A LÍNGUA PORTUGUESA DA ÁFRICA LUSÓFONA

UMA PROPOSTA DE ENSINO ATRAVÉS DA LITERATURA

Janice Cravo Piccoli (FAPA)

INTRODUÇÃO

Nesse trabalho, pretendemos mostrar uma proposta de ensino que pode ser desenvolvida junto a alunos do ensino médio, envolvendo a literatura nos países da África lusófona. Através dela, podemos levar os alunos a conhecerem peculiaridades sobre esses países e sobre sua língua oficial: o português.

Ao adotarmos uma abordagem textual nesta proposta, procuramos abrir oportunidade para um trabalho interdisciplinar e principalmente tornar nosso aluno mais competente lingüística e culturalmente.

EXPLANAÇÃO SOBRE A PROPOSTA DE ENSINO

Propomos iniciar as atividades junto aos alunos com uma visão geral da origem, expansão e evolução da língua portuguesa, tendo em vista a necessidade de ampliar conhecimentos a respeito da língua que falamos.

Mostraremos que os romanos, na época de sua expansão territorial, invadiram a Península Ibérica por volta de 219 a.C. Essa península englobava o que hoje é Portugal e parte da Espanha. A sociedade romana, com uma extratificação de classes bem diferenciada, falava dois tipos de latim: o vulgar e o clássico. Como as invasões eram efetivadas territorialmente pelos soldados, classe baixa da sociedade romana, a língua veiculada nos países dominados era o latim vulgar. Logo, grosso modo, podemos dizer que o português é oriundo do latim vulgar.

Nessas conquistas romanas, o latim foi expandindo-se, formando o que primeiramente chamou-se de romanços (entre eles o galego-português). Com o passar do tempo e as diferenças regionais sofridas pelo latim, novas línguas nasceram, sendo chamadas de neolatinas, estando entre elas o português, o espanhol, o francês, o italiano e o romeno.

O primeiro texto que sugerimos apresentar aos alunos, após essas considerações sobre a língua, é um texto histórico: “A navegação dos Portugueses”(Borges Hermida,1966), comparando-o com uma síntese baseada em “A língua portuguesa no mundo ” (Elia,1998), que trata da expansão territorial da língua portuguesa, da formação das cinco Lusitânias e de suas características sociolingüísticas. Temos a velha Lusitânia, que compreende Portugal, Açores e Madeira; a nova Lusitânia: o Brasil; a novíssima Lusitânia: os cinco países africanos lusófonos ¾ Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Há ainda a Lusitânia dispersa, que compreende as diversas “colônias” portuguesas em outros países, como na França, e a Lusitânia perdida: antigas colônias portuguesas na Ásia, China, etc., onde praticamente não se fala mais o português.

Cada um dos países que fazem parte das Lusitânias velha, nova e novíssima possui traços lingüísticos semelhantes, mas com algumas peculiaridades. O português é a língua oficial desses países , porém não é a língua nacional de todos. Para que assim fosse considerado, seria necessário ser falado em todo o território em questão, fato que acontece somente aqui no Brasil e em Portugal. Nos países africanos lusófonos o português não é a língua nacional.

Como língua-berço só é considerada em Portugual, pois nos demais territórios ocupados, com exceção de Cabo-Verde, já havia falantes nativos. A peculiaridade de Cabo-Verde, neste sentido, é que, apesar de não ser habitado por ocasião de sua descoberta, não foi colonizado diretamente por portugueses, e sim por africanos trazidos de diferentes locais da África. Esse detalhe fez com que ali proliferassem as línguas pidgins e as línguas crioulas.

Percebendo que nosso aluno já esteja familiarizado com esses aspectos lingüísticos, podemos aproveitar o momento para um breve estudo dos metaplasmos. Salientamos que a intenção não é a de apresentar nomenclaturas difíceis e estranhas, mas a de mostrar, de maneira até mesmo lúdica, a evolução da língua através da modificação das palavras desde o latim até nossos dias. A idéia é de mostrar que isso acontece por aumento, supressão, transposição e transformação de fonemas. Mais uma vez estaríamos abrindo possibilidades e visões diferentes a respeito da língua portuguesa.

O passo seguinte que propomos é a apresentação do vídeo Além Mar, um documentário composto de cinco capítulos, veiculado pelo canal GNT em 1999. Essa série enriquecerá nossa pesquisa, pois mostra depoimentos de pessoas das mais diversas áreas, tais como psicólogos, sociólogos, historiadores, cineastas, escritores, poetas, cantores, religiosos e o povo em geral, representantes de todo o mundo lusófono.

Esses assuntos tratados nessa série enriquecerão não só o trabalho, como também enfatizarão a idéia que queremos estabelecer através desse estudo, ou seja, o grande elo que une o Brasil aos países africanos lusófonos. Não será esquecida a influência da cultura negra em nossa cultura e costumes. O negro contribuiu de maneira direta para a formação do que hoje consideramos nossas raízes culturais.

Outros recursos, tais como a música da caboverdeana Cesária Évora, devem ser usados, bem como a Internet, que nos traz notícias novas e peculiaridades interessantes desses povos africanos tão importantes para o Brasil. Por vezes, nossos jornais e revistas também podem servir de fonte de pesquisa, tendo em vista o intercâmbio entre nossos artistas e os artistas africanos lusófonos. Embora de maneira incipiente, já tivemos oportunidade de ver exposições de pintores moçambicanos ou ouvirmos entrevistas de autores angolanos.

Em 1999, por exemplo, por ocasião da 45a Feira do livro de Porto Alegre, deu-se a palestra Vozes da África, com os autores Antonio Emília Couto ( Moçambique), Orlanda Amarilis ( Cabo Verde) e Pepetela ( Angola). Nesse mesmo ano, houve oportunidade de apreciar a exposição de Bela Duarte ( Cabo Verde) intitulada Morabeza, que, na língua crioula, quer dizer “a arte de bem receber”. A artista trouxe ao teatro São Pedro, em Porto Alegre / RS, tapeçarias, batiques e pinturas.

De modo mais específico, o terceiro texto proposto dará início ao trabalho com a literatura africana lusófona. É um texto criteriosamente escolhido, no sentido de dar aos alunos uma literatura de valor, mas de um grau de dificuldade médio. Trata-se do conto de Antonio Emília Couto (Mia Couto) Chuva: a abençonhada. Julgamos que, após o embasamento teórico, nossos alunos terão condições de encontrar nesse texto “marcas” comuns que são importantes nessa literatura, tais como o nome do conto, visto que chuva é água, e esta serve para limpar o solo manchado de sangue pelos constantes conflitos armados. A chuva traz também vida nova, com a fertilidade voltando ao solo. Outra marca referencial é o nome da personagem feminina ¾ tia Tristereza, composto de Tereza e tristeza, pois o momento no qual o conto se insere é de preocupação, de insegurança. Também a pergunta que o personagem narrador se faz: “A gente se indagava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento”?, é uma marca importante que deve ser destacada junto aos alunos, assim como muitas outras mais, visto que o texto é repleto de simbologia e bem inserido no seu contexto, servindo como um excelente instrumento para proporcionar uma visão geral da literatura da África lusófona.

O professor, nesse momento, deverá ser um orientador, e a interpretação deverá envolver os próprios alunos, que, unindo os conhecimentos anteriormente assimilados, poderão chegar a conclusões relativas não só à linguagem (estilo, léxico, sintaxe, etc.) e à estrutura do texto, mas também a questões mais amplas envolvidas nas condições de produção desse texto, como o contexto sociopolítico-econômico-cultural em que se insere, por exemplo.

Julgamos necessário, nesse entremeio, levar a conhecer aos alunos que os escritores e poetas africanos lusófonos, em sua maioria, são engajados em movimentos políticos e vivem numa terra que não conquistou totalmente sua liberdade. É preciso ressaltar também a importância do uso da língua portuguesa como elemento cultural unificador na efetivação dessa conquista, já que essa língua goza de mais prestígio que as línguas nativas africanas.

A literatura africana lusófona, apesar de bela , é sofrida e nostálgica, assim como sua música, cuja melodia é ritmada fortemente, embora seus versos sejam a expressão da saudade. Os intelectuais dos países africanos lusófonos estão empenhados nessa árdua tarefa de resgate de uma cultura que foi soterrada durante muitos anos, mas deixam bem claro que, com o tempo, resgatarão tudo o que sua cultura tem de forte. E mais uma vez é preciso reforçar a importância da língua portuguesa para esse resgate e para a propagação dessa cultura.

A independência desses países lusófonos é recente. Atualmente, esses países ainda vivem em um ambiente de explosões sociais, crises políticas, fragmentações e guerras internas.

Em 1974, os principais territórios ainda eram colônias e chamados de províncias ultramarinas de Portugal. A primeira colônia que se tornou independente foi Guiné-Bissau, em 1973. Angola, Moçambique, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe só alcançaram sua independência em 1975, com a queda do salazarismo em Portugal; até então, ainda lavravam outras guerras: as de libertação, conduzidas por vários grupamentos guerrilheiros.

Voltando aos textos literários a serem apresentados aos alunos, além do já mencionado, do autor Mia Couto, propomos trabalhar também com o poeta José Craveirinha e seu poema Quero ser tambor, de especial significado, e que tem, no documentário Além Mar, a explicação, pelo próprio autor, de por que querer ser um tambor.

Listamos ainda, com base em Cechin (1985, 1986), alguns outros autores, cujos trabalhos podem servir como material didático: os angolanos Agostinho Neto, com suas poesias Noite e sinfonia; Carlos Soromenho, com seu conto O lago enfeitiçado; Jofre Rocha, com sua poesia O Combate e com o conto O drama de Vavó Tutúri; os caboverdeanos Aguinaldo Fonseca, com sua poesia Herança; Jorge Tolentino, com seu conto A chefe; Orlanda Amarilis , com seu conto Luísa - filha de Nica; os guineenses Antonio Baticã Ferreira, com suas poesias País Natal e Mãe Negra - Mãe-África; Carlos d’Almada, com suas poesias O silêncio e Carta; os santomenses Carlos Espírito Santos, com sua poesia A Puíta; Frederico Anjos com sua poesia Um grito diferente; o moçambicano Antonio Emília Couto, com seus contos Jorojão vai embalando lembranças e O Perfume. Além dessas obras, há os Contos Santomenses (1984).

Afora as leituras retiradas das obras mencionadas, consideramos importante mostrar aos alunos que a literatura africana viveu dois momentos distintos , a colonial e a africana pós-independência. A primeira tem uma perspectiva eurocêntrica; o homem negro aparece como que por um acidente. No segundo momento temos o universo africano perspectivado por dentro, conseqüentemente saneado da visão folclorista e exótica. O texto colonial representa e prolonga a realidade colonial; o texto africano do segundo momento nega a legitimidade do colonialismo e faz, da revelação do universo africano, a raiz primordial.

A literatura africana, através de seus escritores e poetas, foi fundamental na luta contra o colonialismo, transformando-se em verdadeira arma contra o salazarismo português. Nos anos que antecederam a independência das colônias africanas, a temática libertária era foco das atenções dos escritores, muitos dos quais foram perseguidos, presos e mortos.

O árduo trabalho dos intelectuais desses países africanos lusófonos não foi em vão: mostra-nos a importância da língua em uma cultura, confirmando como ela pode se transformar em instrumento de luta e de libertação.

 

CONCLUSÃO

 

Embora esta proposta não tenha ainda sido aplicada, acreditamos que oferece todas as condições de atingir os objetivos propostos.

O trabalho busca seguir passos coerentes, levando em consideração um processo de ensino-aprendizagem através de textos cujo paradigma seja a produção, e não a reprodução.

A interdisciplinaridade, um aspecto enfatizado, é perfeitamente possível de ser aplicada, pois o assunto, como já demonstramos, é abrangente, possibilitando uma grande integração entre os professores das mais diversas áreas. Seria bastante proveitoso, inclusive, que, quando da aplicação da proposta, toda a escola em que ela fosse desenvolvida procurasse envolver-se em um projeto unificado.

Podemos dizer, por fim, que a nossa proposta visa a contemplar o interesse do aluno não só por algo passageiro, mas por algo que seja o início de uma caminhada permanente voltada para descobertas diversas no campo do saber.

A relação que procuramos estabelecer entre o nosso povo e os povos dos diversos países africanos lusófonos é um reconhecimento e uma valorização de nossas raízes lingüísticas e, principalmente ,culturais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CECHIN, Lúcia (Org.). Antologia angolana: poesia e conto. Porto Alegre : UFRGS, 1985.

-----. (Org.). Antologia: Cabo Verde, Guiné- Bissau, São Tomé e Príncipe. Porto Alegre : UFRGS, 1986.

CONTOS TRADICIONAIS SANTOMENSES. São Tomé e Príncipe : Direção Nacional da Cultura, Portugal : Caminho, 1984.

COUTO, Antonio Emilia. Estórias abensonhadas: contos. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1996.

ELIA, Sílvio. A língua portuguesa no mundo. 2.ed. São Paulo : Ática, 1998. (Princípios)

HERMIDA, Antonio José Borges. Compêndio da história geral: curso médio. São Paulo : São Paulo Ed., 1966.

LARANJEIRA, José Luis Pires. A inovação na literatura angolana. Cadernos Cândido Mendes. Rio de Janeiro, n.3, [s.d.].

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.