O PERCURSO A PARTIR DE FATORES

SEMÂNTICOS/DISCURSIVOS E SOCIAIS

Adriana Gibbon

1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho, focalizo a forma perifrástica como objeto, localizando-a como uma das formas alternantes na codificação do tempo futuro, variando com o presente do indicativo, e mostrando indícios de seu percurso de gramaticalização através da leitura dos grupos de fatores estudados para realizar o trabalho variacionista.

Busco embasamento teórico no Funcionalismo Lingüístico, gramaticalização, para traçar um caminho percorrido pela perífrase que vai desde uma forma para expressar a modalidade ligada ao futuro até assumir a própria função de tempo no lugar do futuro do presente. E, pesquisando as formas variantes que preenchem a função de tempo futuro, enquadro este trabalho na Teoria da Variação.

O uso da variante forma perifrástica, em lugar do futuro do presente para codificar a função que situa a ação à direita do ponto de fala, é bem pouco discriminado no português. A entrada da perífrase para expressar o futuro vem encontrando resposta positiva entre os falantes, o que me leva a tratar o fenômeno como processo de gramaticalização da perífrase. Por outro lado, as formas no futuro do presente estão em crescente desuso na língua falada, o que pode evidenciar a ocorrência de mudança lingüística. Os resultados finais apontam nessa direção.

Proponho, como hipótese central, que a forma perifrástica está entrando na língua falada para codificar a modalidade inerente ao tempo futuro e que, aos poucos, está expandindo sua função para codificar aspecto e tempo futuro, tomando o lugar da forma futuro do presente.

Dividi esse trabalho em cinco partes. A primeira trata da introdução e é seguida do objeto, onde comento sobre o tempo futuro e as duas formas abordadas para codificá-lo, forma perifrástica e presente do indicativo. Enfatizo a primeira forma por tratar-se do ponto central deste trabalho.

A terceira parte focaliza a metodologia utilizada para a análise variacionista e apresenta, também, um item sobre a gramaticalização do verbo going to, no inglês, que servirá de base teórica para a proposta do caminho de gramaticalização da perífrase. Esclareço que, ao tratar da forma perifrástica (IR + INFINITIVO) e seu processo, estou falando também do verbo IR como auxiliar. Reconheço que são dois processos distintos, mas que se encontram profundamente imbricados.

Na quarta parte, retomo a hipótese central e proponho, utilizando como o apoio a análise variacionista, indícios de gramaticalização da perífrase.

Finalmente, na quinta parte, apresento um diagrama que indica um possível percurso para a forma perifrástica desde o momento em que ela se insere na língua para expressar modo até um estágio mais avançado, no qual ela estaria codificando tempo.

 

2. OBJETO

 

O futuro é, dos três tempos conhecidos (presente, passado e futuro), o mais polêmico em termos de possibilitar o enquadramento da sua identidade enquanto categoria de tempo. O futuro possui um valor temporal que não permite expressar uma modalidade factual, pois só aceita asserções segundo a avaliação que o falante faz da possibilidade ou impossibilidade da ocorrência de um estado de coisas. Tal particularidade compromete a determinação do valor de verdade da proposição no momento em que ela é enunciada e permite afirmar que há sempre um valor modal ligado ao valor temporal, como as duas faces de uma moeda.

Entretanto, o tempo futuro, enquanto categoria lingüística, ocorre com facilidade no português, tanto na língua falada como na língua escrita e para expressá-lo o falante utiliza várias formas verbais, tais como: a forma perifrástica (vou sair), o presente do indicativo (saio) e o futuro do presente do indicativo (sairei), entre outras. Observem-se, por exemplo, os enunciados:

 

(1) Ela vai ficar até dia quinze de abril. É quinze dias. (FLP 11, L0510)

(2) Faz cinco anos, dia vinte e um de outubro. (FLP 19, L0897)

(3) Acho que muita coisa que ele prometeu ele não está cumprindo ainda. Poderá ainda cumprir, mas não está cumprindo. (FLP 07, L 0586)

 

Um falante do português dificilmente consideraria que (3) é gramaticalmente melhor que (1) e (2); ou que (1) é gramaticalmente mal construído por apresentar a forma perifrástica expressando o tempo futuro, no lugar antes reservado ao futuro do presente (3) e/ou ao presente do indicativo (2). Portanto, nenhuma das formas é estigmatizada.

O uso do presente do indicativo como forma de expressar o futuro é bastante comentado pelas gramáticas. Said Ali (1964:161) declara que o tempo presente também designa um ato que terá realização próxima, quando o verbo tem valor de presente-futuro: Amanhã não saio de casa. Para Cunha & Cintra (1985:438), o presente pode apontar um fato futuro, de realização próxima, acompanhado de um advérbio para não haver ambigüidades: Amanhã não saio de casa e faço o trabalho.

A forma perifrástica, ao contrário, raramente é prevista nas gramáticas tradicionais, entretanto, alguns trabalhos de língua portuguesa, que tratam da língua falada ou registram usos do idioma além dos já normatizados, costumam mencionar tal forma. O futuro perifrástico é constituído pelo presente do indicativo do verbo IR (flexionado em uma das pessoas do discurso) + infinitivo do verbo principal (vou estudar).

Apenas Said Ali (1964) e Cunha & Cintra (1985) comentam sobre a perífrase. Cunha & Cintra (1985) afirmam que a forma perifrástica de IR + infinitivo é usada como substituta do futuro do presente e indica uma ação futura imediata. Said Ali (1964) reconhece a combinação do verbo IR + infinitivo para designar locomoção, desejo de realizar algo ou um fato que não tardará a realizar-se. Encontra-se, ainda, alguma referência à perífrase em outras gramáticas quando se analisa o aspecto ou a auxiliaridade do verbo IR.

 

3. METODOLOGIA

 

Os dados usados nesta pesquisa são parte integrante de um dos corpora do Banco de Dados do Projeto VARSUL. Meu corpus compõe-se de trinta e seis entrevistas realizadas no município de Florianópolis com informantes da área urbana, distribuídos de forma homogênea em relação às variáveis sexo, idade e escolaridade. Para analisar os dados encontrados emprego o programa VARBRUL (Pintzuk, 1988).

Para a análise que proponho neste trabalho, tratarei do percurso de entrada da forma perifrástica na língua falada através de alguns grupos de fatores controlados para o estudo da variação. Por esse motivo, seleciono os grupos de fatores que apontam o caminho de gramaticalização, independentemente de sua escolha e ordem pelo programa VARBRUL.

O processo de gramaticalização tem sido estudado e discutido sob muitos ângulos e as conclusões a que chegam os pesquisadores são bastante divergentes. Para esse estudo, utilizo os trabalhos de Heine (1982), Heine et al. (1991) e Fleischman (1982) que propõem um percurso transcorrido pela forma be going to, na língua inglesa, chamado de go-future.

 

3.1 A gramaticalização de go-future

 

A gramaticalização, em termos gerais, é o processo que evidencia o caminho pelo qual as formas gramaticais são construídas e que mostra, também, como as formas tornaram-se ainda mais gramaticais através do tempo. O processo de gramaticalização é abrangente, no sentido de que envolve outros mecanismos, tais como a analogia e a metáfora.

Quanto ao aspecto que diz respeito à natureza do processo envolvido na mudança do verbo lexical go em auxiliar de futuro (be going to), Heine (1982:11) afirma que o processo metafórico explica a mudança do nível maior de uma fonte proposicional concreta, o esquema de movimento, para uma função gramatical abstrata, o futuro.

Na língua inglesa, há dois tipos de futuro (Heine et al.:1991:242): futuro simples (I will come) e futuro complexo ou go-future, que envolve a construção com o verbo GO como auxiliar e o verbo principal no infinitivo (I am going to come). Os autores consideram que os dois futuros sejam equivalentes e intercambiáveis em muitos contextos, mas o go-future possui algumas particularidades semânticas.

Fleischman (1982:190) encontrou, entretanto, um denominador comum para as estruturas de go-future. Segundo ela, fica implícito a todas as interpretações de go-future uma conexão entre presente e futuro, de acordo com a qual uma situação futura é vista pelo falante como se originando de, ou de alguma forma relacionada com o estado de coisas presente. O ponto essencial é a natureza psicológica, mais do que a natureza cronológica, deste elo com o presente, o que habilita as expressões de go-future descreverem situações localizadas mesmo em um futuro remoto. Essa relevância do presente (present relevance) é uma noção essencialmente pragmática. Ela pressupõe, de um lado, um grau de participação, interesse ou envolvimento pessoal na situação; e de outro expressa a visão subjetiva que o falante tem da situação no momento da declaração (ibid.:204).

Como o desenvolvimento de go-future indica uma progressão, um processo, ele pode ser analisado, e tem sido, como o desencadeamento de diversos processos metafóricos que envolvem, também, componentes pragmáticos.A progressão desses componentes pragmáticos para uma função não-pragmática passa dessa noção pragmática para um aspecto (prospection) e finalmente para um tempo, com ou sem a coloração aspectual/pragmática ou a relevância do presente. Essa progressão faz parte de uma cadeia de gramaticalização maior, que, segundo Heine et al.(1991:242) pode ser resumida em:

 

noção espacial > relevância do presente > prospection > futuro

ação verbal pragmática aspecto tempo

(be going to)

 

O processo de gramaticalização da expressão be going to em inglês já está bastante adiantado, o que permite dizer que o auxiliar expressa um futuro imediato derivado historicamente do verbo de movimento GO em contexto específico, que as duas formas coexistem e são polissêmicas.

 

4. INDÍCIOS DE GRAMATICALIZAÇÃO FORNECIDOS PELA ANÁLISE VARIACIONISTA

 

os 743 dados coletados na fala de Florianópolis permitem-me afirmar que a perífrase está assumindo o lugar do futuro do presente ou porque sua força de expressão, que envolve modalidade, aspecto e tempo, pressiona o futuro do presente ou porque o próprio futuro do presente está desaparecendo, deixando a função de codificar tempo futuro à espera de uma forma o assuma, nesse caso, a perífrase: apenas dez dados são de futuro do presente. Três desses dados fazem parte de um só contexto de futuridade, uma espécie de enumeração de coisas e são seguidos da forma perifrástica:

 

(4) Eu acho que o dia que o povo der conta de que a educação é a base de tudo, acho que nós não teremos guerra, não teremos briga, não teremos nada, pelo contrário, o mundo vai viver em paz. (FLP 13, L 0773-0776)

 

Os 10 dados de futuro do presente foram excluídos uma vez que sua coleta serviu apenas para detalharmos o uso dessa forma no contexto de futuridade, e passo a tratar a forma perifrástica, que somou 453 dados (61%), como uma forma em variação com o presente do indicativo, que obteve 280 dados (38%).

Apresento e discuto, a seguir, os grupos de fatores que oferecem evidências para a hipótese de que ao entrar na língua para assinalar com mais ênfase a modalidade no tempo futuro, a perífrase encaminha-se para seu verdadeiro lugar: marcar o tempo, no espaço antes reservado ao futuro do presente.

 

4.1 Fatores lingüísticos

 

O primeiro contexto significativo para essa hipótese é o do modo subjuntivo, que inibe a perífrase. Tradicionalmente este modo é aceito como o modo hipotético, da dúvida, especialmente o contexto dos enunciados condicionais. Tal contexto hipotético é fortemente marcado pela modalidade, mas possui o tempo definido, mostrando, inclusive, relações de seqüencialidade. Ele se caracteriza por apresentar um enunciado condicional, introduzido, na maioria dos dados, pelo conectivo se, e orações de futuro do futuro, ou seja, orações que estabelecem uma relação de seqüência entre si, no tempo futuro. Vejam-se alguns exemplos e a tabela 01 mostra o resultado final.

 

(5)...aí eu disse assim, ó: “Que tu o fogão, tudo bem, e a gente vai pagar depois, né?” (FLP 07, L 0571)

(6) Mas ele se arrependeu porque nós vamos fazer falta. (FLP 03, L 0344)

 

Freqüência Aplic./Total

Percentagem

Peso Relativo

Indicativo

197/301

65%

0,59

Formas nominais

11/22

50%

0,56

Subjuntivo

27/99

27%

0,23

Tabela 01: Influência do modo do verbo da oração vinculada sobre o uso da forma perifrástica.

 

Como se pode observar, os resultados mostram evidências favoráveis à hipótese de que a perífrase tende a aparecer vinculada aos tempos do modo indicativo sendo inibida fortemente pelo subjuntivo. Uma interpretação plausível é a de que ao nos servirmos do modo indicativo consideramos o fato expresso pelo verbo como certo, real (cf. Cunha, 1978; Cunha & Cintra, 1985 e Bechara, 1987) e o verbo IR auxiliar da perífrase seria interpretado como sendo modal, expressando a atitude de certeza, intenção ou iminência da realização do fato (cf. Mateus, 1989; Cunha & Cintra, 1985 e Bechara, 1968).

Essa modalidade expressa pelo indicativo é compatível com a modalidade de intenção tantas vezes associada à perífrase. Nesse caso, então, a perífrase estaria expressando modalidade. Considerando-se, entretanto, o valor temporal, verifica-se que o modo indicativo não instaura contexto de futuridade, logo a responsabilidade pela indicação de tempo futuro recai sobre a forma perifrástica, caso em que a perífrase estaria expressando tempo. Como a forma perifrástica encontra-se ainda em processo de gramaticalização, a função de codificar tempo ainda não lhe cabe totalmente. Sua motivação inicial é assinalar a modalidade e acreditamos que esse foi o motivo que lhe permitiu aparecer em contextos com o indicativo: sua carga de modalidade é compatível com a do indicativo. Uma vez neste contexto, entretanto, ela pode estar adquirindo função de expressão de tempo.

Por outro lado, uma possível explicação para o modo subjuntivo estar favorecendo o presente do indicativo é que ele indique com mais ênfase tempo futuro do que modalidade. Essa particularidade propicia o aparecimento do presente, pois ela desfaz a ambigüidade característica da forma, que pode, também, expressar um fato habitual. Assim, o contexto condicional é um contexto essencialmente modal, mas seu tempo definido facilita o presente do indicativo, porque é o suficiente para desfazer a ambigüidade e permite que o presente codifique o tempo futuro.

O segundo contexto estatisticamente relevante para minha hipótese e que também inibe a perífrase é o que apresenta o verbo principal com traço semântico de movimento, situação que apresentaria duplamente tal traço caso aparecesse o auxiliar IR. Proponho uma escalaridade para analisar o traço semântico do verbo principal utilizando os de deslocamento e quantidade de movimento na ação intrínseca ao verbo. Por movimento tomo um simples conceito do dicionário: ato ou processo de mover (- se), animação, agitação (Ferreira, 1988:346) e por deslocamento: tirar do lugar onde se encontrava (ibid.:167). Veja-se o quadro:

Tipos

Traços

Exemplos

 

Movimento

Deslocamento

 

Movimento 1

+ +

+ +

sair, ir, andar

Movimento 2

+ +

+ -

fazer, namorar, brigar

Movimento 3

+

-

mostrar, comer, dirigir

Movimento 4

movimento interno (percepção, emoção)

assistir, ver, amar

Estado

- -

ter, ser, estar

Quadro 01 - Apresentação dos critérios movimento e deslocamento

 

O verbo pleno IR possui um traço de movimento inerente, conforme destacado por Costa (1990:75): o verbo ir expressa o curso de fatos a partir de um ponto locativo/ temporal qualquer. Por esse motivo, a expectativa é de que os verbos principais que se combinam com o IR auxiliar tendem a ser de [- movimento e - deslocamento] enquanto os verbos de [+ movimento e + deslocamento] devem aparecer na forma presente do indicativo.

Os movimentos 2 e 3 foram amalgamados por apresentarem comportamento parecido com respeito à variante forma perifrástica. A tabela 02 apresenta os resultados:

 

 

Freqüência Aplic./Total

Percentagem

Peso Relativo

Movimento 2, 3

214/303

71%

0,55

Outros

31/45

69%

0,80

Estado

155/229

68%

0,61

Movimento 1

55/ 192

36%

0,26

Tabela 02: Influência do tipo semântico de verbo principal sobre o uso da forma perifrástica.

 

Como se pode observar, os resultados parecem confirmar a hipótese de que os verbos de movimento 1 desfavorecem o uso da perífrase e que os de movimento 2,3 e os de estado a favorecem. Com relação a outros, é possível dizer que, se por um lado há uma certa dificuldade em encontrar um lugar preciso para esses verbos, por outro é certo que não se encaixam no grupo de movimento 1, o que não chega a comprometer a análise, especialmente pelo número reduzido de dados para este fator.

Dar um tratamento escalar aos traços semânticos do verbo principal possibilitou um maior entendimento da relação deste com o auxiliar IR, mostrando que esse pode ser um fator importante na escolha da forma perifrástica. O resultado mais relevante aqui é o que revela o fator estado (0,61) contra o fator movimento 1 (0,26), evidenciando que a idéia de movimento deve estar presente no contexto de futuridade: ou fornecida pelo auxiliar da perífrase, ou pelo traço inerente do verbo principal.

O principal fator condicionante do uso da forma perifrástica é o caráter estático do verbo, seja na oração vinculada ao dado, seja no próprio verbo principal que faz par com o IR na perífrase. Uma primeira interpretação é a de que a forma perifrástica, nesses contextos, confere ao verbo estático uma carga de movimento que reforça a futuridade. Outra explicação recai sobre a questão do aspecto imperfectivo do verbo IR, que, conforme admite Câmara Jr. (1967:130), expressa um aspecto do que ainda vai acontecer e essa significação aspectual permite uma interpretação de futuro, a partir de um ponto: a forma perifrástica estaria, então, marcando um aspecto e possivelmente o tempo futuro.

Outro contexto que inibe a forma perifrástica é o da terceira pessoa do discurso. Os resultados mostram que os interlocutores (eu, nós e tu, vocês) é que favorecem o uso da perífrase. Vejam-se alguns exemplos:

 

(7) ... onde é que está errado, nós vamos acertar pra ficar tudo numa boa. (FLP 04, L 0416)

(8) “O que que tu vais fazer?” (FLP 23, L 1191)

(9) Agora, a Camila vai fazer um ano em abril, né? (FLP 20, L 0476)

 

Obtive os seguintes resultados:

 
 

Freqüência Aplic./Total

Percentagem

Peso Relativo

Interlocutor

208/320

65%

0,53

Não - interlocutor

249/413

60%

0,26

Tabela 03: Influência da pessoa do discurso sobre o uso da forma perifrástica.

 

Acredito que, nesse caso, a forma perifrástica ocorre mais em contextos nos quais o falante pode expressar mais intencionalidade e mais certeza na realização do fato. A segunda pessoa (tu), incluída nesse grupo, não invalida minha interpretação. Primeiro porque essas formas correspondem apenas 5% do total (36 dados dos 733) e também porque nesses casos, geralmente, o falante estava se referindo ao ouvinte dando-lhe uma ordem ou fazendo-lhe um pedido. Nesses dados, pode-se constatar, senão a intenção, pelo menos a certeza que o falante deposita na ação que será praticada pelo ouvinte. O fator não-interlocutor, por outro lado, favorece o uso do presente do indicativo, possivelmente por não haver tanto comprometimento na ação expressa.

A explicação que me parece mais coerente para tais resultados é que a forma perifrástica está marcando a modalidade da intenção e, talvez, da certeza que o falante tem de que um fato venha a se realizar no futuro. É possível, então, considerar o contexto mais modal, de relevância presente, como propício para o seu surgimento.

Mais um contexto que restringe fortemente o uso da perífrase e que permite analisar minha hipótese é o dos auxiliares modais. O objetivo central é analisar os auxiliares modais e aspectuais que aparecem no contexto de futuridade tanto na forma do presente do indicativo quanto na forma perifrástica. É Bechara (1987:111) quem argumenta que o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal. Vejam-se alguns exemplos:

 

(10) porque eu não posso ser governada por filho. (FLP 02, L 0440)

(11) “... deixa que eu venho ficar com a mãe.” (FLP 03, L 1246)

(12) “Não, eu estou falando sério, estou mesmo, eu vou querer casar...” (FLP 20, L 0244)

(13) “Ah, não, eu não vou, porque amanhã é outro dia, e eu, outro dia, tenho que enfrentar todo mundo...” (FLP 20, L 0233)

 

Os resultados mostram que nesses casos há quase uma inversão dos resultados percentuais em termos de freqüência das formas: o presente, que no conjunto geral dos dados analisados é suplantado largamente pela perífrase, passa à frente, dobrando seu número de ocorrências junto dos auxiliares modais. Dos 100 dados coletados nesse grupo de fatores, 75% estão favorecendo o presente do indicativo e os 25% restantes favorecem a perífrase. Tal comportamento se justifica pelo fato de que os auxiliares modais trazem também traços de futuridade (desejo, possibilidade, vontade) em seu significado lexical e, impedindo a ambigüidade, facilitam, de maneira funcional, o emprego do presente do indicativo.

Após essa análise geral, torna-se importante verificar como se comporta cada um dos auxiliares modais:

 

 

Freqüência Aplic./Total

Percentagem

Peso Relativo

Outros

4/7

57%

0,80

Verbo querer

5/9

56%

0,89

Verbos ter que, dever, precisar de

12/47

26%

0,55

Verbo vir

1/4

25%

0,44

Verbo poder

3/33

9%

0,23

Tabela 04: Influência de verbos auxiliares sobre o uso da forma perifrástica.

 

Considerando os itens verbais individualmente, observa-se um comportamento particularizado dos auxiliares: enquanto o modal deôntico querer favorece o uso da perífrase, o epistêmico poder a inibe. A forte carga de modalidade deôntica pode estar abrindo espaço para a forma perifrástica, pois é compatível com a intenção, modalidade que acredito estar fortemente marcada na perífrase. Nesse caso, ou a forma perifrástica estaria codificando modalidade, atraída pela modalidade deôntica de querer, ou ela estaria expressando tempo futuro e esse seria um dos muitos passos que ela precisa dar para gramaticalizar-se como forma codificadora do tempo futuro.

Além desses resultados, gostaria de comentar o grupo de fatores marcas de futuridade, no qual a perífrase apareceu com mais freqüência em contextos com advérbios de expressão futura. Observem-se os exemplos com marca de futuridade (advérbio ou locução) e ausência de marca de futuridade, respectivamente:

 

(14) "Ô mãe, amanhã, mãe, eu vou trazer uma pomada." (FLP 03, L 1144-1145)

(15) Ela vai ficar até dia quinze de abril. É quinze dias. (FLP 11, L 0541)

(16) ...ele dizia: "Preta, vai descansar um pouquinho, vai te deitar um pouco, vai descansar um pouco." (FLP 03, L 0585)

(17) E se eles passarem pela dor de um parto, eles não vão agüentar, são capazes de morrer. (FLP 17, L 1229)

 

A discussão em torno dos resultados percentuais é significativa. Veja-se a tabela 05:

 

 

Freqüência Aplic./Total

Percentagem

Presença da marca de futuridade

71/95

75%

Ausência da marca de futuridade

386/638

61%

Tabela 05: Influência da marca de futuridade sobre o uso da forma perifrástica.

 

A tabela 05 mostra que a forma perifrástica aparece com mais freqüência nos contextos em que a marca de futuridade ocorre. A respeito desse fato, é importante fazer referência ao trabalho de Santos (1997) que também estuda as formas codificadoras do tempo futuro.

Santos (1997) verificou a variação de quatro formas verbais para expressar o tempo futuro na língua portuguesa. São elas: o futuro simples, o futuro perifrástico, o futuro simples perifrástico e o presente do indicativo. O seu corpus, entretanto, foi retirado da língua escrita. A autora analisou periódicos do Diário do Congresso Nacional e da revista semanal IstoÉ. Fazendo-se as ressalvas necessárias, não se pode deixar de mencionar os resultados de Santos (1997) para esse grupo de fatores que, embora não tivesse obtido significância relevante, traz um curioso aspecto: o futuro do presente apareceu com maior freqüência em contextos de marca adverbial.

Se o advérbio é marca de futuro, então se esperaria a forma do presente do indicativo nesses contextos, pois seria mais funcional, no entanto, isso pode vir a ser mais um indício de que a forma perifrástica está ocupando o lugar do futuro do presente e ainda evidencia que a presença do advérbio confere maior marca de tempo. Uma vez que a ocorrência do advérbio ou locução adverbial marca com mais ênfase o tempo futuro, então é possível admitir que a perífrase está, nesses contextos, codificando tempo.

 

4.2 Fatores sociais

 

Acrescento a essa análise, o fator idade, que possui um papel importante na caracterização da gramaticalização. Uma vez que não se possa verificar a mudança através da observação em tempo real, deve-se procurar apreender a mudança em progresso por meio de análise em tempo aparente. Nesse sentido, observar um recorte sincrônico atual, distribuindo os informantes em faixas etárias, pode apontar para uma mudança em progresso.

Os dados coletados estão distribuídos entre três faixas etárias: informantes com idade entre quinze e vinte e quatro anos, vinte e cinco e quarenta e nove anos e mais de cinqüenta anos. A princípio, as três faixas etárias foram rodadas separadamente, mas, por apresentarem comportamento estatístico parecido os fatores jovens (14 - 24 anos) e meia idade (25 - 49 anos) foram amalgamados. Os resultados obtidos para a faixa etária encontram-se na tabela abaixo:

 

 

Freqüência Aplic./Total

Percentagem

Peso Relativo

14 - 24 anos e 25 - 49 anos

296/436

68%

0,57

+ de 50 anos

161/297

54%

0,40

Tabela 06: Influência da idade sobre o uso da forma perifrástica.

 

Parece-me que essa é mais uma evidência de que a forma perifrástica está tomando o espaço do futuro do presente e expressando tempo futuro. Por esse motivo, vou retomar alguns pressupostos teóricos para mostrarmos seu percurso, de forma resumida.

 

5. UM PERCURSO PARA A GRAMATICALIZAÇÃO DA FORMA PERIFRÁSTICA

 

Primeiramente, remeto às palavras de Câmara Jr. que postula a variação entre presente do indicativo e futuro do presente, reservando à forma perifrástica uma função modal.

Câmara Jr. (1957,1967 e 1985) defende que o futuro gramatical origina-se de um impulso lingüístico de assinalar uma atitude do sujeito/falante em relação a um processo posterior ao momento da enunciação.

No plano sincrônico, o futuro tem três funções distintas semanticamente: 1) um futuro temporal puro; 2) um futuro com gradações modais; 3) um futuro intemporal, francamente transposto para modo. (Câmara Jr., 1967:33) Conforme o autor, o segundo tipo é que reflete a motivação inicial para a criação das formas futuras. O primeiro tipo resulta da intelectualização da língua e concretiza uma função lingüística muito menos espontânea e ampla. (ibid.)

Acreditamos que é com essa função que a forma perifrástica surge na língua, ou seja, para marcar traços de modalidade sem deixar de marcar também o tempo. O próprio autor admite que a forma perifrástica destaca-se, entre tantas locuções verbais de futuro, como aquela que marca uma significação temporal de futuro:

 

Aí, o futuro já se mostra diferenciado do presente, mas não - a maneira das formas em -r- - como tempo absoluto em princípio: é um tempo por vir que se estende do tempo atual sem solução de continuidade. Podemos dizer que é um futuro relativo, que coroa um processo cursivamente considerado, em vez da expressão absoluta ou autônoma de um processo por vir, desligado do momento atual. Complementarmente, há na significação geral da categoria a coloração modal da intenção do sujeito. (Câmara Jr., 1985:170)

 

E o autor ainda confirma que o auxiliar IR tem traços de valor modal e aspectual:

 

De um lado, assinala a intenção de fazer alguma coisa (que é uma característica modal); de outro lado, exprime um aspecto sui generis: o do que ainda vai acontecer: vou sair, ia sair, fui sair, irei sair, etc.. Essa significação aspectual dá-lhe o caráter de um futuro, a partir do pretérito ou de outro futuro. (op.cit.)

 

Câmara Jr. nega a interpretação de que a forma perifrástica substitui o futuro do presente, afirmando que, na linguagem coloquial, quem substitui o futuro do presente é o presente do indicativo.

Entretanto, analisando a estrutura da perífrase mais detalhadamente e verificando as ocorrências desta na linguagem coloquial hoje, pode-se avançar nas idéias de Câmara Jr. e detectar um processo de projeção metafórica, o que, aos poucos, caracterizaria a forma perifrástica como uma expressão para marcar o tempo futuro. Além disso, o auxiliar IR também pode estar perdendo parte do valor aspectual que Costa (1990) identifica.

Observe o trajeto que proponho para a forma perifrástica a partir dos resultados dos grupos de fatores estudados, baseando-me nas afirmações de Câmara Jr. e no processo de gramaticalização do verbo going to, no inglês.

MOMENTO 1:

FUNÇÃO MODALIDADE FUNÇÃO TEMPO

MOMENTO 2:

FUNÇÃO MODALIDADE FUNÇÃO ASPECTO FUNÇÃO TEMPO

MOMENTO 3:

FUNÇÃO MODALIDADE FUNÇÃO ASPECTO FUNÇÃO TEMPO

Esse diagrama proposto acima reflete o caráter gradual que caracteriza o processo de gramaticalização, ou seja, as etapas desse percurso e as funções que a forma perifrástica assume em cada uma delas são um continuum. Ele ainda ilustra a cadeia de gramaticalização que Heine et al. (1991) propõem como caminho percorrido pela forma be going to para, a partir da noção espacial, vir a tornar-se expressão de tempo futuro no inglês:

 

A noção espacial (1) corresponde à expressão do verbo IR de movimento, que, ao unir-se com verbos no infinitivo passa a codificar a visão que o falante tem de uma ação futura originando-se do estado de coisas presente. É a relevância do presente (2), exemplificada nessa pesquisa através dos grupos de fatores que mostram a modalidade da intenção presente na forma perifrástica: envolvimento do falante e traço deôntico do auxiliar querer. O terceiro passo, aspecto (3), está associado diretamente ao verbo principal de estado, contexto em que a perífrase aparece para, marcando um aspecto imperfectivo, caracterizado por assinalar o início do fato, instaurar a futuridade do enunciado. E, finalmente, a perífrase passa a codificar o tempo futuro (4): as pistas que me permitem assinalar essa função estão presentes nos fatores: modo indicativo e a presença da marca de futuridade. Dessa forma, propus um possível percurso para o processo de gramaticalização da perífrase, que está relacionado com as categorias modalidade, aspecto e tempo.

A análise quantitativa dos dados permite-me atestar que a forma perifrástica está tomando o espaço do futuro do presente na fala, uma vez que este tempo obteve pequena expressão no número total de dados. Além disso, pode-se evidenciar a variação das formas perifrástica e presente do indicativo, envolvendo tanto os contextos de modalidade futura quanto o de tempo.

Os resultados confirmam que a forma perifrástica mantém seu caráter de modalidade, embora ela esteja também codificando tempo. Uma vez que nossa hipótese era a de que a perífrase estava entrando na língua como forma para marcar a modalidade, passando a configurar o tempo e que a análise realizada evidencia esses contextos, então podemos considerar que esses resultados atestam a hipótese.

 

 

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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