O DISCURSO POÉTICO DA MEMÓRIA EM BOITEMPO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE,

Iza Quelhas (UERJ)

(In) memória

 

De cacos, de buracos

de hiatos e de vácuos

de elipses, psius

faz-se, desfaz-se, faz-se

uma incorpórea face,

resumo do existido.

 

Apura-se o retrato

na mesma transparência:

eliminando cara

situação e trânsito

subitamente vara

o bloqueio da terra.

 

E chega àquele ponto

onde é tudo moído

no almofariz do ouro:

uma Europa, um museu,

o projetado amar,

o concluso silêncio.

 

(Carlos Drummond de Andrade, Boitempo I, p. 10)

 

O DISCURSO POÉTICO DA MEMÓRIA EM BOITEMPO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

1

Esta comunicação integra parte de pesquisa intitulada “O Império e a República na produção memorialística de seus escritores”, desenvolvida desde 1998, com apoio da FAPERJ e da UERJ/PIBIC, através da concessão de bolsas de Iniciação Científica, apresentando como um de seus objetivos principais o de estudar as formas memorialísticas, as relações entre o discurso ficcional e o histórico, a partir de recortes – os eventos – que interpenetram o discurso do sujeito e sua função autor.

Em tempos de globalização, quando se constata que o consumo atomiza e corrói um certo tipo de vida e de pensamento, reler a poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902/1987) nos leva a compreender os matizes do contemporâneo pelo fluxo poético e histórico. Tais fluxos, ao interpenetrarem-se, parecem irradiar dessa percepção aguda do tempo na existência do poeta. O livro Boitempo I (abreviado B., nesta comunicação), de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1968, apresenta em linguagem poética as recordações de menino e adolescente, em Minas Gerais, sua terra natal. Tempo e espaço são atravessados pelo olhar de um poeta maduro, que viveu e produziu durante os principais momentos do movimento modernista, prevalecendo em Boitempo um discurso lírico que ultrapassa as exigências e medidas de contenção propostas pelas vanguardas poéticas da década de 50. A maturidade do poeta propicia um olhar as coisas e os seres de forma distanciada, às vezes melancólica, outras, irônica. Boitempo I, em poemas de formato variado, divide-se em: “Boitempo”, “Pretérito mais-que-perfeito”, “Fazenda dos 12 vinténs ou do Pontal”, “Morar nesta casa”, “Notícias de clã”, “O menino e os grandes”. A partir dessa divisão em seis partes, pode-se constatar o privilégio ora do tempo, ora do espaço/lugar a delinear o corte das lembranças, predominando uma forma de dizer o silêncio e o esquecido ou o que permanece incógnito, mas perceptível. A primeira parte – “Boitempo”– subdivide-se em: “Documentário”, “(In) Memória” e “Intimação”. Em “Documentário”, um poema lírico em tom narrativo, é apresentado uma espécie de pacto e explicação poética, que sugere formas de negatividade, como o silêncio (“o perfil da pedra/sem eco”), a cor predominantemente documental (“Tudo registra em preto-e-branco”), a partir da imagem de um viajante (“Já não é ele, é um mais-tarde/sem direito de usar a semelhança”). O viajante – o próprio poeta a referir-se a si mesmo como a um outro – sai para ver e não para rever o “tempo futuro”, afinal ele está filmando/documentando o “seu depois”. O que é visto, portanto, tal como nos textos de viajantes, “ganha estatuto de existência”, pois “ver, tornar visível, é forma de apropriação” ou “preâmbulo do legível” (ORLANDI, 1990, p. 13). Em termos simbólicos, toda viagem é para o futuro, pois é lá que estão as imagens e os sons de um passado tornado legível pela memória e pelo discurso poético. Nesta breve comunicação, detivemo-nos nos momentos em que a forma poética coloca em evidência a trituração dos seres, das coisas e dos objetos, pelo princípio-corrosão, quando parece predominar o “fundo indevassável”, que se abre para um “abismo sem fundo” (COSTA LIMA, 1995, p. 151). A poesia de Carlos Drummond de Andrade, em Boitempo, aponta o princípio-corrosão no próprio tempo histórico, no modo como os homens se apropriam das formas de dizer e de poder, tornando-se senhores de um mundo que “vibra nas pedras” e no choro contido dos escravos. Boitempo mastiga a própria voz do sujeito poético, o que é uma outra forma de negar o absenteísmo que pareceu caracterizar uma certa produção drummondiana.

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Numa de suas acepções, o termo discurso designa enunciado superior à frase, considerado do ponto de vista das regras de encadeamento das seqüências de frases (DUBOIS et al., 1978, p. 192-193). Émile Benveniste, ao estudar as reflexões de Jacques Lacan, assinala que a narrativa representa o “grau zero de enunciação: na narrativa, tudo se passa como se não houvesse nenhum falante; os acontecimentos parecem ser contados por si próprios” (Idem) O discurso pressupõe o uso da língua transformada em linguagem na sua dinamicidade própria, assim como pressupõe também vontade ou desejo de influenciar ou convencer um outro, no caso, um ouvinte, um leitor. O texto poético de Carlos Drummond de Andrade, ao tratar de questões vivenciais, acontecimentos e eventos concernentes tanto ao sujeito, quanto ao indivíduo em sociedade, ligados pelo fio da memória, marca as linhas de força do esquecimento e suas formas.

O princípio-corrosão, conforme concepção de Luiz Costa Lima, está presente em tudo aquilo que é visto pelo poeta, destacando-se como uma das formas pelas quais o sujeito poético tangencia o confessional e o sentimento de perda das coisas do passado. A corrosão parece assinalar também a quebra da palavra poética como mediadora ou tradutora de experiências comunais, sobressaindo na forma poética o corte, os versos curtos e densos, a forma seca liberta do sentimentalismo pela ironia daquele que mira a poesia e a história, plenas de vida e de morte.

O poema “Intimação”, um dos três poemas a abrir o livro, consiste em apenas duas falas indicadas por travessão:

- Você deve calar urgentemente

as lembranças bobocas de menino.

- Impossível. Eu canto o meu presente.

Com volúpia voltei a ser menino.

(p. 10)

A palavra volúpia – “grande prazer dos sentidos” – do latim volupia, mit. Volúpia “deusa do prazer”, aparece como referência explícita a um estado do ser, possuído pelo desejo e pelo prazer. Esquecimento e volúpia emergem como processos também lacunares, dobras pelas quais podemos vislumbrar as formas do inconsciente, assim como o são o sonho, o lapso, o ato falho, o chiste etc. O sujeito poético em Boitempo anuncia que a memória faz-se de “cacos/buracos/de hiatos e de vácuos/de elipses, psius”, assim como é através da volúpia que o corpo do poeta maduro é intimado a ser menino. A volúpia nomeia poeticamente o que se pode entender do processo de formações do inconsciente, quando, segundo Lacan, o sujeito sente-se “atropelado por um outro sujeito que ele desconhece, mas que se impõe a sua fala produzindo trocas de nomes e esquecimentos cujo sentido lhes escapa” (GARCIA-ROZA, 1987, p. 171). Tais fenômenos lacunares fazem parte desse escavar com volúpia realizado pelo sujeito poético.

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Na parte intitulada “Pretérito mais-que-perfeito”, o poema “Justificação” anuncia, no primeiro verso, que “não é fácil nascer novo”, nos penúltimos versos indaga: “Nascer de novo? Tudo foi previsto/e proibido/ no Antigo Testamento do Brasil”(B., p. 13). Ocorre uma retomada de percurso que localiza em Vila Nova da Rainha o nascimento (“cresço no rasto dos primeiros exploradores/ com esta capela por cima, esta mina por baixo./Os liberais me empurram para frente, os conservadores me dão um tranco, se é que todos não me atrapalham.”) e uma situação histórica repleta de entraves, trancos, impedimentos ou mobilizações do andar. O sujeito poético coloca-se como sujeito submetido às circunstâncias de qualquer natureza, históricas ou culturais.

“Com esta capela por cima, esta mina por baixo”, neste verso, o sujeito poético resume um complicado momento de nossa história, na qual ele se insere ao apontar um lugar entre, pelo rastro familiar de povoadores e mineradores das Gerais. No poema “Jacutinga”, os versos falam de ferro e ouro, o que pode sugerir um certo ambiente e sua cor, esta economicamente resumida: “É ferriouro: jacutinga./A perfeita conjugação./Raspa-se o ouro: ferro triste/na cansada mineração.”(B., p. 16) O poema seguinte “Fazendeiros de cana” acrescenta a cor do ferro e do ouro à cor do caldo de cana: “As fazendas misturam dor e consolo/em caldo verde-garrafa/e sessenta mil-réis de imposto fazendeiro”(B., p. 16-17). O efeito sinestésico, uma das formas da volúpia poética, perfaz um cenário com suas cores e sons, assim como um sentimento de dor e consolo, configurador do princípio-corrosão, por esse viés. O processo colonizador está presente, com força, nos poemas “Agritortura”, “Negra” e “Homem livre”. Em “Agritortura”, passado e presente produzem sentidos diferenciados para os mesmos instrumentos de lavoura: “Amanhã serão graças/de museu.// Hoje são instrumentos de lavoura/base veludosa do Império:/ ‘anjinho’/ gargalheira,/ vira-mundo.” (B., p. 18). A ironia presente em base veludosa do Império” antecipa as denominações que pouco ou nada dizem sobre a finalidade de tais instrumentos, e, novamente, o sentimento de “dor e consolo” perpassa a última estrofe: “Cana, café, boi/ emergem ovantes dos suplícios./ O ferro modela espigas/maiores./ Brota das lágrimas e gritos/o abençoado feijão/da mesa baronal comendadora.”(B., p. 18). Dor e progresso, “lágrimas” e “espigas maiores”, compõem esse fundo comum a tudo aquilo que transforma a natureza e os seres. No poema “Negra”, dividido em duas estrofes, a afirmação “a negra para tudo” é reiterada até o último verso: “A negra para tudo/nada que não seja tudo tudo tudo/ até o minuto de/(único trabalho para seu proveito exclusivo)/ morrer.” (B., p. 18-19) A morte, portanto, surge como forma de consolo para aquela que só tem para si mesma o momento da morte. A sua existência já é uma não-vida, o que realça a crueldade, nessa história de assujeitados, como irá se repetir no poema “Homem livre”. Neste poema, em tom narrativo, é contada a história de Atanásio, que “nasceu com seis dedos em cada mão”, o que poderia assinalar um destino afortunado. O poema, também em duas estrofes, apresenta o sujeito poético e um parente, Manuel Chassim, assim como sua pretensão de manter Atanásio escravo:

Tem prática de animais, grande ferreiro.

Sendo tanta coisa, nasce escravo,

O que não é bom para Atanásio nem para ninguém.

Então foge do Rio Doce.

Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,

Onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.

Meu parente Manuel Chassim não se conforma.

Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho:

Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.

Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?

(B., p. 19)

Num tom mais ameno em relação ao que é tratado no poema “Negra”, o sujeito poético narra a história de um escravo, apenas com o primeiro nome – Atanásio –, também denominado “crioulo”, na linguagem dos homens de poder que controlam a vida daqueles que não o têm, restando apenas “tantas qualidades”. O tema do escravo fugido está presente também em “O ator”, que conta, em uma única e longa estrofe, composta por setenta e nove versos, com rimas alternadas, e quase idêntico número de sílabas poéticas, a triste sorte de um escravo. O poema é finalizado da seguinte forma: “Cumpre-se a lei. Está escrito:/ a cada um o seu gado./ Para um escravo fugido/não há futuro, há passado,/ pelo que lá vai o conde/ tocando burro e vigiado./ A tropa vai caminhando/pelo Segundo Reinado.”(B., p. 30-32) A imagem do gado tornada semelhante a de um ser humano estará presente em outros poemas com conotações variadas. A saga do escravo fugido entrelaça-se com a do avô do poeta, que sempre traz um chicote (“meu avô acode à cena/ e brandindo seu chicote/(pois anda sempre com ele/em roça, brejão ou vila”), numa história vista como representação. Em outro poema, intitulado “15 de novembro”, com apenas uma estrofe, sem rimas externas ou internas, o tema da proclamação da República é apresentado de forma lacônica, desprovida de qualquer tom solene.

A proclamação da República chegou às 10 horas da noite

Em telegrama lacônico.

Liberais e conservadores não queriam acreditar.

Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.

Dr. Serapião e poucos mais o acompanhavam

De lenço incendiário no pescoço.

Conservadores e liberais recolheram-se ao seu infortúnio.

O Pico do Cauê quedou indiferente

(era todo ferro, supunha-se eterno).

Não resta mais testemunha daquela noite

Para contar o efeito dos lenços vermelhos

Ao suposto luar

Das montanhas de Minas.

Não restam sequer as montanhas.

(B., p. 33)

O teor do poema, cujo título é uma data histórica, importante para a construção positivista da memória republicana, contraria as pretensões dos políticos e intelectuais da época que buscavam instituir a “reconstituição de um passado sem lacunas e sem falhas” (FERREIRA NETO, 1986). Para Benjamin Constant, por exemplo, a data “quinze de novembro” deveria ser lembrada como um momento de confraternização espiritual entre o povo e a tropa. As marcas da colonização portuguesa, por sua vez, eram consideradas marcas a serem abolidas por representarem o atraso, em contraste com o progresso prometido pela República. Mas o olhar do sujeito poético não se ilude com os acontecimentos, assim como o “Pico do Cauê quedou indiferente/ (era todo ferro supunha-se eterno)”. Homem e montanha são atravessados pelo mesmo sentimento de indiferença em relação ao mundo externo, aos acontecimentos sociais que se propunham duradouros, mas nada trazem além do clima de efêmera festa. A atenção do poeta, longe das comemorações de rua e dos calendários políticos, dobra-se para o dentro, para o interior das casas, como no poema “Cuidado”:

A porta cerrada

Não abras.

Pode ser que encontres

O que não buscavas

Nem esperavas.

Na escuridão

Pode ser que esbarres

No casal em pé

Tentando se amar

Apressadamente.

Pode ser que a vela

Que trazes na mão

Te revele, trêmula,

Tua escrava nova,

Teu dono-marido.

Descuidosa, a porta

Apenas cerrada

Pode te contar

Conto que não queres

Saber.

(B., p. 20)

O clima de mistério e fascínio, ausente dos poemas que tratam de temas históricos, pode dar uma pista de uma das motivações da volúpia do poeta. A história do cotidiano, dos pequenos eventos, dos detalhes aparentemente sem importância que movem a vida de cada um de nós parecem comover o poeta, tirá-lo da quietude solene das montanhas de ferro. O princípio-corrosão, por essa via, pode propiciar também uma leitura da história, assumida ora como representação, com atores e cenários a tornarem visíveis as malhas do poder, ora como ocultação de algo revelado apenas por descuido (“descuidosa, a porta/apenas cerrada/pode te contar/conto que não queres/saber”. Os segredos do cotidiano das fazendas, com seus escravos e seus donos a protagonizarem embates e lutas seculares, parecem negar visões sociológicas e teorias tranqüilizadoras, tais como a dos estudos de Gilberto Freyre, por exemplo. Não há possibilidade de harmonia nesse mundo de montanhas e seres apenas aparentemente serenos. O veio subterrâneo, as minas, estão repletas de acidez, o que nos leva a compreender uma outra dimensão no discurso poético de Boitempo, a do silêncio voluptuoso que nos sugere uma outra forma de interpretar essas histórias, plenas de dor e consolo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo I. Rio de Janeiro : Record, 1989.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 34e. São Paulo : Cultrix, 1996.

DUBOIS, Jean et al. Dicionario de lingüística. Trad. Frederico Pessoa de Barros et al. São Paulo : Cultrix, 1978.

FERREIRA NETO, Edgard Leite. “A elaboração positivista da memória republicana”.In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro : 87 : 79-103, out.-dez. 1986.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro : Zahar, 1987.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. 2e. Rio de Janeiro : Topbooks, 1995.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo : Cortez, 1990.