DO TEMPO REAL AO TEMPO IMAGINÁRIO AS ANACRONIAS NAS NARRATIVAS DE IDOSOS

Maria Aparecida Rodrigues Fontes (UERJ)

INTRODUÇÃO

Contando história, os homens articulam suas experiência do tempo, orientam-se no caos das modalidades de desenvolvimento, demarcando com intrigas e desenlaces o curso muito complicado das ações reais dos homens. Desse modo, o homem narrador torna inteligível para si mesmo a consciência das coisas humanas, que tantos sábios, pertencendo a diversas culturas, opuseram à ordem imutável dos astros.

(Paul Ricoeur, Les tems et les philosophies, l978)

Em Nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no memento da morte revela a seus filhos a experiência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: “ele é muito jovem, em breve compreenderá. Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com sua autoridade de velhice, em provérbios; de forma prolixa, com sua loquacidade, em histórias.

É com essa alegoria que Walter Benjamin abre o ensaio “Experiência e pobreza", de l933. Nesse texto, Benjamin aponta para o fracasso da experiência de narrar e observa que a idéia de reconstrução da experiência deve ser acompanhada de uma nova forma de narratividade, garantindo uma memória histórica e uma palavra comum, e isso impediria a degenerescência dos valores sócio-morais, assim como a degradação e o esfacelamento social. Mas em nosso trabalho o que nos interessa não é retomar a idéia benjaminiana do Narrador em potencial ou fazer apologia de uma memória histórica a partir da palavra do velho. O objetivo desse trabalho é circunscrever alguns aspectos da articulação do discurso do idoso a partir da problematização de dois fatores inerentes ao estudo dos marcadores temporais: o tempo do discurso e o tempo da narrativa, o que nos levará a entender o motivo pelo qual o velho transita com mais facilidade e com mais freqüência do tempo real ao tempo imaginário e por que a sua autoridade de velhice vem acompanhada pela prolixidade e loquacidade, fazendo desse indivíduo um astronauta do passado.

O TEMPO COMO SÍMBOLO

Em algumas sociedades sem calendário o conceito de tempo, que implica um nível elevado de síntese, situa-se além do horizonte do saber e da experiência. "Eu era pequeno quando aconteceu o terremoto": aqui é o acontecimento que serve de referência para a pergunta relativa ao "quando". Este fato não está ligado a um processo com um desenrolar contínuo, e a correlação entre o acontecimento e seu quadro de referência é uma síntese efetuada de baixo nível. Já em sociedades mais complexas, o conjunto dos símbolos do calendário torna-se indispensável à regulamentação das relações entre os homens. Dir-se-ia, então: "Em 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, eu tinha apenas 10 anos e....". Assim, a sucessão irreversível dos anos representa, à maneira simbólica, a seqüência irreversível dos acontecimentoS, tanto naturais quanto sociais, e serve de meio de orientação dentro da grande continuidade móvel, natural e social. Queremos dizer com isso que o conceito de tempo não remete nem ao "decalque" conceitual de um fluxo objetivamente existente, nem a uma forma contínua de experiência comum à totalidade dos homens, e anterior a qualquer contato com o mundo. Entretanto, o indivíduo não é capaz de forjar, por si só, o conceito de tempo. Este, tal como a instituição social que lhe é inseparável, vai aos poucos sendo assimilado pela criança à medida que ela cresce. O indivíduo, então, modela sua sensibilidade em função do tempo, a partir de um sistema disciplinador que ilustra bem a maneira como o processo civilizador contribui para formar hábitos sociais. Muitos acreditam que é o tempo que passa, quando o sentimento de passagem se refere ao curso de sua própria vida. Esse fetichismo, ligado à noção de tempo, decorre do fato de o tempo representar uma síntese intelectual, um estabelecimento de relações entre acontecimentos. A memória desempenha um papel decisivo nesse tipo de representação, que enxerga em conjunto aquilo que não se produz num mesmo tempo. Essa síntese refere-se à capacidade que o homem tem de presentificar para si o que de fato não está presente hic et nunc, e de ligá-lo ao que está presente. Visto por essa via, o tempo é um símbolo social e não um dado objetivo, nem uma estrutura a priori do espírito, como queria Kant. A imagem mnêmica e a representação do tempo num dado indivíduo dependem, desse modo, do nível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo e difundem o seu conhecimento. Por isso, nas palavras de Norbert Elias, a idéia de tempo está atrelada à construção simbólica e ao processo civilizador. Passado, presente e futuro são palavras diferentes, mas um único conceito, pois representam não apenas uma sucessão, mas a presença simultânea dessas três dimensões do tempo na experiência humana.

Nessa perspectiva a memória, assim como a tão propalada experiência, assumiria não apenas o papel de coerção temporal (processo civilizador), como também serviria de instrumento identitário tanto individual como sócio-cultural, através da síntese, do hic e nunc.

ASTRONAUTAS DO PASSADO

Segundo o estudo de Ecléa Bosi, o adulto não dispõe de tempo para a evocação do passado porque, entretido com as tarefas do presente, desconhece o valor das reminiscências. O velho, ao contrário, debruça-se sobre o passado como alento às suas vidas, porque, perdida a possibilidade de reprodução biológica e de produção material, resta-lhe, de alguma forma, a atividade mnêmica. O velho torna-se a memória da família, da instituição, do grupo e da sociedade. Há nesse procedimento um aspecto de cosmicidade e retorno às experiências originárias. Assim como a experiência poética esforça-se em recordar as origens, o idoso, em sua solidão de velhice, recria o passado pelo desejo de recuperar o tempo e as coisas que nos fazem sentir próximos à morte quando as perdemos. O conhecimento da origem e o domínio sobre o passado conferem uma espécie de domínio mágico sobre o tempo e as coisas; é como se pudéssemos elaborar uma síntese da vida. Já o esquecimento promoveria a cegueira e a ignorância, e equivaleria ao sono e à morte. É através da rememoração que ocorre a libertação da obra do tempo. Isto é, existe uma necessidade de abolir o tempo, suspendê-lo, para que se possa transmitir um sentido de continuidade e de unidade do eu. Daí as recordações dos eventos isolados, os quais ganham um aspecto de eternidade e consolo. A construção desse discurso que valoriza o passado em detrimento do presente implica ainda a elevação da auto-estima. “O seu tempo, ou melhor, o tempo de sua juventude, parece ao idoso sempre melhor do que a realidade presente em que vive.

O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. Ela reduz, unifica e aproxima, no mesmo espaço histórico e cultural, a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual. Os dados coletivos que a língua sempre traz em si entram até mesmo no sonho (situação-limite da pureza individual). De resto, as imagens do sonho não são, embora pareçam, criações puramente individuais. São representações ou símbolos sugeridos pelas situações vividas em grupo pelo sonhador: cuidados, desejos, tensões…

Relembrar o passado na conversação ou através da narrativa não quer dizer, necessariamente, trazer os fatos intactos da memória para o presente; antes, pode significar um processo contínuo de reavaliação dos fatos. Do ponto de vista psicológico, há uma diferença entre o fato vivido no passado e a sua rememoração no presente. Relembrar não é reviver, segundo Ecléa Bosi, mas refazer reconstruir, repensar com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. E mesmo para a memória involuntária, no dizer de Gilles Deleuze, o essencial não é a semelhança, nem mesmo a identidade, que são apenas condições; o essencial é a diferença interiorizada, tornada imanente. ‘E nesse sentido que reminiscência é um análogo à arte e a memória involuntária um análogo de uma metáfora: ela toma dois objetos diferentes (e em tempos diferentes) como por exemplo em Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, a lembrança de “Madeleine” como seu sabor e “Combrey“ com suas qualidades de cor e temperatura - e envolve um no outro, faz da relação dos dois alguma coisa de interior. E é por isso que, para G. Bachelard, entre imaginação e memória - entre o tempo real e o tempo imaginário - existe uma continuidade estabelecida por um estado de devaneios que permite re-imaginar o passado. Ao rememorar fatos passados e evocar lembranças, o idoso está unindo um começo a um fim, ordenando no tempo eventos para ele significativos.

NO LIMITE DA PALAVRA

Nas obras ou nos textos literários, dramáticos ou narrativos, o tempo é inseparável do mundo imaginário, projetado, acompanhando o estatuto irreal do seres, objetos e situações. Em contrapartida, o tempo histórico, real, representa a duração das formas históricas de vida, e podemos dividi-lo em intervalos que se ajustam a acontecimentos singulares, datados mensurados. O tempo psicológico é variável e descontínuo, subjetivo e qualitativo, se compõe de momentos imprecisos, que se aproximam ou tendem a fundir-se, o passado indistinto do presente, abrangendo, ao sabor de sentimentos e lembranças, intervalos heterogêneos incomparáveis, no qual a percepção do presente se faz ora em função do passado, ora em função dos projetos futuros.

Estudando a fluência na linguagem dos idosos, percebemos que a perda do ritmo normal na sua fala é determinada por lapsos de memória, pela mistura do tempo histórico e psicológico e pela perda de operadores de coesão e coerência textual; isto é, pela perda dos articuladores sintáticos e das formas remissivas referenciais (conjunções e déiticos). Quando se trata de acontecimentos ocorridos há mais tempo, a rememoração se torna mais fácil do que a memória recente. Igualmente, os conhecimentos mais antigos são mais facilmente preservados do que os mais próximos. A dificuldade de memorização que, possivelmente, para a maioria dos idosos, se restringe à perda de memória para detalhes menores de uma experiência no passado recente. Essa dificuldade de memória, para muitos estudiosos, resume-se na expressão “esquecimento senescente benigno”, resultado do processo de envelhecimento normal. Igualmente conhecido como “deficiência de memória associada ao envelhecimento”. Os velhos costumam ter uma memória mais viva e nítida de fatos que se perdem nas brumas do tempo e, ao contrário, não conseguem lembrar-se direito do que ouviram a pouco no rádio. Se são apresentados a alguém, por exemplo, pouco tempo depois já não se lembram do nome da pessoa; se estão conversando, podem esquecer o assunto no meio da conversa[1]. E quantas vezes guardam objetos pessoais e utensílios em algum lugar e não conseguem lembrar mais onde os colocou.

A rememoração do passado faz parte da própria organização do idoso e é feita por meio de vários tipos de informações, que vão desde as datas constantemente citadas para situar o que eles chamam de “nosso tempo”, até as indicações de lugares, menção a objetos, valores monetários, marcas comerciais, pessoas, instituições e acontecimentos públicos situados no passado.

Do ponto de vista da atividade conversacional, uma abordagem estrutural nos possibilita estudar as várias partes que compõem a narrativa oral do idoso e a sua representação em nível da frase: o uso dos tempos verbais, tipos de frases, processo de intensificação do discurso, repetição e comparação. Há dois conjuntos de verbos distintos que orientam as situações de locuções : o primeiro conjunto é composto pelo pretérito perfeito, o imperfeito e o mais que perfeito que indicam, pelo distanciamento, que estamos contando ou narrando. Tais verbos configuram uma situação narrativa e orienta-nos no mundo narrado, no mundo das coisas distantes, não imediatas, fora das urgências do fazer e do cotidiano. Já os verbos do segundo conjunto: presente, passado composto e futuro configuram uma situação de locução discursiva e orientam-nos no mundo do intercurso cotidiano, da ação e das decisões.

O pretérito imperfeito é o tempo mais utilizado pelos idosos não apenas na linguagem oral como nas composições escritas. Ele marca, como sabemos, um prolongamento de um estado e é uma forma verbal durativa que determina a freqüência temporal da narrativa. Além disso, reproduz os acontecimentos de modo recorrente, ou seja, não exibindo uma ação específica, mas uma atividade serial, reincidente, um hábito, um costume. Igualmente, as marcas lexicais da categoria temporal permitem que o passado funcione como pano de fundo para os tópicos discursivos. Assim, a narrativa será marcada pelo tom das reminiscências.

O “ontem” passa pelo discurso em diversas formas. Existem 61 ocorrências de marcas temporais do passado, entre elas, podemos citar: antigamente, nosso tempo, mais tarde, nesse tempo, naquele tempo, naquela época, no meu tempo de menino, por essa ocasião, quando eu nasci, por essa ocasião e outros. A princípio, os tópicos do passado são estruturados tendo em vista a interação e a comparação com os fatos e os costumes atuais, de modo que surgem nessa estruturação tópica algumas marcas temporais do presente, tais como: hoje, agora, hoje em dia, etc. Nesse momento, entra em cena o tempo como representante de uma síntese intelectual, estabelecendo relações entre acontecimentos. Nessa faixa etária, o indivíduo acentua seu desejo de presentificar para si o que de fato não está mais presente e de ligar os fatos anteriores aos novos acontecimentos, mas entre o tempo real e o tempo imaginário existem as anacronias.

Ao mesmo tempo que desfilam, nas narrativas dos idosos, os fatos públicos, episódios familiares cenas da infância e da juventude, forma convencional da narrativa histórica e do tempo real, conjuga-se uma linguagem afetada pelo tempo da ficção, onde as anacronias, as figuras de duração e as variações do tempo são explicitadas pelas categoria do discurso e do enredo, através do ponto de vista, do foco, do modo de apresentação e da voz.

O tempo do narrar nem sempre é o mesmo do tempo do discurso. O primeiro é pluridimensional, porque nos dá o aspecto episódico dos acontecimentos e de suas relações; o último, linear; pois nos apresenta a configuração da narrativa com um todo significativo. Freqüentemente, na narrativa do idoso, o discurso dura mais do que a história, preponderando as digressões sobre os fatos e atitudes. O tempo da história pára e o discurso prossegue na pausa que corresponde à descrição. Nesse momento, a narrativa é marcada por longas pausas para que se possa descrever as cenas. Isto gera, freqüentemente, a quebra e a descontinuidade dos tópicos discursivos, digressões ou mudanças abruptas do assunto.

Na linguagem oral, isso ocorre por vários motivos, entre eles, destacamos a lentidão durante o ato de narrar, a prolixidade pela necessidade de explicitar com detalhes os fatos e o ponto de vista em relação a eles, gerando anacronias e loquacidade. Assim, o que aproxima a narrativa ficcional da narrativa dos idosos não é apenas o misto de imaginação e realidade, senão a qualidade temporal do discurso e da história, no que se refere à ordem e à duração. Conforme Gerard Genette, é fácil admitir um texto narrativo sem anacronias (flashback, flashforward, também chamados de analepse ou retrospecção e prolepse ou prospecção) e difícil imaginá-lo sem alguma espécie de variação de velocidade - sem anisocronias, ou seja, sem a diferença proporcional entre escalas distintas de duração, a dos acontecimentos projetados e a do fluxo discursivo, que se manifestam por uma espécie de andamento, por analogia com o tempo da música; e isso caracteriza-se como figuras de duração. As anisocronias e as anacronias mostram que uma das funções da narrativa é cambiar um tempo por outro, e que ela é, antes de tudo, um sistema de transformações temporais.

Tornar-se narrador é uma potência inerente ao ser humano que se acentua com a velhice em função mesmo de sua relação com as diferenças distintas de duração. Ora, entre a história e o discurso, entre o ser e o tempo não existe isocronias, mas anisocronias (diferença entre a duração dos acontecimentos e a duração do fluxo do discurso, ou variação de velocidade) e freqüência. A narrativa, como forma de linguagem, é um equivalente simbólico da ação e do tempo humano correlato. As variações das ações, na narrativa, corresponderiam a variações imaginárias das relações temporais. Essas variações imaginárias, no mundo da obra, que reconfiguram o mundo real, implicam um desvendamento das modalidades do tempo humano, como as que devemos ao romance de Proust a Guimarães Rosa, de Thomas Mann e Alejo Carpentier. A figuração do intemporal e do eterno a que se pode chegar tematizando o tempo na narrativa - o que é um paradoxo - é o limite pensável da experiência temporal, que a narrativa tem o privilégio de articular.

BIBLIOGRAFIA

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FONTES, Maria Aparecida R. (org.). Retratos e poesia. Rio de Janeiro : Eduerj-UnATI, 1996.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2 2d. São Paulo : Ática, 1995.



[1]A comunicação com o idoso torna-se uma tarefa difícil à medida que a audição e a visão reduzem-se e comprometem a memória e o raciocínio. A memória começa a falhar ao mesmo tempo em que ocorre o enfraquecimento da visão, sendo o esquecimento provavelmente o sintoma mais concreto.