UM ESTUDO DIACRÔNICO DAS VOGAIS “O” E “U”

Francisco Vasconcelos

Quando se toma a decisão de enveredar pelas vias que conduzem ao “misterioso” e fantástico (o que se vai percebendo a cada passo dado) mundo da língua latina, torna-se alvo de freqüentes abordagens do tipo: “mas o latim já morreu?!” ou “Poxa, que coisa exótica!” e ainda “Para que serve isto?” e assim por diante. Trata-se de pessoas que demonstram um profundo grau de ignorância quanto à condição do latim como língua não morta; e mais, língua cujo conhecimento é condição “sine qua non” para o domínio das línguas ditas neolatinas, seja do ponto de vista fonético, morfológico sintático ou semântico.

Em virtude do espaço e tempo exíguos, somos obrigados a um objetivo modesto. Optamos por uma pequena reflexão (não tivemos a pretensão de realizar nenhum estudo) sobre as vogais “o” e “u”. Para isto partiremos de um texto, cuja data não se pode precisar com exatidão.

É certo, contudo, que está situado entre o final do século XIII e início do XIV. Trata-se de um fragmento intitulado “Lenda do Rei Leir”[1], (do IV Livro de Linhagens, fls. X, R.), atribuído a D. Pedro de Portugal.[2]

Segue uma nota do Dr. José Nunes concernente ao supracitado texto:

O Nobiliário ou Livro de Linhagens... é dois século XIII ou XIV, o manuscrito, porém, em que ele hoje se contém e se guarda no arquivo da Torre do Tombo, é do século XV. A lenda do rei Lear que aí se encontra e é conhecida de quase toda a gente, depois que o grande dramaturgo inglês Shakespeare o pôs em cena, existe na tradição oral de vários povos, sem excluir o nosso.[3]

Em harmonia com a opinião de D. Carolina Michaëllis de Vasconcelos, emendei em Escócia o ‘Tostia’ do original.[4]

O primeiro texto literário escrito em português surgiu no século XII e se trata de “A Cantiga da Ribeirinha”,[5] que foi escrito em galego-português. Aliás, a primitiva poesia lírica peninsular foi escrita nesta língua.[6] Contudo, seria melhor fazermos um recuo ao século V de nossa era. Este século testemunha a queda do Império Romano Ocidental. Do ponto de vista lingüístico, este fato é significativo, uma vez que representa o fim da força mantenedora da língua latina como língua universal do Império.

A península Ibérica é marcada, a partir de então e durante os dois séculos subseqüentes, pela chegada dos povos germânicos (alanos, suevos, vândalos, visigodos), os quais adotaram a língua e a cultura latinas. Entretanto, a chegada destes povos provocou o desaparecimento da nobreza romana, que cultivava as letras latinas. No século VIII, essa península sofre a invasão dos árabes que possuíam uma cultura superior e impuseram sua língua como oficial. Nisto não obtiveram êxito, pois os povos da península permaneceram falando o romance (latim vulgar já modificado). Em 1143, a independência do Condado Portucalense e o título de rei a D. Afonso Henriques são reconhecidos. Nesta região era falado o galego-português.

A língua portuguesa compreende três fases: Pré-Histórica (do século V ao IX: o romance lusitano), Proto-Histórica (do século IX ao XII: a língua era falada, mas não era escrita) e Histórica (do século XII aos nossos dias). Esta última fase compreende dois períodos: Período do Português Arcaico (século XII ao XVI) e o Período do Português Moderno (do século XVI aos nossos dias).[7]

No primeiro período ocorrerá um fato importantíssimo. Em 1290, D. Dinis torna obrigatório o uso da língua portuguesa. Aliás, é seu filho, como vimos, o autor do texto escolhido por nós.

Ei-lo:

[LENDA DO REI LEIR]

Este rrey Leyr nõ ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amaua-as mujto. E huu dia ouuve sas rrazõoes com ellas e disse-lhes que lhe dissessem uerdade quall dellas o amaua mais. Disse a mayor que nõ auia cousa no mumdo que tãto amasse como elle, disse a outra que o amaua tanto como ssy meesma, e disse a terçeira, que era a meor, que o amaua tanto como deue d’amar filha a padre. E elle quis-lhe mall por em e por esto nõ lhe quis dar parte no rreyno. E casou a filha mayor com o duque de Cornoalha, e casou a outra com rrey de Scocia, e nom curou da meor. Mas ella, por sua vemtujra, casou-sse melhor que nehua das outras, ca se pagou della elrrey de Framça e filhou-a por molher. E depois seu padre della, em sa velhice, filharom-lhe seus gemrros a terra e foy mallandamte e ouue a tornar aa merçee delrrey de Framça e de sa filha, a meor, a que nõ quis dar parte do rreyno. E elles receberõ-no muy be derom-lhe todas as cousas que lhe forom mester e homrrarõ-no, mentre foy uiuo e merreo em seu poder.

De Sêneca, quando diz: “Nauis, quae in flumine magna est in mari poruula est” a nós, quando falamos: “O navio, que no rio é grande, no mare é pequenino”, temos várias etapas em que a língua passa por sucessivas variações, seja do ponto de vista morfossintático (simplificação e posterior desaparecimento da declinação nominal, redução dos gêneros, mudança no sistema verbal etc.), seja do vocabular[8] ou mesmo do fonético.

É para esta última que iremos direcionar nossa atenção. Mais exatamente, nos voltaremos para uma área da fonética denominada vocalismo, em que privilegiaremos as vogais “o” e “u”.

Se recuarmos no tempo por cerca de sete mil anos, iremos encontrar uma língua chamada indo-europeu. É hipotética,[9] pois dela não temos documentos históricos. A ela chegamos por via indireta, graças ao método da gramática comparada aplicado a suas descendentes. Confira o gráfico que segue elaborado pelo Prof. Marrouzeau:

Antigo X

(Indo-europeu)

Grego Antigo


Grego Moderno

Ítalo-céltico

Língua hipotética

Itálico

Língua hipotética

Céltico

Língua hipotética

Osco

Língua morta

Umbro

Língua morta

Latim

Gaulês

Língua morta

Britânico

Gaélico

Francês

Italiano

Espanhol

Português

Bretão

Irlandês

É desta língua hipotética chamada indo-europeu que o português, via latim, herda seu sistema fonético.

Note-se que as vogais indo-européias se conservam quase todas, tanto no grego quanto no latim, sendo que neste último a passagem é mais tranqüila, pois elas passaram para o grego através de modificações mais complexas. Segue uma pequena lista vocabular fornecida pelo Prof. Laurand.[10]

1. As vogais breves...

. ă: ά’γω, ago

. i( : τις , quis οις , ovis

. u( : ζϋγον , jugum; νπερ, super

. e( : ̉εστί , est; γένος , genus; άγετε, agite;

. o( : δομος , domus

2. As voais longas: ā, ē, ī, ō, ū

. ίς (*Γις), vis;

. μυς , mus;

. ημι- (ώριον) , semi-(hora);

. γνωτος , notus.

Mas a língua (linguagem humana artigulada) é sempre dinâmica, seu processo evolutivo parece não ter fim. De forma que, observando a evolução dos fonemas vocálicos na passagem do latim clássico para o português, constataremos alguns pontos significativos. Destacaremos alguns, sem contudo nos determos em nenhum deles, uma vez que carecemos de espaço.

1. Latim clássico: possuía cinco vogais que, segundo a quantidade, dividiam-se em breves e longas:

. ĕ, i(, o(, u(: eram vogais breves, classificadas sob o ponto de vista do timbre como abertas;

. ē, ī, ō, ū: eram vogais longas, classificadas quanto ao timbro como fechadas;

. ă e ā: podia ser breve ou longo, no que diz respeito ao timbre não sofria alteração.

2) Latim vulgar: a diferença entre elas se dava somente a nível de timbre.

Observe:

LATIM CLÁSSICO

LATIM VULGAR

ă, ā (longo ou breve)

a

ĕ (breve)

e (aberto)

ē, i( (e longo e i breve)

e (fechado)

ī (longo)

i

o( (breve)

o (aberto)

u(, ō (u breve e o longo)

o (fechado)

ū (longo)

u

3) Português: irá conservar do vulgar os timbres vocálicos, bem como o acento tônico.

Finalmente, teremos dois conceitos importantíssimos para a compreensão do vocalismo. Trata-se da diferenciação entre vogais tônicas e vogais átonas. Neste ponto, teremos uma série de regras que irão explicar as mudanças sofridas pelas vogais. Infelizmente, não será possível desenvolvê-los aqui.

A partir do texto A Lenda do Rei Leir, vejamos, a modo de ilustração, o que ocorre com as vogais “o” e “u”:

1) A vogal tônica é mantida em virtude da lei da persistência da sílaba tônica

- formōsa > fermosa (neste caso a palavra arcaica sofre também dissimilação) > formosa.

- Quōmŏdŏ > quomo (antes deve ter dado “quomoo) > como.

- Dūce > duque (aparece no gótico TIUHAN = puchar).

2) A postônica final “u” passa a “o”.

- Regnu > rreyno > reino (sua formação deveria chegar a “renho”, como “lenho”. Deriva da raiz sânscrita RAG = mandar).

- Uiuu > viuo > vivo (sua raiz está no grego ίς = força.

3) O ditongo “au” passará para o português como “au”, “ou”, “oi”.

- A#ltĕră > *autra (com a vocalização do “l”) > outra.

- Habuit > *haubet > ouue (com o ditongo “au” > “ou”) > houve.

4) As desinências da 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo resultará em “-ram” (cf. a vogal temática).

- Reciperunt > receberõ > receberam.

- Di(derunt > *de(de)runt > derom > deram.

Honora#runt > homrrarõ > honraram.

Encerrando por aqui, resta-nos uma impressão forte a respeito de nossa língua portuguesa. Trata-se da força de sua dinâmica interna. Disto nos vem uma curiosidade quase pueril sobre sua forma não só do ponto de vista fonético, mas também no que diz respeito à sintaxe e à morfologia, seja a médio, seja a longo prazo. Que as gerações futuras saibam deliciar-se desta maravilha de Deus.


BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, Dolores Garia e NASCIMENTO, Manoel. Gramática histórica: colegial e vestibular. São Paulo : Ática, 1970.

DIAS, Augusto Epiphanio da Silva. Syntaxe histórica Portuguesa. 3ª ed. São Paulo : Livraria Clássica Editora.

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro : FENAME, 1975.

HORTA, Guida Nedda Barata Parreiras. Os gregos e seu idioma. Coleção Curso de Iniciação à Cultura Helênica; A- Série Lingüística, vol. I, 2º tomo). Rio de Janeiro : J. Di Giorgio, 1979.

LAURAND, L. Estudios griegos y latinos. Biblioteca Científico-filosófica, III: Gramática Histórica Griega. Madrid : Editor Daniel Jorro, 1923.

LEITE, José F. Marques e JORDÃO, A. J. Novaes. Dicionário latino-vernáculo: etimologia, literatura, história, mitologia, geografia. Rio de Janeiro : Lux, 1956.

LEITE, José F. Marques. Grego clássico, novo método – Homero: desafio indo-europeu. Rio de Janeiro : Gráfica Portinho Cavalcante Ltda, 1976.

LEITE, José F. Marques. Língua luso-brasileira. Crítica, divulgação, atualização. São Paulo : Anchieta; Rio de Janeiro : Gráfica Lux Ltda, 1958.

MARROUZEAU, J. Introductio au latin. Collection d’Études Latines – Série Pedagogique. Paris : Les Belles Lettres, 1943.

NUNES, José Joaquim. Crestomatia arcaica. Lisboa : Livraria Clássica Editora, 1953.

TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

WILLIAMS, Edwin B. Do latim ao português: fonologia e morfologia da língua portuguesa. Coleção Filologia, nº 3. Rio de Janeiro : Instituto Nacional do Livro, 1961.



[1] NUNES, p. 17.

[2] Filho bastardo de D. Dinis, também conhecido por conde de Barcelos. Como o pai, foi cultor da poesia. Escreveu cantigas de amor e de escárnio, também é costume colocar sob sua autoria uma resenha ou cadastro das famílias dos nobres de seu tempo. D. Pedro é ainda conhecido pelo título de “Nobiliaaio”. Seu falecimento data de 1354.

[3] É de se notar que aqui no Brasil esta peça vem sendo, já faz alguns anos, encenada pelo ator Paulo Autran com grande sucesso de público.

[4] Vide Revista Lusitana, vol. VIII, p. 221.

[5] CARVALHO, p. 24.

[6] TEYSSIER, p. 27.

[7] Cf. CARVALHO, p. 25.

[8] TEYSSIER, p. 12-13.

[9] Para um aprofundamento no indo-europeu, cf. LAURAND, L.; MARROUZEAU, J. e LEITE, J.F.M, 1976.

[10] LAURAND, L. p. 322.