rejuvenecido” torna a usar o mesmo verbo, em itálico, como que para marcar a sua intenção.

A partir deste ponto, o Jacinto eu ressurge é este:

“Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo... São porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso.” (191)

“... sobre os outeiros, parava, imóvel, retendo os meus gestos e quase o meu hábito, para se embeber de silêncio e de paz; e duas vezes o surpreendi atento e sorrindo à beira de um regatinho palreiro, como se lhe escutasse a confidência.” (p.193)

¾ E depois, menino, que inesgotável, que miraculosa diversidade de formas... E todas belas!” (p.193)

“Assim como os meus setenta mil volume,; eram tantos que nunca li nenhum.

“Assim como as minhas ocupações; tanto sobrecarregavam, que nunca fui útil ! (p.192)

“Farejava com uma curiosidade insaciável, todos os recantos da serra! Galgava os cabeços correndo com na esperança de descobrir lá do alto os esplendores nunca contemplados de um mundo inédito.” (p.195)

“E todavia - continuava ele, remexendo a chávena - o pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento....” (p.197)

“E, de resto todos os lírios e teóricos do pessimismo, desde Salomão até o maligno Schopenhauer, lançam o seu cântico ou a sua doutrina para disfarçar a humilhação das suas misérias, subordinando-as todas a uma vasta lei devida, uma lei cósmica, e ornando assim com a auréola de uma origem quase divina as suas miúdas desgraçazinhas de temperamento ou de sorte.” (p.197-198)

“Daquele período sentimental de contemplação, em que colhia teorias nos ramos de qualquer cerejeira, e edificava sistemas sobre o espumar das levadas, o meu Príncipe lentamente passava para o desejo da ação... E de uma ação direta e material, em que a sua mão, enfim restituída a uma função superior, revolvesse o torrão.” (p. 205)

“Jacinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo chão de onde brotava a sua raça, e o antiquíssimo humo refluísse e o penetrasse todo, e o andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão , como as árvores que ele tanto amava.”(p. 212)

O sufixo mente, tão usado por Eça como elemento de comicidade ao mostrar a artificialidade e o exagero da civilização, ao caracterizar o arrastar de Jacinto pela vida, na sua fase de saturação, começa a escassear-se aqui. Ainda o encontramos, é evidente, mas carregando novo colorido. Esta leveza, sentimo-la, pelo cuidado que passa a ter nosso artista em sua tão bem elaborada expressão. Já não mais quer mostrar não. Aqui, concretiza-se o sim da terra como elemento gerador de prazer.

Logo ao primeiro exemplo deparamos com o advérbio genuinamente colocado entre dois adjetivos de significação positiva. ¾ verdadeiros. O advérbio assim colocado, intensifica a positividade do adjetivo genuíno, atingindo a escritura o ponto que pretendemos demonstrar - a genuinidade como fruição de vida/felicidade. Observe-se que a partir deste momento, os prefixos negativos des- e in-, são especiosamente colocados em vocábulos que, por seu significado no contexto o positivam. É a beleza inesgotável, é a busca insaciável dos recantos da serra, é a esperança de descobrir um mundo inédito. Quando denotativamente negativos, referem-se à civilização: o pessimismo, desindividualiza, o sofrimento, atenua o desgracioso delito dos inertes. Na palavra desgraçazinhas além da negatividade dos des- , acresce o diminutivo pejorativo, irônico, usado por Jacinto para depreciar o pessimismo, em oposição a regatinhos, cujo sufixo duplica a idéia de diminutivo, já contida na palavra, vestindo-a de afeto. O prefixo sobre-, com significado de excessividade negativa, refere-se à civilização, em oposição também ao sufixo- íssimo, que trazendo em si uma idéia intensa e reiterada, representa a própria positividade do excesso. É o antiquíssimo de onde brotava a sua raça; é o antiquíssimo humo que reflui, como se colocasse Jacinto e terra em plena integração. O re- ganha sentido de renovação: refluisse o humo, revolvesse o torrão. E Jacinto, no torrão português, desvestido de todo o falso ornato da civilização, comungando com a natureza a cada minuto da hora, a cada hora do dia, a cada dia do tempo, nasce - rejuvenece - cria. Gera-se e gera. Brota-se e faz brotar.

Concluímos do exposto que Eça de Queiroz, em contato com a língua viva, compensou a linguagem do cotidiano que eiva seus processos de escrita numa concentração expressiva, em decorrência da qual a composição de palavras, a composição dos grupamentos verbais e a composição da frase em sua totalidade passam a ter a qualidade essencial de uma palavra. Consegue ele, através de uma ajustada engrenagem reduzir o conjunto a uma unidade de curiosa ambivalência.

Se por um lado sua expressão é abrangível e compreensível numa simples imagem, na qual se combinam hierarquicamente todos os elementos de significação ali implícitos, por outro lado, por não expressar objetivamente mais do que uma fração do todo que nos transmite, contém o que podemos denominar de efeito retardado. Também apontando para a restrição observamos não só a repetição de palavras como também a insistente repetição de afixos. No entanto, a desvantagem desta repetição é fictícia, pois o escritor a emprega ousada e habilidosamente. Não foge dela. Ao contrário. Procura-a, invoca-a, trabalha-a, transformando-a num lucro estilístico.

Utilizando as palavras em expressões refletidas, instigando o lastro de sugestões psicológicas e de evocações sensoriais de que elas vêm carregadas, revigorando o duplo gume - uma fruição intelectiva e uma afetivo-sensorial -, pôde Eça de Queiroz usar um léxico familiar, se o considerarmos isoladamente em seus elementos. No entanto, de tal léxico integrado à frase, emerge uma multiplicidade de planos e ressonâncias que resultam na ilusão de uma grande riqueza de material verbal. Contudo, deixamos de observar este mecanismo no plano puramente semântico, haja vista termos selecionado e analisado transcrições nas quais os afixos se faziam presentes. O resultado desta dissecação no corpo lingüístico de A cidade e as serras, limitada aqui pelo objetivo do trabalho, permitiu-nos descobrir alguns indícios reveladores da inquestionável revolução a que o escritor submeteu a ferramenta de expressão literária em suas próprias bases. O vocabulário, a sintaxe, a palavra, a frase, o período obtiveram de suas mãos um a nova realidade estética. Ao mágico toque de sua imaginativa sensibilidade idiomática o material lingüístico adquiriu uma vida inédita, inesperada, imprevisível adquirindo o vigor de redescobrimento.



[1] RIFFATERRE, Michael. Estilística estrutural.. Trad: Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo. Editora Cultrix, p. 32.

[4] Guerra Da Cal, p. 93