RITOS DE ESCRITA

CONCEPÇÕES E PROCEDIMENTOS DE AUTORES

Iúta Lerche Vieira (UEC)

 

INTRODUÇÃO

Dentro de uma visão processual da escrita, o foco de análise são os aspectos cognitivos envolvidos na composição de um texto, investigando-se, entre eles, os processos mentais do redator ao lidar com os problemas envolvidos no ato de redigir. Tais abordagens têm orientado a grande maioria dos estudos sobre a escrita desde a década de 70, embora na realidade brasileira, ainda se encontrem estudos que continuam a focalizar a escrita do ponto de vista do produto textual obtido. Também em nossa escola, esta é a direção comumente seguida, situando-se o foco do ensino apenas no produto final, como se não fosse possível exercitar os procedimentos de escrita que a ele conduzem.

Sem desconhecer os avanços no conhecimento sobre a composição escrita, que apontam agora para o horizonte do social e do interacional, pretendemos explorar neste estudo procedimentos de redatores proficientes, buscando desvendar conflitos ou encontrar identidades, que possam oferecer aportes para a compreensão global do processo de compor em linguagem escrita, com possíveis implicações pedagógicas. Centraremos o estudo na interface dos aspectos cognitivos e comunicativos, por considerá-los inseparáveis na dinâmica e no domínio da escrita. Ora, se a análise de procedimentos de escrita de autores proficientes (especialmente os escritores profissionais) tem sido uma das vias utilizadas para acessar a complexa atividade de redigir, nem sempre esses procedimentos têm sido examinados de forma abrangente, indo além de ilustrações de dificuldades gerais ou de rotinas particulares de escrever... Essa forma de análise tão pouco tem-se voltado direta e especificamente para o modo como esses escritores lidam com a imagem do leitor (a consciência da audiência) e com os propósitos comunicativos do texto enquanto ele está sendo produzido. Assim, é numa perspectiva intra-textual e inter-discursiva, retórica e lingüística que se situa, pois, o presente estudo, recorrendo objetivamente a representações de escritores sobre seus processos de redigir, revelados em depoimentos e entrevistas livres, cujo conteúdo é o foco desta investigação.

 

1. AUDIÊNCIA E PROPÓSITO NA ESCRITA:

 

Audiência e propósito são elementos básicos do repertório do redator, praticamente indissociáveis e que dão partida e sustentação ao ato de escrita, como procuraremos mostrar a seguir. Na escrita, o conceito de “audiência” remonta à Retórica Clássica, cujo foco de análise eram os efeitos que falantes e redatores/escritores esperavam gerar em audiências particulares. Assim, o conceito referia-se ao grupo a quem o redator pretendia influenciar com sua argumentação, isto é, ao leitor que partilhava algum interesse com o redator, a respeito de um particular argumento (NYSTRAND, 1982:2). De uma maneira geral, esse estudo retórico da audiência (retomado nos tempos atuais) pode ser definido como a investigação de planos e metas de redatores/escritores, considerando os modos como eles localizam todos os significados disponíveis para obterem determinados efeitos em seus leitores, ao lado de relações causais entre os textos propriamente ditos e tais efeitos. Destacam-se, nesta perspectiva, certos aspectos psicológicos da escrita, partindo-se do redator, em direção à audiência. Procura-se entender como o conhecimento do redator (idéias/pensamentos) torna-se texto, questionando-se os começos e os processos pelos quais esses pensamentos transformam-se em texto.

O estudo sobre audiência/propósito (do ponto de vista da compreensão do ato de redigir) também encontra respaldo na “Teoria Transacional de Leitura e Escrita” (ROSENBLAT,1994). Segundo esta teoria, a escrita é sempre um evento no tempo, “ocorrendo em um momento particular na biografia do redator, em circunstâncias particulares, sob particulares pressões externas e internas” (Op.cit.,1072). O redator, por sua vez, também “está sempre em transação com um ambiente pessoal, social e cultural”(Id.ibid.). Para a abordagem transacional, o processo de escrita está envolvido em fatores pessoais e sociais, individuais e ambientais. Considera-se também que o repertório lingüístico do redator precisa ser ativado de forma seletiva, e esse direcionamento é dado pela consciência que o redator tem da situação transacional: o contexto que dá início à necessidade de escrever e o leitor(es) potencial(ais) a quem o texto é presumivelmente dirigido. Para o redator experiente, a prática dessa consciência, monitorando as múltiplas decisões e escolhas que envolvem o ato/evento de escrita, é mais importante que qualquer declaração preliminar de metas ou propósitos.

ROSENBLAT (1994:1073) destaca o conceito de “stance” (instância, atitude) como sendo importante tanto na leitura, como na escrita, para guiar a atividade seletiva no fluxo da consciência. Uma “instância”, ou atitude seletiva, reflete um propósito do leitor/redator, trazendo certos aspectos para o centro de sua atenção e deixando outros à margem. Na escrita, assim como na leitura, entram em transação - a situação, o propósito, o equipamento lingüístico-experiencial do leitor ou do escritor, assim como os signos na página - e vão afetando a extensão para os significados públicos e privados, bem como as associações a eles correspondentes. Segundo a autora, o aspecto principal da delimitação do propósito na escrita consiste basicamente na adoção de uma instância ou atitude que emerge de algum ponto no “continuum eferente-estético”. Essa instância não é arbitrária, mas é função das circunstâncias, dos motivos do redator, do assunto e da relação entre redator e seu(s) provável(is) leitor(es). Assim, por exemplo, alguém que tenha se envolvido numa batida de carro no trânsito, adotaria atitudes (instâncias) muito diferentes para descrever o acidente num documento dirigido a uma companhia de seguros ou para contá-lo em uma carta a um amigo. No primeiro caso, ativaria um processo seletivo eferente, trazendo ao centro da consciência e da página os aspectos públicos, como declarações que pudessem ser comprovadas por testemunhas, ou por um exame no local. Já na carta ao amigo, o propósito seria compartilhar uma experiência, ativando uma instância estética. E esta atitude provavelmente levaria a atenção do sujeito-redator para alguns fatos básicos, junto com sentimentos, sensações, tensões, imagens e sons do momento. Neste caso, o processo seletivo ativaria palavras que despertassem algum vínculos simbólico no leitor provável, capaz de evocar uma experiência similar. Da mesma forma, se mudarem os propósitos, atitudes diferentes poderão emergir de outros pontos desse continuum eferente-estético.

 

2. CONCEPÇÃO DO ESTUDO E ASPECTOS METODOLÓGICOS

 

Com intuito de descrever, relacionar e interpretar processos de criação escrita de redatores competentes, mapeamos e analisamos conteúdos extraídos de 30 entrevistas livres/depoimentos de escritores profissionais brasileiros, de tipo narrativo (KOCH e FÁVERO, 1987) publicados em livros ou artigos de jornais de grande circulação, bem como em revistas especializadas.

O estudo visa descrever concepções sobre a escrita e procedimentos de redatores profissionais, levantando o que eles revelam fazer rotineiramente, ao lidarem com a audiência e o propósito comunicativo dos textos que produzem. Mais que desvelar segredos de seus ritos e rotinas de escrita (particularidades, manias, dificuldades, hábitos e preferências redacionais), procuramos relacioná-las e refletir sobre seus significados à luz de teorias processuais e interacionais, para melhor elucidar o ato de compor em linguagem escrita.

A maioria dos fragmentos analisados foram extraídos de STEEN (1981 e 1982) e alguns de CAMINHA (1996). Como fontes jornalísticas utilizamos o “Jornal do Brasil” (Rio de Janeiro) e “O Povo” (Ceará), além de recorrermos a uma revista pedagógica.

Das entrevistas e depoimentos, foram selecionadas e transcritas passagens completas em que os escritores focalizavam seus processos de criação textual, ritos e rotinas de escrever, em relação aos seguintes aspectos (de base interacional/pragmática), tomados como critérios de análise:

a) relação autor/leitor - posição dos escritores sobre a consideração da “audiência” em diferentes fases do processo de composição: durante o planejamento/geração de idéias, produção e/ou revisão do texto;

b) propósitos comunicativos - importância desses propósitos para os autores, considerando metas interpessoais que os orientem em seu processo de redigir;

c) particularidades do ato de escrita - referência a comportamentos habituais dos autores ou a seus procedimentos particulares de redatores, incluindo detalhes como tomar notas, fazer rascunhos, reescrever passagens, etc.

Cabe observar ainda que, como o material de análise foi colhido em entrevistas livres já publicadas, não houve um direcionamento a priori do pesquisador para os aspectos focalizados no estudo. A nosso ver, esse dado tem um aspecto positivo, na medida em que confere maior isenção aos depoimentos e permite verificar o peso da consideração da audiência/propósitos comunicativos nos processos de redigir dos autores-sujeitos da pesquisa. Por outro lado, a ausência de referência a esses aspectos não significa necessariamente que os autores desconsiderem esses fatores (por se tratar de entrevistas livres, onde os tópicos focalizados variavam). Assim também, a análise de representações ou concepções sobre processos cognitivos, está na dependência da atividade metacognitiva dos sujeitos, fazendo com que em algumas entrevistas surjam mais elementos que em outras; que procedimentos e operaçõe mentais possam ser mais ou menos percebidos pelos autores, expressos também de modo mais ou menos objetivo. De qualquer forma, as verbalizações feitas pelos escritores revelam preciosos aspectos do processo de composição e transcrição escrita, como veremos a seguir.

 

3. ANÁLISE DOS DADOS:

 

3.1. A RELAÇÃO AUTOR-LEITOR:

 

Dos 30 escritores pesquisados 19 (63%) revelam considerar o leitor enquanto audiência do texto em elaboração, 4 o desconsideram explicitamente (13%) e 7 (23%) não oferecem referências explícitas (NO = “não observáveis” quanto à levarem ou não o leitor em conta no ato de redigir). Estes resultados mostram-nos que a imagem do leitor é importante sim na construção do texto pelos autores analisados. Mas de que forma? Que concepção revelam ter sobre a audiência? Como lidam com ela em sua rotina de escritor? Que dizem a respeito do leitor? Quem são os autores que, de fato, consideram a audiência? Abaixo (Quadro 1) mostramos como se distribuem os autores quanto à consciência que revelam ter ou não de sua audiência. A seguir analisaremos qualitativamente cada um dos subgrupos:

 

QUADRO 1: C0NSCIÊNCIA DA AUDIÊNCIA (RELAÇÃO AUTOR-LEITOR) POR SUJEITOS.

 

+

+/-

NO

-

Adonias Filho

Fernando Sabino

Cyro dos Anjos

Autran Dourado

Affonso Romano de Sant’anna

Ignácio de Loyola Brandão

Dias Gomes

Marilene Felinto

Airtom Monte

Plínio Marcos

Geraldo Ferraz

Octávio de Faria

Antonio Carlos Villaça

 

J.J. Veiga

Rachel de Queiroz

Ary Quintella

 

João Antônio

 

Darcy Ribeiro

 

Jorge Amado

 

Elias José

 

Luís Vilela

 

Herberto Sales

     

Ivan Ângelo

     

Jorge Andrade

     

Lygia Fagundes Telles

     

Marcos Rey

     

Moacyr Scliar

     

Orígenes Lessa

     

Osman Lins

     

Ricardo Ramos

     

16

3

7

4

63% 23% 13%

 

 

3.1.1. OS QUE CONSIDERAM A AUDIÊNCIA ENQUANTO PRODUZEM O TEXTO:

 

Entre 63% dos autores levantados, a concepção de leitor/audiência surge integrada ao texto em elaboração, seja apenas como responsabilidade social, ou de forma mais direta, como “gênero encomendado” para um público determinado (a). Pode passar pela leitura informal dos primeiros leitores críticos (b), indo até ao apoio da crítica oficial (c), seja como forma de envolvimento com os sentimentos e necessidades dos leitores, que vão da simples coincidência de interesses ou abordagens (d), à intimidade e cumplicidade crescentes na forma de perceber a temática e dirigir o texto ao leitor visado (e).

Os aspectos d e e revelam mais diretamente a consciência da audiência como uma estratégia de composição e transcrição do texto. Além disso, também é curioso observar que até entre autores que não manifestam valorizar a audiência sob a perspectiva do texto em construção, alguns desses aspectos são recorrentes (em Rachel de Queiroz, por exemplo), o que vem reforçá-los como elementos que deveriam ser considerados pelo redator aprendiz.

Vejamos como, intertextualmente, esses depoimentos podem dialogar entre si, permitindo visualizar um continuum no modo de lidar com a audiência do texto em elaboração:

(a) Valorizar a convivência e proximidade com o povo, ou destacar o leitor é uma primeira forma de admitir a audiência na escrita, embora sem relacioná-la diretamente com o ato de redigir. Em seu depoimento, Plínio Marcos, nos diz: “não adianta absolutamente nada a cultura enrustida. Hoje, por exemplo, eu me filio muito mais à tese da convivência.Você tem que conviver mesmo, para poder ser o artista de seu povo, senão vai ficar artista de elite e não significar nada.” Ignácio Loyola Brandão vê o leitor como um co-autor, o que é possível pelo caráter aberto da obra de arte. Para ele, a crítica não existe. “Cada leitor que abre o livro passa a recriar este livro e esta é uma das características da obra de arte: ser aberta, permeável”. Fernando Sabino respeita o leitor, mas parece considerá-lo mais como uma presença a posteri, como se estivesse do outro lado... Segundo ele, “é preciso não duvidar da inteligência do leitor”... Se ele soubesse “o tempo que eu perco com uma bobagem assim, talvez valorizasse um pouco mais o meu trabalho”.

Por vezes, a consideração do leitor surge atrelada a um gênero. O convite para paraninfar um Clube de Leitura Infantil, por exemplo, fez com que Elias José escrevesse para crianças e transformasse o público infantil em seu leitor-alvo. Orígenes Lessa diz que a seleção do livro é fundamental para criar o gosto pela leitura e que “basta antecipar um livro ou aplicá-lo na faixa errada para alimentar o horror natural à leitura”. Autor de livros infanto-juvenis, tenta interessar e atingir esse público “escrevendo em sua linguagem” e “procurando não tratá-lo como débil mental” porque... “não se deve chatear o leitor”...

(b) Certos autores revelam a importância de contar com leitores críticos, alguns preferenciais e sistemáticos, para quem lêem diretamente, ou entregam seus textos ainda inconclusos e passíveis de mudanças, ao serem atualizados nessa leitura inicial em que tanto confiam. Herberto Sales precisa “ler para alguém, à medida que escreve” (tendo privilegiado José Cândido de Carvalho e Aurélio Buarque de Holanda) . Jorge Andrade, que tanto preza sua liberdade de criar, afirma: “a crítica é fundamental para que eu compreenda o sentido do trabalho”. E chega a dizer: “nunca escrevo uma peça “sem que três ou quatro pessoas que respeito e admiro leiam e critiquem”. Marcos Rey focaliza a própria escrita, tentando diluir o hermetismo de seus romances. Menciona mais o editor que o crítico, mas é à sua mulher que confia as primeiras versões de seus trabalhos, agora em busca de uma maior popularização. Ivan Ângelo vai além, colocando o leitor “como um dos autores associados, seja manipulando o livro para uma leitura não-linear, seja interpretando a partir de minhas dicas intencionais”. (Dias Gomes = NO / também revela esse aspecto.)

(c) O foco na crítica formal também aparece como um outro modo de remeter o texto produzido para uma audiência, capaz de avaliá-lo positiva ou negativamente. Mais ou menos vulneráveis à crítica, os escritores têm nela um referencial de divulgação e aceitação de seus escritos. Adonias Filho, por exemplo, “necessita da crítica como um teste público”. Antonio Carlos Villaça considera que a crítica “esclarece o público e o autor”.

(d) A consciência da audiência como uma estratégia explícita de composição do texto é referida por vários autores, que revelam necessitar de envolvimento com o leitor. Ilustrativo desta concepção é o escritor Moacyr Scliar, que usa o jornal como um veículo para aquietar essa necessidade de contacto mais direto com o leitor. Definindo-se como “um escritor que escreve aos domingos no jornal”, ele faz das crônicas “uma espécie de carta que escreve a seus amigos gaúchos”. Para Ary Quintella “o texto é função do sentimento que deseja despertar no leitor”. Ele conta como concebe o texto, a partir da fala: “faço uma sinopse de minha fala, acentuando raiva, desejo, horror, medo, onde quero que sentimentos sejam despertados.” Osman Lins põe o foco do que escreve no diálogo e no olhar do leitor: “Escrevo para mim e para o leitor. Um leitor que imagino, a quem respeito e que se modifica segundo minha própria evolução. É ele também um personagem de minha invenção, talvez o mais importante, pois orienta em grande parte minha obra, realizada com vistas ao seu possível olhar.”

(e) Para alguns autores essa busca de intimidade com o leitor é tão intensa que pode atingir uma coincidência perfeita. Affonso Romano de Sant’anna põe em palavras a essência desta concepção, revelando toda a funcionalidade da comunicação escrita: “Fui aprendendo, então, que escrevia para aprender. Que escrevendo ia desvelando meus sentimentos, primeiro para mim mesmo, depois para os outros.E se houvesse uma coincidência de interesses, minha escrita poderia se converter em algo, digamos, de utilidade pública”.

Ricardo Ramos, indagado se pensa no leitor ao escrever, nos dá outra lição: “Eu escrevo para ele (o leitor). Só que é um jeito diferente de pensar, não propriamente de imaginar o que ele espera, mas trazê-lo à nossa realidade. Quanto mais o autor souber expressar uma dada experiência, um dado sentimento, mais ele aportará ao sentimento e à experiência do leitor.”

Não por acaso, a consciência dessa íntima relação entre autor-leitor aproxima o ato de escrever de um “ato de amor”, que surge nos depoimentos expresso através de imagens amorosas: Lygia Fagundes Telles diz textualmente: “Escrever é um ato de amor que envolve o leitor, que o compromete. Se o autor está oco ou desesperado, não vai conseguir a cumplicidade do seu próximo.” E prossegue: “Há escritores que não se importam e fazem até um ar de desprezo em relação ao leitor. Para mim ele é o meu cúmplice. Preciso dele e acho que posso ajudá-lo através da palavra. É através desse encontro com o próximo que me descubro comigo mesma. É através da vontade de descobrir o próximo que descubro a mim mesma(...) A única coisa que sei fazer é isso: se puder, estender como uma ponte uma palavra para esse próximo e o seduzir” Para Airton Monte, “Leitor gosta de intimidade, de brechar a intimidade do cronista pelo buraco da fechadura da palavra escrita. Leitor gosta mesmo é de cumplicidade com o cronista, e principalmente de sinceridade absoluta. Diante do leitor, o cronista tem que se sentir como uma mulher na primeira consulta ao ginecologista.” E Darcy Ribeiro sintetiza essa voluptuosa posse amorosa, dizendo que “...melhor é ainda o sentimento de que se vai penetrar na intimidade do leitor, invadir sua alma, irizar seu corpo, porque se ele (o leitor) não se abre para o romance, também não goza; fazendo-o sentir, por verdades carnais, minhas fantasias”. E vai além: “Nenhum leitor de meus livros antropológicos me perguntou nunca o que os leitores dos meus romances perguntam... Creio, por isso, que no romance se alcança, com leitores e leitoras, um grau de comunicação bem próximo do que só se experimenta no amor.”

 

 

3.1.2. OS QUE DESCONSIDERAM A AUDIÊNCIA ENQUANTO PRODUZEM O TEXTO:

 

Dos 13 % de autores cujos depoimentos mostram despreocupação com a audiência ao escreverem, apenas um deles não menciona o leitor de alguma forma. É Octávio de Faria, que põe o foco da composição apenas em suas próprias intenções: “Escrevo ditado por uma exigência interior, minha, fundamentalmente minha. Nada me move em relação ao leitor.” Conseqüentemente, também afirmará: “Assumo a responsabilidade dos meus defeitos de estilo, etc. Não por tola pretensão, mas porque acho que certas coisas só podem ser ditas de certa maneira - essa que emprego. Quem não gostar de ler que não goste. É só não ler.” Os outros 3 escritores enquadrados nesta concepção, embora afirmem não precisar do leitor enquanto escrevem, não deixam de considerá-lo a posteriori enquanto público, o que nos permite inferir que mesmo indiretamente concebam uma audiência para seus escritos, ainda que ela se materialize depois do texto pronto...

Rachel de Queiroz é firme defensora dos personalismos, preferências e paixões do próprio escritor. Para ela o que pode haver é coincidência entre o autor e seu público, público este que chega a reclamar quando o autor se permite seguir um caminho ou gênero diferente daquele que o consagrou. Afinal... diz Rachel: “o público gosta da gente justamente quando lhe lisonjeamos as preferências e personalismos”. E considera que “a exigência de imparcialidade só aparece quando a gente está contrariando a opinião do leitor. O distinto público desculpe, mas recuso. Não abro mão de opinar, e opinar errado inclusive.” Rachel polemiza ainda mais, quando coloca sua concepção de audiência exclusivamente voltada para o texto oral, acreditando que “os grandes oradores dificilmente são bons escritores. Parece que eles necessitam do estímulo de uma audiência cativa para suas frases de efeito. O que desencadeia o seu talento não é uma página em branco, mas uma audiência presente. “E pensando bem”, diz ela, “isso está certo”...e prossegue indagando: “por que um único indivíduo pode receber juntos os dons da escrita e de eloqüência?”.

É curioso notar, que seja exatamente uma escritora que nega a necessidade da audiência na escrita, a que explicite seu conceito, e até valendo-se do termo técnico apropriado. É também importante registrar que a autora vê a audiência como “estímulo para o ato de criar”, válida só para os oradores, cuja audiência é concreta e material. A tirar por suas declarações, o escritor no ato de escrita interage apenas com “uma página de papel em branco”, a que responde com seu talento...

Os outros dois escritores incluídos neste grupo mostram-se tão absorvidos com o ato de compor e transcrever, que só se apercebem do leitor depois do texto pronto. Marilene Felinto põe o foco na história, na página por escrever e no próprio eu. Ela é categórica, ao falar de sua relação com o leitor e se chega a escrever pensando nele: “Para mim ele simplesmente não existe, embora eu saiba que preciso dele. Mas preciso só depois que eu escrevo, não enquanto estou escrevendo. Aí não existe o leitor, não existe nada nem ninguém. Somente a história, o papel e eu...o que se passa entre nós”.

Autran Dourado, altamente perfeccionista durante o ato de redigir, preocupa-se muito mais com o domínio da linguagem e com a técnica textual. Diz ele: “Quando alguém me pergunta para quem você escreve, respondo que só me preocupo com isto depois do livro pronto (...) fico tão envolvido com o problema das palavras, do ritmo, da composição, que sou incapaz de pensar em alguém lendo o livro.”

 

 

3.1.3. OS QUE NÃO SE REFERIRAM EXPLICITAMENTE À AUDIÊNCIA:

 

Entre os 23 % de autores em cujos depoimentos não se pôde observar explicitamente uma menção à audiência enquanto o texto é produzido, o leitor é apenas mencionado em alguns depoimentos. Geraldo Ferraz lamenta a falta de leitores de literatura: “este é um país, como diz Paulo Prado, em que não há leitores, porque não há livros e não há livros porque não leitores.” João Antônio diz que “o leitor brasileiro é um grande potencial, mas ainda não o descobrimos por falta de um trabalho sério, atualizado, coerente com a nossa realidade.”

Nos autores deste grupo também há menção à crítica, mas sempre em negativo. Cyro dos Anjos preocupa-se com ela, mas não acata os conselhos de certos críticos “com suas doutorices”. Jorge Amado diz que “nunca foi muito de pedir sugestões” e que tem notado que “certos críticos falam de seus livros e neles baixam o pau, sem sequer os terem lido.” O fato importa-lhe pouco. Luís Vilela também não se preocupa com a crítica. Concentra-se no texto: “minha questão é sempre escrever o melhor que posso.”

 

 

3.2. O PROPÓSITO COMUNICATIVO:

 

O que mobiliza os escritores ao redigirem? Qual seu propósito dominante quando escrevem? Quais são suas prioridades comunicativas? Pelo levantamento feito, é possível organizar os depoimentos dos autores em torno de três funções da escrita básicas (BRITTON: 1970): a função expressiva, a transacional ou a poética. (Alguns deles admitem ter em mente mais de um foco de atenção.)

Segundo nossos objetivos na presente investigação, interessa-nos apontar algumas diferenças entre essas funções, no que diz respeito a:

a) elemento mais diretamente focalizado na dinâmica da escrita;

b) finalidade com que a linguagem é usada;

c) pressões comunicativas desencadeadoras do tipo de uso da escrita;

d) modo como o redator representa o leitor de seu texto.

 

Referidos aspectos são sintetizados no quadro a seguir:

 

 

QUADRO 2: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS FUNÇÕES DA ESCRITA (BRITTON, 1970)

 

 

FUNÇÕES CARACTERÍSTICAS

FUNÇÃO EXPRESSIVA

FUNÇÃO TRANSACIONAL

FUNÇÃO POÉTICA

FOCO

Autor (eu)

Tópico (assunto)

Texto (mensagem ou forma).

FINALIDADE

Verbalizar experiência e sentimentos.

Obter coisas e mover ações.

Deleitar e entreter.

PRESSÕES COMUNICATIVAS

Necessidade de expressar-se.

Necessidade de realizar algo no mundo real.

Necessidade de criar um objeto para ser admirado.

REPRESENTAÇÃO DO LEITOR PELO AUTOR

Suposto interesse do leitor na pessoa que escreve.

Suposto interesse do leitor nos aspectos ob- jetivos da mensagem.

Suposto interesse do letor nos aspectos esté-ticos da mensagem.

 

Vejamos agora (Quadro 3) como se situam os escritores analisados, em relação às funções, ou propósitos comunicativos dominantes em seu processo de escrita.

 

 

QUADRO 3: DISTRIBUIÇÃO DOS AUTORES POR FUNÇÕES DA ESCRITA DOMINANTES NA MOTIVAÇÃO PARA ESCREVER, CRUZANDO COM CONSCIÊNCIA DA AUDIÊNCIA (+/+-/NO/-)

 

 

FUNÇÃO EXPRESSIVA

FUNÇÃO TRANSACIONAL

FUNÇÃO POÉTICA

FUNÇÕES MISTAS

       

Airtom Monte (+)

Adonias Filho (+)

AutranDourado(-)

AntonioCarlos Villaça(+) E/T

Dias Gomes (NO)

Affonso R. deSant’anna (+)

Elias José (+)

Cyro dos Anjos (NO) E/T

Fernando Sabino (+-)

Ary Quintella (+)

GeraldoFerraz (NO

Darcy Ribeiro (+) E/T

Marilene Felinto (-)

Ignácio de L. Brandão (+-)

Herberto Salles(+)

J. J. Veiga (NO) T/P

Moacyr Scliar (+)

Ivan Ângelo (+)

Marcos Rey (+)

Luís Vilela (NO) E/P

Octávio de Faria (-)

João Antônio (NO)

Osman Lins (+)

 

Rachel de Queiroz (-)

Jorge Amado (NO)

   
 

Jorge Andrade (+)

   
 

Lygia Fagundes Telles (+)

   
 

Orígenes Lessa (+)

   
 

Plínio Marcos (+-)

   
 

Ricardo Ramos (+)

   
       

(7) 23%

(12) 40%

(6) 20%

(5) 17%

 

(+) 2 (+) 8 (+) 4 (+) 3

(+ -)1 (+-) 2 (no)1 (no) 3

(no) 1 (no) 2 (-) 1 (-) 3

 

Como podemos verificar, os escritores distribuem-se homogêneamente quanto aos propósitos comunicativos que orientam sua escrita, com significativa predominância da função transacional. Cruzando essa distribuição com a escala de consciência da audiência depreendida nas entrevistas analisadas (Quadro 1), observamos o seguinte:

a) Independente do propósito comunicativo predominante, em todos os subgrupos, há autores que consideram a audiência ao redigirem - identificados com o sinal (+), o que vem reforçar a imagem da audiência como uma força mobilizadora e definidora do foco do texto...

b) No subgrupo dos autores que escrevem para estabelecer uma transação com a realidade é também onde há mais autores que se preocupam com a audiência ao escrever, justamente porque, nesta função, a linguagem é usada para mover ações e realizar coisas, o que pressupõe negociação e presença do outro... Por outro lado, este é o único subgrupo onde não há nenhum autor que desconsidera a audiência ao escrever.

c) Nos subgrupos de função expressiva (centrado no eu) e poética (foco no texto) é onde se localizam os poucos escritores que, ao escreverem não levam a audiência em conta - identificados com o sinal (-) . Isso faz sentido, uma vez que o envolvimento e interação com o “outro” é bem menos intenso que na escrita com função transacional.

Do ponto de vista qualitativo, vejamos como se caracteriza cada um desses grupos, utilizando fragmentos de seus próprios depoimentos:

 

 

3.2.1. DEPOIMENTOS COM ÊNFASE NOS PROPÓSITOS EXPRESSIVOS:

 

Neste grupo estão 23% dos autores analisados. O que os mobiliza é o próprio ato de escrever (não o texto), a necessidade de expressar o eu, seus sentimentos e conflitos, ou aquilo que sentem que precisam e querem dizer:

- Escrevo sobre aquilo que não sei para ficar sabendo. Tenho a impressão de que tudo que a gente escreve, consciente ou inconscientemente é sempre uma catarse... É uma forma de recuperação do sentido da vida. (Fernando Sabino)

- Gosto de escrever, é quando mais me sinto eu, me percebo inteiro do jeito que sou (...) “O diabo é que a gente nunca escreve o que quer, pois cada um escreve do jeito que pode. (Airtom Monte)

- Na verdade o que vem primeiro não é a idéia, nem a história, ou os personagens. O que vem primeiro é a angústia(...)Vem aquela angústia, aquela necessidade compulsiva ... Eu tenho de escrever uma peça (...) todo o meu teatro opõe o homem ao sistema social. (Dias Gomes)

- Às vezes eu passava noites em claro, escrevendo, simplesmente porque não podia parar de escrever. (Moacyr Scliar)

- Eu gosto mesmo é de escrever ficção e é ficção que eu vou escrever. (Marilene Felinto)

- Escrevo quando me dá vontade, isto é: quando a inspiração vem(...) Se o que quero é dizer uma determinada coisa, e eu a direi ao preço que for, mesmo desrespeitando regras de gramática. (Octávio de Faria)

- Todo artista produz para externar suas paixões, seus recalques, seus conflitos íntimos. Então como é que pode ser imparcial ? (...) Pessoas que escrevem, como as que pintam ou representam, são pessoas complicadas, parciais, cheiade personalismos e de preferências como as demais pessoas do mundo (Rachel de Queiroz)

 

 

3.2.2. DEPOIMENTOS COM ÊNFASE NOS PROPÓSITOS TRANSACIONAIS:

 

Neste grupo está a maioria dos escritores pesquisados (40%), cuja intenção comunicativa não é expressar o eu, mas usar a linguagem com uma função social: narrando, argumentando, criticando ou recriando a realidade. O foco dominante é o contexto, a história, a temática ou o assunto do texto. A escrita torna-se uma forma de comprometimento social e testemunho de um tempo, que, para alguns pode até ser eternizado através da palavra:

 

- Eu me vejo como uma pessoa irremediavelmente, presa ao ato de escrever. Não consigo viver sem ele. Se não estiver escrevendo, crio desculpas para perseguir a tarefa literária (..) O escritor é um testemunho do seu tempo. Ele não pode fugir ao seu papel de denunciador e de cotejador da realidade que o cerca. Agora, quanto à forma de dar esse testemunho, o escritor deve usar de toda a liberdade possível (...) O importante é não faltar com a verdade. (João Antônio)

- Minha literatura é uma tentativa de defesa do homem (...) Não acredito em literatura de brincadeira, de ler por ler, de evasão”.(Ignácio de L. Brandão)

- (...) Há sempre a vinculação com uma realidade imediata(...) O importante é que o escritor seja um lógico a serviço dos bens da vida e da cultura como, por exemplo, a liberdade. (Adonias Filho)

- A escrita literária não é alienada do cotidiano e da história. Esta é a diferença entre o escritor e o não-escritor. O verdadeiro escritor dirige, administra, torna produtivo o seu discurso. Ele não fica à mercê das palavras. (Affonso Romanno de Sant’anna )

- A função do escritor é ser testemunha e participante deste mundo.O escritor, o poeta escreve tentando negar a morte através da palavra. Minha roupa, meu brinco, minha cara, meu cabelo nada disso tem importância, porque tudo vai passar. Mas minha palavra, esta pode ser que não passe (...) E, se não passar, esta palavra será a negação da morte(...) O escritor tem que seduzir o próximo (...) Essa paixão que me faz escrever e escrever e escrever e (...) continuar acreditando que eu possa fazer alguma coisa pelo próximo. (Lygia Fagundes Telles)

- Quando eu vou para a máquina, eu nada sei da história que vou escrever - sei o que quero contar. Tenho amadurecido (mais ou menos) alguns personagens e ambientes, mas daquilo que se chama enredo, história, anedota, não sei nada. São os personagens que a criam... (Jorge Amado)

- Para não escrever o que quero, é melhor não escrever nada(...) Se tivesse que pensar em condições preliminares e restritivas ao conceber uma peça, nunca poderia fazer teatro. Tenho uma história a contar e vou contá-la. Sem inteira liberdade não pode haver arte. Teatro para mim é o registro do homem no tempo e no espaço (...) Acho que o escritor tem um compromisso fundamental com os problemas que envolvem os homens em seu tempo(...) Este para mim é o maior sentido, o único, da arte e do teatro.(Jorge Andrade)

- Em geral, eu começo quando tenho vontade ou necessidade de escrever (esta “necessidade” é geralmente de ordem externa, pedido ou encomenda de editor), quase sempre eu começo com um idéia vaga do que vou escrever, ou melhor, do que vai acontecer. Como o grosso das coisas que tenho escrito é no domínio da ficção, para mim as coisas acontecem mesmo, às vezes com total surpresa para mim (...)Dou preferência à ficção porque é só abrir as comportas...(Orígenes Lessa)

- (...) Você tem alguma receita de escrever para os jovens? - Tenho a impressão de que a primeira coisa deve ser o cara tirar a máscara professoral e paternalista (...) é fazer o possível para não chatear o leitor.

- Prefiro me comunicar com jovens , ou com os que ainda permanecem jovens(..).Não separo forma de conteúdo. Certas matérias pedem um tipo de casca, que só pode ser aquela. (Ary Quintella)

- Escrever como contribuição, uma coisa a dar (...)Não faço literatura participante, nem alienada, mas posso admitir as duas posturas. Tenho a minha posição, acho que bem clara, sem que ela me autorize a fazer restrições ou impor regras(...) Existe a matéria a tratar, que se desdobra em temas e personagens, com o seu tempo, seu espaço. No conto, a intensidade é fundamental, essa emoção concentrada. No romance, o leque se abre para soluções múltiplas e abrangentes. Duas tônicas: a de síntese, a de análise(...) Para mim, cada novo livro tem de representar uma conquista, uma evolução. (Ricardo Ramos)

- A gente sabe o que quer dizer, o difícil é como(...) ( Ivan Ângelo)

- O que é que determina o gênero: romance, conto, peça? - A necessidade(...)Eu escrevo histórias, eu tenho histórias para contar. (Plínio Marcos)

 

 

3.2.3.DEPOIMENTOS COM ÊNFASE NOS PROPÓSITOS ESTÉTICOS E/OU POÉTICOS:

 

Neste grupo estão 20% dos autores pesquisados, aqueles cuja preocupação é o texto em si mesmo, o produto final da escrita. Escrever é um desafio e uma técnica. Importa escrever bem, lutar com as palavras, planejar o texto, perseguir a melhor forma e os melhores efeitos estéticos. Entre alguns deste grupo também encontramos alusões à responsabilidade do escritor com o seu tempo e o sentido evolutivo a buscar na obra literária em construção.

 

- Não quero nunca perder o domínio da técnica(...) O escritor tem uma única responsabilidade: escrever bem. De qualquer maneira ele é sempre responsável pelo seu tempo, ele dá, queira ou não, um testemunho de sua época, de seu tempo..(...) A realidade é a ‘besta sadia’ que você deve enfrentar sozinho e para tanto tem de inventar várias técnicas, aquilo que costumam chamar de estilo.(AutranDourado)

- Não acredito em espontaneidade -pelo menos em termos literários- sem a efetivação de um traquejo estilístico profundo (...) Donde se conclui que o escritor que não policiar esteticamente sua linguagem, isto é podar, afinar (no sentido musical), vai acabar se machucando. (Herberto Salles)

- Na prosa, a definição não é bem da primeira sentada, acontece à medida que você vai trabalhando o texto... Acho que o escritor tem que reescrever até mais do que escreve, sempre cortando muito, nucna acrescentando. (Elias José)

- (...) Mas a literatura da maioria é feita sem uma consciência profunda da adstrição do escritor ao seu trabalho, à sua concepção e à sua execução. Eu exijo tudo do escritor. (...) O que é que falta então? - É ter uma expressão atual, limada, e empenhar tudo para que essa expressão não fique hermética (GeraldoFerraz)

- O escritor tem de ser um arquiteto, precisa ter a planta de seu conto ou romance antes de dar a partida (...) Dou singular importância à planificação e estrutura dum trabalho literário(...) Admito que se burla ou revolucione a estrutura do conto ou do romance, mas sem leviandade ou exibicionismo, e por imposição do tema e da história focalizados. (Marcos Rey)

 

 

3.2.4. DEPOIMENTOS QUE COMBINAM PROPÓSITOS DIFERENTES:

 

Este grupo representa, aqueles que aludiram a mais de uma motivação básica para caracterizar seus atos de escrita., sem acrescentar, contudo, novas categorias de análise. Nele figuram 17 % dos autores. Dos 5 autores que assim se manifestaram, 3 deles juntam propósitos expressivos e transacionais (E+T), um deles reúne o transacional com o poético (T+P) e o último integra o expressivo com o poético (E+P). Seguem os depoimentos:

 

- Vida religiosa, vida literária, vida intelectual e espiritual são uma realidade só. Sempre concebi o mosteiro como lugar da literatura (...) Não vejo diferença entre literatura encomendada e a que faço espontaneamente, lentamente, ao longo dos anos. Faço tudo com o mesmo entusiamo e a mesma paixão... (Antonio Carlos Villaça - E+T)

- A ficção parece-me apenas a interpretação da realidade, quer exterior, quer interior. Seria uma decomposição da realidade, para com seus próprios elementos, sendo recriada segundo a ótica do escritor (...) Só pego da pena quando tenho, realmente, algo a dizer...(Cyro dos Anjos - T+E)

- Romancear é reinventar a própria vida, é inventar personagens, é reinventar o destino, é um ato demiúrgico(...)você se expressa muito mais no romance do que num ensaio qualquer. Porque no ensaio,ou com uma biografia que é primeira pessoa, você está se entregando. No romance não. Os seus pecados você põe no personagem tal, as suas aspirações inconfessáveis põe no outro personagem(...) (Darcy Ribeiro ­­­­­­- E+T)

- Literatura é arte, não panfleto. Mas como política é uma realidade que nos cerca, nos preocupa e nos condiciona, ela não pode estar ausente da literatura. E uma maneira simples de não deixá-la de fora é dar-lhe uma dimensão mais profunda do que a simples condenação ou denúncia (...) Só me dou por satisfeito quando acho que cheguei o mais perto possível do que estava querendo dizer.(J. J. Veiga - T+P)

- Eu só escrevo quando a necessidade de escrever é tão natural e tão imperiosa como a fome, a sede, o sono(... )A única preocupação do autor deve ser a de escrever bons livros. (Luís Vilela - E+P)

 

 

4. COMENTÁRIOS FINAIS E POSSIBILIDADES A EXPLORAR

 

Fechando a análise, podemos dizer que o estudo confirmou nossa intuição de que os depoimentos dos autores revelariam muito de suas representações sobre o ato de escrever. E mais: iluminou a compreensão do sentido que a audiência pressuposta e os propósitos comunicativos têm na redação de um texto. Encontramos evidências quantitativas de que a grande maioria dos escritores (63%) levam em conta o virtual leitor do texto no momento de sua produção, assim como revelam que sua motivação pessoal para escrever é mais de ordem interacional/transacional/social (40%), que expressiva / emotiva (23%), ou estética/textual (20%), independentemente de alguns autores com concepções mistas. Em termos qualitativos, o levantamento e a análise de conteúdo realizadas desocultou ricos depoimentos autorais, desapercebidos na massa de longas entrevistas livres, possibilitando-nos estabelecer relações interessantes sobre o trato dos autores com esses dois elementos básicos do repertório do redator - a audiência e o propósito comunicativo do texto, aspectos a priorizar na instrução para redigir, como impulso à construção do texto.

As concepções de escritor e de atos de escrita depreendidas dos depoimentos ilustram a complexidade do ato de redigir e dão pistas de elementos a considerar no ensino-aprendizagem da escrita. Da mesma forma, as rotinas de escrita dos autores, tópicos enquadrados em nossa terceira categoria de análise (“particularidades sobre o ato de escrita”), ainda não concluídos. Além disso, o estudo deixa entrever outros tantos aspectos relevantes na produção de um texto, abrindo possibilidades de novas investigações sobre a escrita, num momento em que sua própria natureza é redimensionada com a revolução digital e a incorporação definitiva da escrita eletrônica. Entre esses aspectos merecem destaque: as novas fontes de motivação para escrever, a caracterização dos aspectos situacionais e rotinas autorais que cercam a produção textual, as diferenças entre o texto manuscrito e o digital, vistas entre suas condições de produção e de ensino.

 

 

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BRITTON, J. Language and Learning. England, Harmondsworth/Peguin Books, 1970.

CAMINHA, Edmilson. Palavra de escritor. Brasília, Thesaurus, 1996.

KOCH, Ingedore G. Villaça e FÁVERO, Leonor L. “Contribuição a uma tipologia textual”. In: Letras & Letras, volume 3, no.1. Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, 1987.

MAINGUENAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

STEEN, Edla van. Viver & Escrever, volume 1. Porto Alegre, L&PM, 1981.

------. Viver & Escrever, volume 2. Porto Alegre, L&PM, 1982.

NYSTRAND, Martin (Editor). What Writers Know - The Language, Process, and Structure of Written Discourse. Chicago, Illianois, Academic Press, 1982:1-26.

ROSENBLAT, Louise M. “The Transacional Theory of Reading and Writing.” In: RUDDELL, Robert B.et. all. (editors). Theorethical Models and Processes of Reading. Newark/Delaware, IRA, 1994:1057-1092.